Sons de passos. Um farfalhar de tecido. A senhora entra empertigada, com o torso bem moldado pelo espartilho, com uma blusa branca com babados descendo pela gola, abotoada de acordo comas normas de decoro e um vestido que assentava bem em sua cintura, como era costume de sua época. A audiência em silêncio, o movimento da cabeça faz ondular os cachos brancos que emolduram algo prodigioso. Não a beleza, que outrora tivera, mas o mais importante era o que tinha naquela cabeça.
Amigos, que cabeça essa senhora tem! Os olhos afiados, a fala calma e pausada, com a segurança de quem sabe o que está a falar. Por mais que a sociedade de sua época propusesse coisas absurdas como a incapacidade de mulheres terem em termos intelectuais frente aos homens, todos os homens em sua audiência, e algumas mulheres ficam em silêncio quando esta senhora começa a falar de planetas, órbitas, cometas e toda a sorte de corpos astronômicos.
Esta é a aula da senhora… correção, da doutora Maria Mitchell, a primeira astrônoma profissional dos EUA.
Maria Mitchell teria tudo para ser odiada hoje em dia. Ela era branca, hétero, cis e religiosa, vinda de uma família que não era pobre e favelada. Ela não andava com uma máquina de lacrar, não pintava o cabelo de roxo nem deixava o pelo do sovaco à mostra. Não dava nem para saber se ela se depilava ou não. Era uma mulher comedida, austera e que se dava ao respeito. Não que isso a fizesse ser capacho de homem algum. Ela não era. Não que isso a obrigasse ficar em casa lavando, passando e cozinhando. Ela não ficava. Não que isso a obrigasse ficar em casa, escondida, lendo mais escondido ainda os livros do marido. Isso não acontecia por vários motivos.
Maria Mitchell veio a um mundo complicado para o seu gênero em 1º de agosto de 1818. Sim, hoje ela faz 199 anos. Parabéns, Maria! Ela nasceu numa família quacre, uma vertente cristã que logo seria trocada pelo Unitarismo, mas que não faz muita diferença para o que estamos abordando. Maria gostava de estudar, gostava dos céus e mais ainda se fosse de noite, quando ela podia ver não apenas uma, mas milhares de estrelas, ainda que sua mente vagasse por muito mais.
Maria era filha William Mitchell e Lydia Coleman Mitchell, tendo nascido em Nantucket, Massachusetts, nos EUA, que era formada por uma grande comunidade de quacres, sendo estes um pouquinho diferentes de outros grupos cristãos. Como Papai e Mamãe Mitchell eram bons quacres, eles acreditavam na igualdade entre os sexos. Quacres acham que homens e mulheres devem ter acesso à Educação de forma igual, e foi com este pensamento que menina Maria e suas irmãs fossem criadas.
William Mitchell era um professor, um mestre-escola, e chegou a diretor de uma em North Grammar, onde Maria foi matriculada e alfabetizada cedo. Professor Mitchell saiu dessa escola e resolveu fundar a sua própria escola, não com blackjack e prostitutas. Ele contou com a ajuda de sua filha, na época com 12 anos. Papai Mitchell era um astrônomo amador, e ele amava tanto os astros que passou um pouco desse amor para a sua filha, que desenvolveu grande afeição pela Astronomia, também. Menina Maria ajudava o pai a calcular a posição de sua casa observando um eclipse solar e, aos 14, menina Maria fazia cálculos náuticos e, com isso, ajudando marinheiros a não se perderem pelas veredas dos grandes mares. Ela lecionou na escola para moças do pastor Cyrus Pierce, um educador que mantinha um colégio. Papai Mitchell fez um colégio onde Maria deu aula, até que, aos 17 anos, ela tornou-se a primeira bibliotecária do Nantucket Atheneum (ela ficou lá por 20 anos!). Em 1835, Maria Mitchell abriu a sua própria escola, local que aceitava meninos e meninas, brancos e negros, não importa quem fosse se matricular na escola de miss Mitchell. todos eram bem-vindos, pois miss Mitchell defendia o acesso à educação por todas as camadas da sociedade.hoje a chamariam de comunista, ou de burguesa puritana safada. Bem, alguém ia arrumar um modo de reclamar. Danem-se!
Enquanto isso tudo se desenrolava, Maria e seu pai continuavam a adquirir equipamentos astronômicos e realizaram observações, vasculhando os céus. Com um detalhe: ela era paga para isso! 300 dólares anuais para fazer o que gostava, no século XIX (e sendo mulher!) era a mais gloriosa das conquistas para uma feminista.
Sim, Maria Mitchell era uma feminista. Era amiga de Elizabeth Cady Stanton, uma sufragista que lutava pelo direito das mulheres em poder votar e eleger seus governantes, com quem mais tarde fundaria a American Association for the Advancement of Women.
Não, ela não desfilava seminua, latindo feito uma retardada ou se lambuzando de sangue falso nem pintando a cara com a sua menstruação. Maria era inteligente demais para isso, capaz demais para isso, normal demais para agir feito estas imbecis de Tumblr. E é por isso que o que aconteceu em 1847 fez Maria Mitchell ser famosa, enquanto estas pobres coitadas revoltosas não passam de uma menção de postagem em redes sociais, não-raro com escárnio.
Não, Maria Mitchell nunca foi assim!
O dia era 1º de outubro de 1847. O momento era 22h30min (hora local, óbvio). Maria Mitchell estava com 28 anos, já era para estar casada e com uma penca de filhos. Mas não! Ela estava no telhado do Pacific National Bank na Main Street, em Nantucket, com um telescópio de seu pai. Olhou para os céus pra lá e pra cá e deu de cara com algo que ela achou inusitado. Nunca estava ali antes. Nem poderia, pois aquele astro é um astro mais errante que planetas: era um cometa!
Hoje, este cometa é chamado C/1847 T1, mas ele sempre será conhecido pelo que foi chamado na época: “O Cometa de Miss Mitchell”. Foi uma sensação no mundo acadêmico. Vários astrônomos vieram cumprimenta-la e Maria Mitchell. Claro, isso tem um bom motivo. Ela teve reconhecimento por parte da realeza.
O rei Frederico VI da Dinamarca tinha uma verdadeira tara por cometas. Sendo assim, ele ofereceu um polpudo prêmio para quem descobrisse um cometa, seja por meio de telescópios, a olho nu, não interessa! Sua Majestade quer premiar quem descobrisse a droga de um cometa. Miss Mitchell descobriu. Bóra dar a grana pra ela!
Não que Maria tenha sido a primeira mulher a ter descoberto um cometa. Na verdade, a primeira mulher foi Caroline Herschel, a quem devemos muito respeito também. Mas prêmio é prêmio, e dado pela realeza não é algo trivial. Só que houve contestação por parte de Francesco de Vico, que, de fato, tinha observado o mesmo cometa. Infelizmente, ele o fez dois dias depois de Maria. Assim, Hamlet, digo, o novo rei da Dinamarca, Cristiano VIII, entregou o prêmio e Maria Mitchell, a Senhora dos Cometas, foi uma celebridade mundial!
Maria Mitchell recebeu por isso vários convites e honrarias. Foi a primeira mulher eleita como membro da Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos, em 1848, membro da Associação Americana para o Avanço da Ciência em 1850, a primeira mulher eleita para a American Philosophical Society, em 1869 – junto de Mary Somerville e Elizabeth Cabot Agassiz –, tendo ido trabalhar no Observatório Naval dos Estados Unidos para calcular tabelas de posições de Vênus e assumiu cátedra na Vassar College, lecionando Astronomia, com turmas mistas de homens e mulheres, entre elas Mary Watson Whitney, essa moça à direita, que mais tarde se tornaria diretora dessa mesma instituição, tendo publicado 102 artigos científicos sobre Astronomia.
Primeira turma de alunas de Maria Mitchell formadas em Astronomia
Deve ser mencionado que ao receber seu salário, Maria Mitchell percebeu que o salário dela era inferior ao de outros cientistas. Ela meteu a boca no trombone e fez soar toda a sua indignação; e quando você tem um cometa com seu nome e prêmios dado por várias instituições, o pessoal do Vassar College num instantinho equiparou seu salário ao dos homens. Lá, ela permaneceria lecionando até um ano antes de sua morte, tendo se tornado diretora da instituição. Pouco ainda? Pois em 1943 o SS Maria Mitchell zarpou para jogar umas democracias no pessoal do Eixo.
Maria Mitchell, abolicionista, feminista e educadora. Recusou-se a usar qualquer coisa de algodão e fazia um alarde disso para que todos soubessem que ela era terminantemente contra escravidão. Maria Mitchell, lutadora pelo direito das mulheres, não porque ela queria a morte de homens, mas porque achava que ambos devem existir em pé de igualdade de direitos. Nem mais, nem menos. Maria Mitchell, a Senhora dos Cometas que nunca abandonou a pesquisa e estudou a superfície de dois dos seus planetas favoritos, Júpiter e Saturno. O Senhor dos Deuses e o Senhor dos Céus curvaram-se perante a grandeza de Miss Mitchell, um dos Grandes Nomes da Ciência.
Maria faleceu placidamente em seus 70 anos, no ano de 1889, em Lynn, Massachusetts. Os astros choraram pela perda, mas o C/1847 T1, o cometa de Miss Mitchell, os consolou, fazendo-lhes ver que sua mãe agora estava entre eles, e os abraçava como filhos queridos.
Já pensou em fazer uma vaquinha para publicar um livro com o titulo dessa série de artigos? Eu apoiaria…….
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Por que eu faria isso, se o conteúdo está disponível? Se acharem que os textos valem, façam uma doação no paypal, ou no Apoia.se ou bitcoin.
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Agora que eu liguei o nome à pessoa. Eu tinha ouvido falar da grande Maria Mitchell, para variar, no mundo de Beakman. E foi num episódio sobre cometas.
Olha, acho que aprendi mais sobre ciência e história vendo TV (especialmente os programas da TV Cultura) do que na escola. Claro, os professores não eram (e não são) culpados.
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