O advogado que lutou até a morte pelo seu cliente

Advogados estão naquela classe dúbia que são a causa e a solução de muitos problemas. Tudo depende de quem você contratou. Claro, pode-se pensar em muitas maneiras em como minimizar os problemas causados por advogados, como mostrado no desenho da Liga da Justiça. Alguns advogados estão tão imbuídos em defender seus clientes que farão de tudo e lutarão incansavelmente para garantir o veredicto de inocente. Nem que seja se matando no tribunal.

Não, péra. MAS COMO ASSIM?

Clement Laird Vallandigham nasceu em 29 de julho de 1820, em Lisbon, Ohio, EUA. Não, ele não era lisboeta nem gostava de bacalhau ao Zé do Pipo. O pai de Clement era um pastor presbiteriano e educou o filho em casa até ele chegar na idade para ingressar em uma universidade.

Em 1841, um arrogante e obstinado jovem Clement Vallandigham bateu de frente com o presidente do Jefferson College em Canonsburg. Não era segredo que Vallandigham tinha uma língua afiada e pouca paciência para autoridades, o tipo de coisa que o seguiria por toda sua carreira política. A disputa – que não se sabe direito o que era, mas deve ter sido na base “dois bicudos não se beijam – resultou em sua saída da instituição. “Com honras”, diziam os papéis oficiais – um eufemismo vitoriano para “vá embora, mas sem escândalo”. O diploma que tanto almejava jamais chegou às suas mãos.

Curiosamente, em meio às suas controvérsias, Vallandigham cultivou uma amizade… como direi?… curiosa. Edwin M. Stanton – o mesmo homem que um dia comandaria as forças armadas da União como o implacável Secretário da Guerra de Lincoln – considerava Vallandigham um confidente. Numa tarde de outono, enquanto compartilhavam um brandy barato em um escritório empoeirado de Ohio, Stanton pegou sua carteira e ofereceu 500 dólares ao amigo. “Para seus estudos de direito e um começo decente”, murmurou, sabendo que o orgulho de Vallandigham dificultaria a aceitação do empréstimo.

A ironia da história não poderia ser mais cortante. Estes dois democratas, unidos pela camaradagem juvenil, logo se veriam em trincheiras ideológicas opostas. Stanton, com sua barba espessa e convicções morais ainda mais densas, abraçou a causa abolicionista com fervor quase religioso. Vallandigham, por sua vez, era um ferrenho defensor da manutenção da ordem escravocrata.

Admitido na Ordem dos Advogados em 1842, Vallandigham exerceu a advocacia até com um certo sucesso, mas também tinha interesse em política, e foi eleito como representante do Partido Democrata para a legislatura estadual em 1845. Ele concorreu ao Congresso em 1856, mas foi derrotado por pouco. Como qualquer político que se preze, ele reclamou sobre isso e disse que votos foram emitidos ilegalmente por não residentes de seu distrito em Ohio. O Comitê de Eleições da Câmara dos Representantes ouviu seu apelo e, após meses de deliberação, finalmente concordou, e Clement Vallandigham foi eleito.

Vallandigham permaneceu na Câmara dos Representantes por vários anos, mas se viu em apuros quando a Guerra Civil Americana estourou. Como eu costumo dizer, se tem democrata e popular no nome, não é nem uma coisa nem outra, e o Partido Democrata era um aguerrido partidário da política escravagista. O próprio Vallandigham era firmemente contra o presidente republicano Abraham Lincoln; não que Lincoln amasse os negros, ele só os queria bem longe dali, e só podia conseguir isso abolindo a escravidão.

Vallandigham, por sua vez, seguia as ideias do partido Democrata e apoiava a escravidão e acreditava que o governo federal não tinha poder para regulá-la, que deveria ser uma questão para cada estado decidir (de preferência, ninguém abolindo). Ele acreditava ainda que os estados confederados tinham um direito implícito de se separar da União e que o governo federal não tinha direito legal de buscar ação militar contra eles.

Por algum motivo que me escapa, Abraham Lincoln não gostou disso nem um pouco. Na guerra que se seguiu, Clement Vallandigham se tornou um dos principais detratores de Lincoln, referindo-se a ele ironicamente como “Rei Lincoln”, e acusando-o de transformar os Estados Unidos em um dos piores despotismos da Terra.

De acordo com essas crenças, Vallandigham se opôs a todos os projetos de lei militares e logo desenvolveu uma reputação de simpatizante confederado, tornando-se um dos homens mais odiados do Norte,. E por causa dessas posições, Vallandigham perdeu sua candidatura para um terceiro mandato na Câmara dos Representantes em 1862.

Pouco depois, em resposta às confusões causadas por agitadores antiguerra (e escravagistas), Lincoln perdeu a paciência e meteu lei marcial, suspendendo habeas corpus em áreas selecionadas. Isso permitiu a prisão e detenção de indivíduos suspeitos de dificultar o esforço de guerra ou de serem desleais. No Ohio natal de Vallandigham, o comandante das forças da União era o General Ambrose Burnside, que tinha um apelido hermético de “sideburns” (costeletas). O que esse detalhe tem a ver com a história? Nada, mas eu ainda sou o dono desta bagaça e resolvi postar mesmo assim.

Burnside deixou claro que iria atrás de qualquer um que demonstrasse simpatia pelo inimigo, já que estavam sob a lei marcial recém-declarada. Isso significava que Vallandigham provavelmente deveria ficar na dele, de preferência de bico fechado; ele ficou? ÓBVIO QUE NÃO! Ele fez um grande discurso antiguerra e pró-escravidão, que contou com a presença de oficiais do exército da União em trajes civis, e ele foi preso e julgado por comissão militar.

Durante seu julgamento, Vallandigham chamou apenas uma testemunha, um colega democrata e conhecido congressista antiguerra. Claro que isso não ajudou em seu caso e ele foi sentenciado ao confinamento em uma prisão militar pela continuação da guerra. Isso já diz muito sobre a qualidade de Vallandigham como advogado, mas aí vão me citar aquele lance de casa de ferreiro, espeto indo parar na cadeia, ou algo assim.

Enquanto isso, Lincoln estava cauteloso com Vallandigham. Ele sabia que aprisionar aquele boquirroto só daria mais munição para chamá-lo de tirano, como Vallandigham gostava de fazer, e Lincoln não queria transformá-lo em um mártir pela causa antigovernamental.

Dessa forma, Lincoln comutou a sentença, emendando algo como “Ah, então quer dizer você ama tanto os confederados? Beleza, mermão, rala peito que você está banido, meu consagrado”, e Vallandigham foi transportado através das linhas inimigas e para os Estados Confederados. Aparentemente nosso amigo arruaceiro não gostou muito disso. É que nem esses adoradoras da Palestina que você dá uma passagem pra gaza e eles querem ficar por aqui, mesmo. No caso de Vallandigham, ele não podia retornar aos Estados do Norte, então, em vez disso, ele foi para o Canadá.

No Canadá, ele se declarou candidato a governador de Ohio e obteve uma vitória esmagadora in absentia, em 1863. No fim das contas, Lincoln estava absolutamente certo, as ações do governo contra Vallandigham reforçaram o apoio a ele, pelo menos em Ohio.

Em 1864, Vallandigham se tornou líder da Ordem dos Filhos da Liberdade, uma organização política secreta que visava formar uma Confederação do Noroeste de Ohio, Kentucky, Indiana e Illinois. Ele se disfarçou e viajou de volta para Ohio para desenvolver ainda mais essa conspiração. Lincoln estava ciente de seu retorno, mas não queria tomar mais nenhuma ação pública contra Vallandigham, optando por mantê-lo sob vigilância. A conspiração desmoronou e a Guerra Civil terminou logo depois, em 1865.

Clement Vallandigham, sem muitos propósitos na vida, voltou a exercer a advocacia, que foi quando sua história mais espetacular se desenrolou e você tem esperado por esses looooooongos parágrafos até eu chegar nela.

Em 1871, um certo sujeito chamado Thomas McGehean estava sendo julgado pelo assassinato de outro certo sujeito chamado Tom Myers. Quem eram eles? Provavelmente dois bebuns, já que ambos estavam num bar e como já deviam estar em órbita, partiram para as vias de fato. Myers foi baleado e morto com sua própria pistola e McGehean foi acusado de assassinato. Vallandigham era o advogado de McGehean.

A defesa construída por Vallandigham foi que McGehean não atirou em Myers, mas Myers tentou sacar sua arma durante a briga e acidentalmente atirou em si mesmo quando ela prendeu em seu casaco. Para provar isso, Vallandigham teve uma brilhantemente questionável ideia: reconstituir o que aconteceu ele mesmo.

Vallandigham arrumou duas pistolas, uma descarregada que ele pretendia apresentar ao tribunal e uma carregada que ele levou para o campo entre as datas do tribunal para testar o tiro em um pedaço de pano e analisar o resíduo de pólvora em diferentes distâncias. As técnicas forenses de análise de impressão digital sequer existiam.

Quando ficou satisfeito com os resultados, Vallandigham voltou ao tribunal triunfante, pois tinha meios de provar que seu cliente era inocente; mas aí vem ele, o detalhezinho safado: Vallandigham se confundiu com as duas armas, e ao invés de levar a arma descarregada, levou o revólver ainda carregado; e nesse ponto você já sabe que vai dar merda.

Vallandigham era uma daquelas figuras ambíguas oscilando entre a genialidade e a extrema burrice. Genial por ter idealizado esta linha de defesa e extremamente burro por não ter checado a arma. Quando era sua vez de falar e estava fazendo a argumentação, ele encenou a sua versão dos eventos e sacou sua arma como ele alegou que Myers tinha feito; e claro, o juiz, jurados, testemunhas e o promotor não sabiam que ele ia fazer algo assim. Assim que ele sacou a arma, um estrondo alto foi ouvido no tribunal, seguido por Vallandigham exclamando “meu Deus, eu atirei em mim mesmo!”

Como mais poderosos são os poderes de Darwin, Clement Vallindigham morreu de seus ferimentos no dia seguinte aos 50 anos; mas sua morte não foi em vão: ele conseguiu provar a sua argumentação e Thomas McGehean foi absolvido. Infelizmente, não conseguiu viver muito depois do veredicto de inocente, já que ele foi morto a tiros apenas quatro anos depois.

Às vezes, a ironia é bem irônica.

Para finalizar, a imensa vantagem de Clement Vallandigham é que ele livrou seu cliente da cadeia e fez com é dito no desenho da liga, resolvendo parte dos problemas com advogados. Valeu, Clementildo!

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