Códigos, interpretações equivocadas e má-fé

De vez em nunca eu acesso sites que parecem ser feitos no mundo de Qward, bem no centro do Universo de Anti-Matéria, vulgarmente conhecido como Planeta Bíblia. Simplesmente, porque o blábláblá é sempre o mesmo: Evolução não existe, pastor fulano fez milagre, apareceu Nossa Senhora das Torradas, Jesus fez graça na bunda de um cachorro, mimimi, Darwin é feio. Como eu sei a opinião desse pessoal, não tenho porque perder meu tempo, da mesma maneira como não perco tempo com idiotas pregando que a Nova Ordem Mundial do cacete a quatro está dominando o mundo e que os EUA usaram o HAARP para fazer a Yoani aparecer no Brasil. Entretanto, me mandaram uma matéria um tanto esquisita: cientistas descobriram um código secreto na Bíblia que traz o segredo da vida, do universo e tudo mais.

Mas as coisas não são tão simples assim, e há mais coisas entre a verdade e a superstição do que sonha a sua quinta dimensão.

Tudo começa com o Gospel+, uma espécie de Meia Hora do mundo evangélico. Eles vieram com a seguinte matéria bombástica: Cientistas afirmam terem encontrado “código da vida” no livro de Gênesis. Dafuq? Mais uma daquelas palhaçadas de Códigos da Bíblia? Se for, teremos que aceitar as verdades escritas no Código Moby Dick.

De acordo com o texto do Gospel+, cientistas descobriram um código secreto que se não fosse por eles, estaria obscurecido até a chegada do Computador Quântico Universal. Citando:

Como exemplo da técnica, os pesquisadores decidiram mostrar o que acontece quando você procurar a palavra “vida” e “morte” no livro de Gênesis. A análise mostrou que no Gênesis nos versos que começam e fechar as principais divisões do livro são frequentes as referências à vida, enquanto a morte só pode ser encontrada em versos centrais

Glória Alelo-Uia! Isso mostra a inspiração divina, certo? Seria, diz o o filho do Lácio que Consensvs tollit errorem, O erro repetido passa por verdade. Então, vejamos as origens dessa pesquisa.

O dr. Gordon Rugg é professor de Computação e Matemática da Universidade Keele. Ele se graduou primariamente em Francês e Linguística, para depois ter seu doutorado em Psicologia Experimental, trabalhando também com Inteligência Artificial, Arqueologia etc. Bundão, ele não é, tendo 30 publicações e 331 citações.

O dr. David Musgrave também não é um mané, já que nenhum mané consegue doutorado em Estudos Cuneiformes. Nem mesmo eu (e olhem que eu sou eu!) leio cuneiforme. Ele é professor da Universidade Amridge, uma universidade cristã, segundo eles mesmos.

A pesquisa dos dois não revela um código místico. O texto estudado serviu para que, informalmente, fosse chamado de Genesis Death Sandwich (Sanduíche Mortal do Gênesis), onde um padrão retórico aparece na estrutura do texto do Gênesis, ao contar como o Universo foi criado. Eles também analisaram outros livros, mas não numa sequência, além de peças de Shakespeare, documentos da Guerra de Secessão etc.

Sim, crianças, o estudo não foi para atestar a veracidade da Bíblia. Não foi feito em nenhum outro texto bíblico. Além disso, SURPRESA, o texto bíblico analisado NÃO FOI em hebraico e sim a versão King James.

Bandidos! Cientistas malditos que querem trazer uma ditadura cristã e alegrar seus mestres illuminatis!

Sossega a franga que não é nada disso. A meta da pesquisa não era a Bíblia, ela foi pega apenas como um exemplo textual, mas poderia ser qualquer outro. Isso porque o foco da pesquisa é um sistema de análise textual, o

Rugg já tinha se deparado com códigos e enigmas, entre eles o Manuscrito Voynich. A Wired até publicou matéria a respeito em 2004. Então, vemos que ele não é nenhum Adauto Lourenço da vida e sua pesquisa não tem nada a ver com provar que o Sauron Bíblico existe.

A ferramenta de análise textual recebeu o nome de Search Visualizer; e sim, ela tem site. Ela monta uma grade com cada quadrado representando uma palavra e quadrados coloridos representando palavras-chave de busca. Quando usado para examinar a "vida" e as palavras "morte" na versão King James do Gênesis, apareceu um padrão. Notem: não foi através de um código que se chegou a uma mensagem secreta e sim palavras em posições distintas e equilibradas, mediante a ordem que aparecem no texto, repetindo, EM INGLÊS!

Em nenhum momento Rugg e Musgrave (parece nome de dupla de comédia, como Abbot e Costello; e se você conhece estes últimos, é mais velho que eu!) analisaram o texto em hebraico. Outra coisa, o texto originalzão mesmo não é como temos hoje, mesmo em hebraico. Quando os livros da Bíblia foram escritos, não estavam dispostos sob a forma de capítulos e versículos. No caso dos textos judaicos, a forma capítulo/versículo só apareceu com os massoretas, entre os séculos IX e X da Era Comum. Só muito tempo depois (no século XVI) que Robert d´Etiénne é que aplicou a mesma técnica de estilística para o Novo Testamento. Acreditem, se vocês lerem o NT na forma mais original possível (porque não temos os originais-ORIGINAIS), veremos que era uma merda, pois as letras eram todas juntas e não havia espaço entre as palavras ou sequer pontuação. Ler os manuscritos mais antigos está além da capacidade destes pastores de meia-tigela e pior ainda no caso do gado acéfalo que os seguem.

A utilidade prática deste sistema é traçar perfis e analisar padrões de escrita e retórica. É um importante aliado na determinação de fraudes literárias e ajudar peritos em papiloscopia em analisar documentos, pois o seu modo de escrever é tão particular quanto a sua impressão digital.

Então, senhores jornaleiros, não inventem notícia ou modifiquem o significado delas. Mentir é pecado e prestar falso testemunho é terminantemente proibido por um deus mais que mentiroso. A mentira é abeluda e tem perna curta, ou seja, um Tony Ramos anão.


Fonte: Press Release da Universidade Keele

8 comentários em “Códigos, interpretações equivocadas e má-fé

  1. Se até o Manuscrito Voynich tem um padrão de retórica, o que dizer de um texto que foi sabidamente manipulado durante séculos para transmitir uma “mensagem”?
    Qualquer texto longo irá apresentar padrões de escrita, pois é deste modo que a mente trabalha.
    PS. Quando vi um artigo sobre isso no Inovação Tecnológica, pensei se o André não ia comentar também.

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      1. Mas não fica. Padrões de escrita são utilizados para diferenciar autores. Foi assim que chegaram à conclusão que o João Evangelista não é o João Apocalipsista

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    1. @reinaldo, Eu tinha certeza que o André comentaria a respeito, principalmente p/ esclarecer essa mistificação da mídia.

      Achei muito sensacionalista a notícia deles (IT), para minha decepção…

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  2. Bastante esclarecedor este post,no site que li esta notícia estava tudo bem confuso,realmente análise de padrões é um tema bem quente atualmente…

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