
Se você já viu fotos do interior da Estação Espacial Internacional, provavelmente notou que aquilo ali não parece nem de longe com a ponte de comando da Enterprise. Nada de superfícies lisas, hologramas futuristas ou tripulação impecavelmente uniformizada desfilando por corredores minimalistas. A realidade é bem mais… digamos, intimista. Cabos pendurados por todo lado, equipamentos brotando das paredes como cogumelos metálicos, objetos flutuando em arranjos aparentemente caóticos. Não há chuveiro como o que você tem em casa, não há cozinha de verdade e não há sequer uma sala de estar onde a galera possa relaxar depois de um dia duro de ciência orbital.
É o futuro, sim, mas é o futuro que a humanidade conseguiu construir de fato, e que está prestes a completar 25 anos de ocupação ininterrupta. E o mais curioso: arqueólogos estão estudando esse lugar como quem escava ruínas antigas. Só que essas ruínas ainda estão habitadas e orbitando a 400 km de altura.
A ISS é um dos feitos mais notáveis da era moderna: a espaçonave mais complexa, cara e durável já construída. Seus primeiros módulos foram lançados em 1998, e a primeira tripulação (um americano e dois russos) entrou nela em 2000. Em 2 de novembro de 2025, completaram-se 25 anos de habitação contínua por pelo menos duas pessoas, chegando a 13 ao mesmo tempo em alguns momentos. É, como dizem os entusiastas, um exemplo singular de cooperação internacional que resistiu ao teste do tempo, e a tensões geopolíticas que aqui embaixo fizeram muito país virar as costas um para o outro. Duzentas e noventa pessoas de 26 países já visitaram a estação, várias delas ficando um ano ou mais. Pense nisso: mais de 40% de todos os humanos que já foram ao espaço passaram pela ISS. É como se a estação fosse o point obrigatório da órbita terrestre baixa.
Mas aqui é que a história fica interessante de um jeito inesperado. Novembro de 2025 também marca o décimo aniversário do Projeto Arqueológico da Estação Espacial Internacional, uma iniciativa que soa tão absurda quanto fascinante: arqueólogos estudando um lugar que ainda está sendo usado.
Mas hein? É, pois, é! Tem gente aplicando métodos arqueológicos para entender como astronautas vivem e trabalham no espaço. E antes que você pergunte “mas por quê?”, a resposta é simples e reveladora: havia pouquíssima pesquisa sobre os aspectos sociais e culturais da vida no Espaço. As agências espaciais estão planejando missões de três anos para Marte, mas ninguém estava prestando muita atenção em como humanos realmente se adaptam a viver confinados em latas de metal orbitando o planeta.
O dr. Justin St. P. Walsh é professor de História da Arte, Arqueologia e Estudos Espaciais na Chapman University, na Califórnia, e também é o tipo de acadêmico que olhou para o campo da Arqueologia e meio que se cansou de catar cacos de cerâmica, relógios de bolso de dez mil anos e a Arca da Aliança, então, ele pensou: “Sabe de uma coisa? Vou estudar o Espaço!”. Para tanto, ele e seu resolveram estudar os astronautas como se fossem novas espécies, o que seria mais doa alçada de um zoólogo do que um arqueólogo, mas não entrarei neste mérito.
Todos os estudos anteriores de sociedades contemporâneas mostraram que as pessoas frequentemente não querem discutir todas as suas vidas com pesquisadores, ou são incapazes de articular todas as suas experiências. E tem outro detalhe delicioso: astronautas na Terra geralmente estão tentando conseguir sua próxima viagem de volta ao Espaço e, compreensivelmente, não querem criar problemas. Então os arqueólogos tiveram que ser criativos.
O problema óbvio é que eles não podem ir até a Estação para observá-la diretamente. A solução? Em novembro de 2015, perceberam que poderiam usar as milhares de fotos tiradas pela tripulação e publicadas pela NASA como ponto de partida, permitindo rastrear o movimento de pessoas e coisas pelo local ao longo do tempo e mapear comportamentos e associações entre eles. Basicamente, eles viraram detetives espaciais, analisando imagens como quem estuda pinturas rupestres, só que com Wi-Fi e metadata. Em 2022, o projeto também realizou o primeiro trabalho de campo arqueológico fora da Terra, um experimento desenhado pela colaboradora Alice Gorman. Pediram à tripulação para documentar seis locais amostrais em diferentes módulos, fotografando cada um todos os dias por dois meses.
E o que esses arqueólogos espaciais descobriram? Coisas surpreendentemente humanas. Apesar da natureza internacional da estação, a maioria das áreas é altamente nacionalizada, com cada agência espacial controlando seus próprios módulos e, frequentemente, as atividades que acontecem em cada um. Isso faz sentido, já que cada agência precisa prestar contas aos seus próprios contribuintes e mostrar como o dinheiro está sendo gasto. Mas, como observam os pesquisadores com uma ponta de ironia, provavelmente não é a maneira mais eficiente de administrar o que é o projeto de construção mais caro da história da humanidade. É como se você tivesse uma república de cinco amigos, mas cada um trancasse seu quarto e só deixasse os outros entrarem com hora marcada.
Mas a tripulação mostra sinais de autonomia. Eles às vezes criam novos usos para diferentes áreas. Usaram uma estação de trabalho de manutenção para armazenar todo tipo de coisa sem relação com manutenção, simplesmente porque tem muito velcro para segurar itens no lugar. Velcro, esse humilde material que conhecemos dos tênis infantis, virou o grande organizador da vida orbital. Eles precisam inventar soluções para armazenar seus kits de higiene pessoal porque esse tipo de recurso não foi considerado necessário pelos designers da ISS há 30 ou 40 anos. Imagina planejar uma casa para outras pessoas e esquecer de incluir um lugar para guardar escova de dentes. Agora imagina essa casa flutuando no espaço.
Na pesquisa mais recente, os arqueólogos rastrearam mudanças na atividade científica, que descobriram ter se tornado cada vez mais diversa, documentando o uso de equipamentos experimentais especializados. A estação tem sido o local de milhares de estudos científicos e de engenharia usando quase 200 instalações científicas distintas, investigando tudo, desde fenômenos astronômicos e física básica até saúde da tripulação e crescimento de plantas. O fenômeno do turismo espacial nasceu na estação espacial. É um laboratório, um hotel, um lar temporário e, aparentemente, um sítio arqueológico em tempo real.
Esse trabalho surgiu de perguntas de uma das empresas competindo para construir uma sucessora comercial da ISS em órbita baixa. A empresa queria saber se os arqueólogos poderiam dizer quais instalações seus futuros clientes provavelmente precisariam. E descobrir como pessoas usaram diferentes partes de um local ao longo do tempo é, claro, um problema arqueológico típico, só que geralmente envolvendo civilizações extintas, não astronautas vivos tirando selfies. As empresas estão usando esses resultados para melhorar as experiências de suas tripulações.
O que esses arqueólogos espaciais estão fazendo é demonstrar algo que frequentemente esquecemos: estudos arqueológicos semelhantes de questões contemporâneas aqui na Terra também podem tornar vidas futuras melhores, seja estudando fenômenos como migração, etnonacionalismo ou questões ecológicas. Dessa forma, eles e outros arqueólogos contemporâneos estão traçando um novo futuro para estudar o passado, um caminho para a disciplina que existe ao lado do trabalho tradicional de investigar sociedades antigas e gerenciar recursos patrimoniais. E, como concluem os pesquisadores com satisfação quase palpável, o trabalho na ISS também demonstra a relevância da pesquisa em ciências sociais para resolver todo tipo de problema, até aqueles que parecem puramente técnicos, como viver no espaço.
Então, da próxima vez que você vir uma foto da ISS com aquela bagunça organizada de cabos, equipamentos e velcro por todo lado, lembre-se: aquilo não é só uma espaçonave. É um documento vivo de como nossa espécie se adapta, improvisa e sobrevive quando sai do planeta. É arqueologia acontecendo em tempo real a 28 mil km por hora. E é a prova de que, não importa quão longe a gente vá, continuamos sendo essencialmente humanos: arrumando gavetas, personalizando espaços e, ocasionalmente, brigando por causa da pasta de dente.
Fontes:

Um comentário em “Arqueologia no Espaço: Como velcro, cabos e gambiarras revelam os segredos da ISS”