Quando o Sol está de mau-humor e dá um lembrete quem manda por aqui

Maio de 2024. Uma parte do Sol simplesmente explodiu. Não foi uma explosão qualquer, daquelas que você vê em filme B de ficção científica. Por alguns dias, bolhas magnéticas carregadas com bilhões de toneladas de plasma viajaram pelo espaço a velocidades 6.000 vezes maiores que um jato comercial, até colidirem com o campo magnético da Terra. O resultado? Auroras espetaculares visíveis em lugares onde auroras não deveriam existir, alguns satélites perdidos, agricultores americanos lamentando US$ 500 milhões em prejuízos e, claro, milhões de fotos no Instagram.

Mas aqui está o detalhe que deveria nos tirar o sono: essa tempestade solar foi uma das mais intensas em 20 anos, e ainda assim foi fichinha perto do que o Sol já nos aprontou antes. E perto do que pode aprontar de novo.

Para entender a verdadeira magnitude dessa ameaça, precisamos voltar no tempo. Muito tempo. Entre nas árvores.

Em 2012, a física Fusa Miyake, da Universidade de Nagoya, no Japão, estava estudando anéis de crescimento de um cedro japonês de 1.900 anos quando encontrou algo perturbador: um pico acentuado de carbono-14 radioativo no anel datado de 774-775 E.C., cerca de 20 vezes maior que as flutuações ordinárias de radiação cósmica. Outras equipes confirmaram o pico em madeira da Alemanha, Rússia, Estados Unidos, Finlândia e Nova Zelândia. Fosse o que fosse, árvores no mundo inteiro registraram. A descoberta revolucionou nossa compreensão do Sol: aquela tempestade de 774-775 E.C. foi pelo menos 10 vezes mais forte que o famoso Evento Carrington de 1859, considerado até então o pior cenário possível.

Outro evento similar ocorreu em 993 E.C. Desde então, cientistas identificaram evidências de pelo menos seis a nove desses “Eventos Miyake” nos últimos 15.000 anos, tempestades solares tão violentas que deixaram cicatrizes radioativas em árvores ao redor do planeta. O campeão absoluto foi descoberto em 2023: uma tempestade que atingiu a Terra há 14.300 anos, duas vezes mais poderosa que os eventos de 774 e 993 E.C., registrada em pinheiros escoceses preservados nos Alpes franceses.

A natureza exata desses eventos permanece mal compreendida; eles nunca foram diretamente observados e alguns cientistas questionam se todos são mesmo de origem solar, sugerindo fenômenos vindos de além do Sistema Solar, como explosões de raios gama. Mas a evidência predominante aponta para o Sol. E aqui está o problema: se um Evento Miyake acontecesse hoje, esmagaria nossa tecnologia como quem pisa em uma formiga. Antigamente, essas tempestades criavam apenas auroras brilhantes. Isso mudou quando chegamos à era da tecnologia.

Pegue 1º de setembro de 1859, por exemplo. Dois jovens astrônomos britânicos, Richard Carrington e Richard Hodgson, tornaram-se as primeiras pessoas a testemunhar uma erupção solar a olho nu. Dezoito horas depois, auroras vermelho-sangue dançaram pelos céus até a linha do Equador, enquanto linhas telegráficas recém-construídas entraram em curto-circuito por toda a Europa e América do Norte. Alguns operadores de telégrafo relataram choques elétricos. Outros perceberam, perplexos, que seus equipamentos continuavam funcionando

esmo desconectados das baterias; a tempestade estava fornecendo energia própria. O Evento Carrington foi o primeiro indício de que nossa estrela aparentemente pacata poderia transformar-se em algo violento e perigoso. Mas em 1859, o mundo ainda era analógico, e os estragos foram limitados.

A história poderia ter terminado aí, mas então chegamos a maio de 1967, no auge da Guerra Fria. Cientistas da Administração de Serviços de Ciência Ambiental vinham acompanhando manchas solares preocupantes quando, em 23 de maio, uma série de violentas erupções solares derrubou estações de radar americanas no Alasca, Groenlândia e Inglaterra, parte do Sistema de Alerta Precoce de Mísseis Balísticos. Militares interpretaram como possível ataque soviético. Bombardeiros carregados com armas nucleares se prepararam para retaliar. Após dez minutos de discussões tensas, físicos solares convenceram os militares de que o bloqueio era natural. Os aviões permaneceram no solo. A Terceira Guerra Mundial foi adiada por alguns físicos espertos que sabiam ler o que o Sol estava fazendo.

Em março de 1989, a verdadeira vulnerabilidade da civilização moderna ficou clara. Onze poderosas erupções solares precederam ejeções de massa coronal que atingiram a Terra. Em Quebec, a geologia conspirou com o cosmos: a rocha cristalina sob a cidade não conduz eletricidade facilmente, forçando as correntes a irrompem no maior sistema de transmissão hidrelétrica do mundo. Ele entrou em colapso, deixando milhões de pessoas sem energia em clima abaixo de zero. Os reparos revelaram algo perturbador: múltiplos transformadores danificados.

E assim chegamos ao presente, onde a ironia atinge seu pico. Cientistas devem monitorar o Sol em tempo real. Dessa forma, operadores podem reduzir ou redirecionar a eletricidade fluindo pelas redes quando uma ejeção de massa coronal se aproxima. Um pouco de preparação pode prevenir um colapso. Felizmente, satélites e telescópios na Terra hoje mantêm o Sol sob observação constante.

Mas nos Estados Unidos, esforços recentes para reduzir o orçamento científico da NASA lançaram dúvidas sobre planos de substituir satélites de monitoramento solar obsoletos. Até o Telescópio Solar Daniel K. Inouye, o principal observatório solar do mundo, pode em breve ser desativado. Esses potenciais cortes são um lembrete de nossa tendência a descontar riscos existenciais… até ser tarde demais!

E aqui está o cálculo aterrorizante que deveria nos manter acordados à noite: astrônomos descobriram que, a cada século, estrelas semelhantes ao Sol podem explodir em super erupções até 10.000 vezes mais poderosas que as mais fortes erupções solares já observadas.

Como o Sol é mais velho e gira mais lentamente que muitas dessas estrelas, suas super erupções podem ser muito mais raras, ocorrendo talvez uma vez a cada 3.000 anos. Mas “talvez” e “3.000 anos” são palavras que oferecem pouco conforto quando sua civilização inteira depende de satélites, GPS, redes elétricas e sistemas de comunicação que podem ser destruídos em questão de horas.

Estimativas atuais indicam que perdas da indústria de seguros dos EUA, caso ocorresse um evento como Carrington hoje, poderiam variar entre US$ 71 bilhões e US$ 433 bilhões, com perdas globais significativamente maiores. E isso considerando apenas um Evento Carrington, não um Evento Miyake, que seria dezenas de vezes pior.

Hoje, a civilização depende de redes elétricas que permitem que commodities, informações e pessoas se movam pelo nosso mundo, desde sistemas de esgoto até constelações de satélites. O que aconteceria se esses sistemas entrassem em colapso repentino em escala continental por meses, até anos? Milhões morreriam? E uma única tempestade solar poderia provocar isso?

E assim caminhamos para o futuro, com uma estrela que ocasionalmente explode em fúria nuclear a 150 milhões de quilômetros de distância, cercados por tecnologias cada vez mais sensíveis a seus caprichos, enquanto cortamos financiamento dos sistemas que poderiam nos avisar com antecedência.

Em 1967, escapamos da guerra nuclear por alguns minutos e alguns físicos espertos. Em 1989, Quebec ficou sem energia mas sobreviveu. As árvores nos contam que o Sol já fez muito, muito pior; há 14.300 anos, há 1.250 anos, há mil anos. E não há nada – absolutamente nada! – que nos garanta que não fará de novo. A diferença é que hoje, com bilhões de pessoas dependendo de sistemas interconectados que podem entrar em colapso simultaneamente, “pior” tem um significado que nossos ancestrais nem poderiam imaginar.

O Sol é uma estrela tranquila, dizem os astrofísicos. Comparada a outras estrelas, ela é mesmo.

Até não ser mais.


Fonte: Conversation

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