Estou aqui hoje só para dizer como sou um afortunado. Digo, sem ter nenhum pudor quanto a isso, que sou um cara de muita sorte. Nossos avós, bisavós ou nossos mais antigos antepassados olhavam para o mundo que então conheciam e se perguntavam o que era aquilo. Os riscos no céu durante uma noite chuvosa era algo que eles não sabiam.
Ao longo de nossa história, buscamos perguntas e tivemos muitas respostas. De início, não eram as que esperávamos e muitas delas eram tão ou mais misteriosas que as perguntas feitas anteriormente. Durante todo este percurso, fomos adicionando mais e mais conhecimento, saber. E este conhecimento tinha um nome na Roma Antiga: Scientia, que hoje nós chamamos de Ciência.
A Ciência é a mais maravilhosa das aventuras da Humanidade. Ela nos dá muitas respostas, mas também muitas outras perguntas. E são novas perguntas que impulsionam as pesquisas e o desenvolvimento de novas tecnologias e a melhoria de nossas próprias vidas
Eu olho pela janela e vejo o que meus ancestrais não viram. Vejo prédios, automóveis, aviões e crianças brincando sem o risco de doenças que até poucos anos eram mortais. A poliomielite foi erradicada, assim como a varíola. 80% dos casos de câncer, quando detectados no início, são curáveis. Converso (e vejo) com amigos do outro lado do mundo como se eles estivessem à minha frente. Posso ler um livro publicado na China e comprar roupas leves, mas que me mantém aquecido, posso ter alimentos que não estão tão sujeitos a pragas e beber água isenta de substâncias tóxicas ou microorganismos que poderiam me fazer mal.
De todas as ciências, a que eu mais gosto é aquela na qual me graduei: a Química. Ser químico é muito mais que o sonho adolescente de fazer algo explodir. É saber por que o aço é duro enquanto o papel é mole. É saber por que eu posso olhar através do vidro, mas não de um bloco de granito. É sentir o sabor de um bom vinho e saber que os nutrientes da terra onde a uva que originou a referida bebida influenciou no paladar, assim como eu sei que dois óleos extraídos de flores ou mesmo cascas de árvores, ao se misturarem, podem resultar um perfume magnífico que realçará a beleza de qualquer mulher.
Entender a Química é entender o mundo. É saber por que eu tenho que fazer uma liga de prata e ouro, pois este último é tão mole que jamais poderia ser usado em estado puro na confecção de jóias, enquanto o mesmo não acontece com diamantes. Mas eu sei que muito dos diamantes se perde no processo de lapidação, pois em estado bruto ele é feio, opaco e muito provavelmente você xingaria se ele entrasse em seu sapato.
Educadores pós-modernos enfatizam que tudo tem uma linguagem própria, que a linguagem deve ser usada etc.; só que não dizem que linguagem é essa. Só quem domina um idioma pode ensiná-lo e é por isso que professores nativos são bem mais valorizados, pois eles realmente conhecem o idioma no qual foram criados. Deixem-me, portanto, falar um pouco da linguagem da Química, pois, expert que sou, estou mais capacitado de falar sobre ele do que quem nunca “falou” este idioma, assim como um esquimó dificilmente poderia dar aula de gaélico para um irlandês.
Todo idioma precisa de uma coisa: uma regra de uso e escrita, uma gramática e ortografia que proverão as regras de uso da linguagem. Antes de qualquer coisa, é preciso grafá-la, isto é, fazer registros ou marcas escritas de forma com que eu tenha documentos ou mesmo melhore a minha comunicação.
Antes de prosseguir, vamos falar um pouco sobre língua portuguesa. A menor unidade de informação desse idioma é a letra. Letras se reúnem para formar palavras e palavras se juntam para formar frases, períodos, orações, textos, livros e assim por diante. Entretanto, as palavras não se juntam de qualquer maneira, já que as letras não se juntam de forma aleatória.
Por exemplo, eu sei que antes de P e B não se coloca a letra N. Sei que antes de E e I não se usa Ç e este mesmo Ç não é a letra inicial de nenhuma palavra. São as chamadas regras da ortografia, em grego, “escrever corretamente”. A bem da verdade, Ç nem sequer é uma letra. O cedilha é um sinal gráfico, e se vem uma tecla só para ele, é devido à quantidade de vezes que a usamos, da mesma forma como K, W e Y não estavam no alfabeto oficial até a chegada do novo acordo ortográfico e mesmo assim estavam presentes em qualquer teclado de computador ou mesmo de antigas máquinas de escrever. O motivo seria que tais letras são usadas em estrangeirismos e nomes próprios. Curiosamente, as diferentes consoantes com sinais gráficos, como as que estão presentes nas línguas eslavas, não estão. Creio que pelo fato dos sérvios não terem inventado a máquina de escrever e pela imensa profusão de consoantes com sinais gráficos. A letra N é acentuada no espanhol, mas ninguém se importa com isso. E as vogais acentuadas também não possuem teclas próprias ou teríamos um teclado com quase um milhar de teclas.
Para concluir o último parágrafo, eu só faço a observação que estou me referindo a idiomas que usam alfabetos latinos e não ideogramas chineses, alfabeto cirílico ou mesmo grego. Continuemos.
A disposição das letras influenciará na palavra. Por exemplo, a palavra AMOR. Se eu simplesmente inverter a palavra, eu terei ROMA. Se eu trocar duas letras de posição, eu terei RAMO. Mas se eu escrever AORM, não terei nada, pois tal palavra inexiste na língua portuguesa. Da mesma forma, a disposição das palavras numa frase mudará o sentido (ou não) dessa frase. Poderei dar um significado totalmente diferente ou mesmo ter uma frase que não faz sentido algum. Uma simples vírgula é suficiente para alterar todo o sentido de uma frase! É assim que funciona a gramática e a ortografia, mas o que isso tem a ver com Química?
A Química é a ciência que estuda a matéria, suas transformações e reações. Eu simplesmente fico possesso quando vejo documentos, ementas e coisas semelhantes, expedidos por gente que não sabe nada, virem com a expressão “transformações químicas” como sendo sinônimo de “reações químicas”. Parece coisa dos tempos dos alquimistas que queriam transformar chumbo em ouro.
É a Química que me diz por que acender um fósforo perto de uma mangueira vazando gás butano (o chamado “gás de cozinha” ou GLP, Gás Liquefeito de Petróleo) eu terei um acidente. É ela que me diz que, se eu misturar enxofre, carvão e areia, não terei nada demais, mas se substituir a areia por salitre, eu terei o explosivo conhecido como pólvora. É a Química que me diz que eu posso (e devo) respirar oxigênio, mas se respirar uma atmosfera com mais de 25% de oxigênio, eu estarei correndo perigo de vida, enquanto que se respirar monóxido de carbono, muito provavelmente eu morrerei. É a Química que me diz que se eu colocar nitrato de amônio na terra, uma plantinha ficará feliz da vida e crescerá bonita e forte, mas que se eu tirar quantidades significativas de nutrientes da terra, a planta só sobreviverá se estiver adaptada a retirar nitrogênio de outras fontes, nem mesmo que aprisione animais para consumir seu corpo. E se, ao invés de dar o nitrato de amônio pra plantinha eu misturar com óleo diesel, eu terei o explosivo ANFO.
Nada na Química acontece por acaso, e se os idiomas possuem suas regras de sintaxe, gramática e ortografia, a Química tem o que chamamos “Leis da Química”, um conjunto de regras invioláveis que regulam todas as substâncias, não importando se é uma poça d’água na rua em frente à sua casa ou o mar de gelo do satélite Enceladus, que orbita Saturno. São as leis da Química que me dizem “Todo sal é sólido em temperatura ambiente”. Elas também dizem “Ácidos reagem com bases em quantidades equivalentes, gerando sais e água”.
A Natureza consegue ser complexa em sua simplicidade. A menor “informação” de uma entidade química é o elemento, em toda sua glória num único átomo. Na Natureza, apenas 92 elementos são naturais. Todos os demais são feitos pelo Homem. Os átomos são as menores porções desses elementos. Alguns poderão argumentar que o átomo se divide em prótons, nêutrons e elétrons. Não estão errados, mas do ponto de vista químico, eles informam pouco. O número de prótons dentro de um elemento identificará qual elemento ele é. Fora isso, pouco importa. Só quando há reações nucleares é que isso passará a ser interessante, mas estamos na fronteira que separa a Química da Física.
Elementos se combinam formando substâncias simples ou compostas. Substâncias simples são aquelas formadas por um único tipo de elemento, como o caso do gás oxigênio, O2. Já as substâncias compostas são formadas por, pelo menos, dois elementos diferentes. Por exemplo, H2O. Esses elementos não se juntam de qualquer maneira, de qualquer jeito ou com qualquer um. Há regras.
O oxigênio SEMPRE se combinará com 2 átomos de hidrogênio, mas com apenas um único átomo de cálcio. Claro que se eu tiver mais um átomo de carbono, eu poderei ter mais dois átomos de oxigênio e eu terei o calcário, ou como pedantes chamamos, CaCO3.
Da mesma forma que eu posso trocar letras de posição criando outras palavras, no que chamamos “anagramas”, na Química eu posso mudar a ordem em que os elementos se juntam, formando substâncias totalmente diferentes, como é o caso abaixo.
As substâncias reagem ou deixam de reagir mediante suas propriedades. Posso colocar o quanto quiser de areia na água e nem um só miligrama será dissolvido. Entretanto, ao colocar esta mesma areia em uma solução de ácido fluorídrico, ela se dissolverá. Mágica? Não, apenas porque o ácido fluorídrico reagirá com a sílica da areia, formando outras substâncias. Entretanto, não é a mesma coisa que dissolver açúcar em água. Se eu evaporar a água, o açúcar estará lá, ileso, ao passo que a areia deixará de existir enquanto areia; ainda assim, seus átomos estarão lá, intocáveis. Cada átomo sendo uma pecinha de Lego, e eu posso desmontar um avião feito de Lego e montá-lo novamente com a forma de um prédio, um navio, um carro etc. Sempre as mesmas peças, pois nenhuma apareceu do nada, por magia. Na Química, chamamos de Lei da Conservação das Massas ou, mais simplesmente, o que eu tinha antes, eu terei depois. Átomos não viajam pro sul no inverno e nem são como seu cunhado que aparece do nada, sem avisar.
É tão divertido ser químico, ver os rótulos das embalagens e ter um risinho sardônico ao ver unidades de energia sendo expressas de maneira errada, ver sacos de gelo com a advertência que não contém glúten, assistir a comerciais com a ressalva que este ou aquele produto “não contém química”. Longe de ficar ofendido dada a ignorância, isso me diverte, da mesma maneira como contamos uma piada e só quem entendeu riu e os outros… bem, os outros não são parte da “confraria”. No Máximo, acho deplorável notícias e textos defendendo algo como a ingestão de clorofila, pois “faz bem”, pois isso indica total ignorância propagada por gente que estava dormindo durante a aula ou que se recusa a acreditar em informações como o fato do Sol não ter influência nenhuma em seu nascimento. No máximo, influenciará com todos os joules de energia emitidos continuamente sob a forma de luz ultravioleta, que alegremente lhe dará um câncer de pele se você não se cuidar. A Química só é responsável pela estupidez das pessoas se levarmos em conta as deficiências vitamínicas no organismo ou por uma neuroquímica que propicia surtos dentro do cérebro.
Nada disso importa. Por quê? Porque a energia térmica do Sol aquece o solo e a massa de ar que envolve a Terra, apressando o ciclo hidrológico e promove a evaporação de grandes massas de água. Isso faz com que a temperatura dos gases subam, aumentando o choque das moléculas, obrigando-as a ter um volume e pressão maiores, o que acarreta na movimentação dessas massas de gases. Nisso, a ação gravitacional da Lua somada à rotação da Terra promove o arraste dos oceanos e a mesma massa de ar que circula pelo mundo obriga a água se movimentar também, em direção à costa. As moléculas se chocam e a energia mecânica é transferida para o ambiente, promovendo o aparecimento de ondas mecânicas que reverberam em todas as direções.
A Química me ensinou que extratos de plantas são melhor obtidos por meio de solventes próprios, mas muitas vezes podemos usar água, mesmo. Só que alguns desses extratos são quase insolúveis, então eu melhoro sua solubilidade aumentando o choque de suas moléculas ao ceder energia ao sistema. Concentrações mais elevadas de açúcar serão bem aceitas pelo meu organismo, onde enzimas quebrarão moléculas de sacarose e a converterão em glicose, que será armazenada sob a forma de glicogênio, servindo como reserva energética.
Por causa das moléculas de ar, os raios do Sol refratam na atmosfera, que absorve energia radiante na faixa de comprimento de onda referente ao amarelo. A Química e a Física me ensinaram isso, mas não me ensinaram uma coisa nata nos bilhões de neurônios que criam sinapses a todo momento:
Como é delicioso estar sentado na varanda, sentindo a brisa no rosto num dia ensolarado, enquanto escuto o som das ondas do mar logo à frente, enquanto bebo um delicioso café.
A química é realmente bela, pena que pouquíssimas pessoas pensam assim.
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Raramente comento, mas hoje vou me arriscar pois fiquei feliz com os segundo e terceiro parágrafos por coinciderem com o que penso também, tendo a mesma percepção. Fiz considerações sobre a Ciência, sobre a aventura humana no planetinha, sobre a maravilha que é saber mais e mais, perseguir respostas que levarão a mais perguntas e assim por diante, na gloriosa tarefa de construir conhecimento. A matéria era no BOL/UOL, sobre “lentes de contato com recursos tecnológicos especiais podem ser lançadas já em 2014”. Biologia, eletrônica, informática, etc. Tudo junto na dança do conhecimento que nada tem de sobrenatural, não cai do céu, mas é fruto de muito estudo, trabalho, investimentos bem aplicados, dedicação de gente que ‘gasta’ seus melhores anos da vida debruçada sobre livros, computadodores, experimentos, testando, acertando, errando e começando de novo e de novo e de novo e de novo até…Bem, até o próximo desafio.
Se permitir, gostaria de copiar o post e mandar para alguns amigos, citando a fonte, evidentemente.
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Se permitir, gostaria de copiar o post e mandar para alguns amigos, citando a fonte, evidentemente.
Desculpe, mas não. Manda o link do artigo pro seu pessoal com algo como “pessoal, olha só que maneiro que eu achei”. Ninguém transcreve um livro inteiro e manda pros amigos; apenas indica o título e o autor, quando muito em que livraria pode encontrar.
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Excelente postagem, já compartilhei com o pessoal que tiver interesse lá no facebook.
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Poético e estimulante, apenas lamento não ter tido a possibilidade de lê-lo nos idos de 1993, quando cursava o segundo grau.
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Belo texto!
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Andre eu venho lendo o seu site faz um tempo, eu sou um aluno do terceiro ano e ainda to pensando em uma profissao mais voltada pra area de exatas(nao sou um genio da matematica mas penso eu que nao aguentaria uma ”profissao generica” como direito e etc), entao é o seguinte:
Eu ja li que voce diz que ja trabalhou como quimico industrial e queria saber se na sua opiniao é preciso ter alguma aptidao mais ”natural” ou boa vontade seria o suficiente e se fosse pra mexer com algo na area da quimica seria mais interessante se formar em algo como engenharia quimica ou alguma outra especializaçao…
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Saulo, quando eu me formei, só havia Engenharia Química, Química Industrial e Bacharelado em Química. Atualmente, tem um sem-número de cursos. Engenharia de Petróleo, Química Analítica, Bioquímica etc, cada uma com atribuições diferentes.
Vc acha que tem aptidão pra Química? Bem , já começa que vai usar muita matemática, o que não parece ser o seu problema. Então, o que posso sugerir é que vc vá a uma universidade e converse com o coordenador do curso. Ele ficará muito satisfeito em saber que vc demonstra interesse. Vá no sindicato dos Químicos de seu estado e procure saber do piso salarial e oportunidades de trabalho.
Vc não vai ficar rico da noite pro dia, mas tendo cuidado na escolha e se preparando bem e tendo boas notas, vc não terá, segundo me consta, problemas em arrumar um bom emprego. Lembre-se: idealismo é excelente, fazer o que se gosta mais ainda. Mas todos nós temos que colocar comida em casa. Pense nisso e boa sorte. Se precisar de ajuda, manda um e-mail pro “fale conosco”.
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