Gengibre, exorcismo e uma deidade viajante no seu corpo: o kit médico do Japão Medieval

Quando você vai ao médico hoje, existe um acordo tácito sobre o que esperar: exames de sangue, talvez uma receita de antibióticos, no máximo uma recomendação para cortar o glúten. O que definitivamente não está no cardápio é um exorcismo, uma consulta astrológica ou a informação de que você precisa adiar o tratamento porque uma deidade está passeando pela sua coxa esquerda neste dia; mas nem sempre foi assim. E para entender o quão diferente as coisas já foram, precisamos voltar mil anos no tempo e atravessar o planeta até chegar ao Japão do período Heian.

É lá, entre 1000 e 1012, que uma mulher chamada Murasaki Shikibu está escrevendo aquilo que muitos consideram o primeiro romance da história: “O Conto de Genji”. Nascida por volta de 973 em Kyoto, filha de um intelectual e governador provincial, Murasaki teve o privilégio raro de uma educação completa, dominando até o chinês clássico, a língua da elite intelectual da época. Como dama de companhia na corte imperial da Imperatriz Shōshi, ela tinha um assento VIP para observar a aristocracia japonesa em ação.

O que Murasaki viu – e registrou com precisão quase científica – foi um sistema médico que faria qualquer profissional de saúde moderno ter uma crise existencial. Porque no mundo que Murasaki documentava, curar alguém podia envolver ervas medicinais, sim, mas também podia exigir transferir um espírito maligno para outra pessoa ou simplesmente esperar o dia certo do calendário. E o mais fascinante? Para quem viveu naquela época, isso tudo fazia perfeito sentido.

No romance, momentos cruciais da trama envolvem doenças: a amante do protagonista, Yūgao, adoece e morre pelo que parece ser um espírito poderoso, assim como acontece depois com sua esposa, Aoi. E não estamos falando de licença poética. Registros históricos do Japão medieval estão repletos de descrições de possessões espirituais, geralmente atribuídas a espíritos dos mortos. Como tem sido verdade em muitos tempos e lugares, saúde física e espiritual eram vistas como entrelaçadas. A questão não era se você acreditava em espíritos causando doenças, mas qual especialista convocar para resolver o problema.

E aqui é onde a coisa fica realmente interessante, porque o Japão medieval tinha uma verdadeira equipe multidisciplinar de saúde. Tinha gente para tudo. O governo estabeleceu no final do século VII um departamento encarregado da adivinhação, o Bureau de Yin e Yang, cujos técnicos – conhecidos como onmyōji, ou mestres do yin e yang – eram responsáveis por adivinhação e predição do futuro. Mas não para por aí. Eles também observavam os céus, interpretavam presságios, faziam cálculos de calendário, controlavam o tempo e eventualmente realizavam uma variedade de rituais. Hoje, os onmyōji aparecem como figuras de mago em romances, mangás, animes e videogames; embora muito ficcionalizados, há um núcleo de verdade histórica nessas representações fantásticas.

A partir do século X, os onmyōji foram encarregados de realizar iatromancia: adivinhar a causa de uma doença. Eles distinguiam entre doenças causadas por fatores externos ou internos, embora as fronteiras entre as categorias fossem frequentemente nebulosas. Pense neles como os diagnosticadores místicos do sistema, uma espécie de Gregory House, mas com varinhas de contagem e conhecimento astronômico.

Se a doença fosse induzida por espíritos, monges budistas entravam em ação. Os que se especializavam em práticas de exorcismo eram conhecidos como “genja” e acreditava-se que sabiam expulsar o espírito do corpo do paciente através de poderosas encantações. Mas o processo tinha requintes de crueldade televisiva: o genja transferia o espírito para outra pessoa e forçava-o a revelar sua identidade antes de vencê-lo. Imagina ser o coitado escolhido como “hospedeiro temporário” do espírito malvado. “Desculpa, honorável Shin Hayata, mas você vai ter que segurar esse demônio aqui um instantinho enquanto a gente descobre quem ele é”.

Mas nem tudo era possessão e drama sobrenatural. Embora menos comum que possessões espirituais, a ideia de que fatores físicos também podiam causar doenças aparece em fontes deste período. Desde o final do século VII, o governo do arquipélago japonês estabeleceu uma repartição encarregada do bem-estar de famílias aristocráticas e membros de alto escalão da burocracia estatal: o Bureau de Medicamentos, o Ten’yakuryō, baseado em sistemas similares da dinastia Tang da China. Os membros dessa repartição, que estudiosos hoje chamam de “médicos da corte” em inglês, criavam poções medicinais.

Alguns estudiosos, japoneses e não-japoneses, comparam as práticas dos membros do Bureau de Medicamentos com o que hoje é chamado de “medicina tradicional chinesa”, ou simplesmente “medicina”. Eles tipicamente consideram os onmyōji e monges budistas como pertencentes à categoria de “religião”. Ou, talvez no caso dos onmyōji, “magia”. Mas essa divisão é nossa, não deles. E é aqui que a história fica fascinante de verdade.

Quando o estado japonês centralizado começou a tomar forma no século VII, monges budistas da península coreana e da China atual trouxeram práticas de cura para o Japão. Essas técnicas, como o herbalismo – tratamentos feitos de plantas – mais tarde se associaram aos médicos da corte. Ao mesmo tempo, porém, os monges também empregavam práticas de cura enraizadas em rituais budistas. Claramente, a distinção entre cura ritual e física não fazia parte de sua mentalidade.

Os médicos da corte, é verdade, praticavam principalmente herbalismo nas fontes deste período. Mais tarde, incorporaram cirurgias simples com agulhas e moxabustão, que envolve queimar uma substância derivada de folhas secas da planta artemísia perto da pele do paciente. Até aqui, tudo bem – parece medicina razoavelmente “normal” para os padrões medievais. Mas espera. Eles também incorporaram elementos rituais de várias tradições chinesas: feitiços, adivinhação, predição do futuro e hemerologia, a prática de identificar dias auspiciosos e inauspiciosos para eventos específicos.

E aqui vem minha parte favorita desta história toda: a moxabustão – a técnica de usar o calor gerado pela queima de uma erva (geralmente a artemísia, chamada de moxa) para aquecer pontos de acupuntura na pele – deveria ser evitada em certos dias por causa da posição de uma deidade conhecida como “jinshin”, que se acreditava residir e se mover dentro do corpo humano. Isso mesmo! você tinha um inquilino divino itinerante no seu corpo sem pagar aluguel, o sem-vergonha.

Praticar moxabustão na parte do corpo onde o “jinshin” residia naquele momento específico podia matá-lo, portanto potencialmente prejudicando o paciente. Imagine ter que consultar o calendário e um mapa corporal antes de cada tratamento para não assar acidentalmente sua deidade interna.

“Mal aê! Não posso fazer seu tratamento hoje – o jinshin está passando pelo seu joelho esquerdo”.

Os médicos da corte também eram esperados a ritualmente alugar um lugar para uma mulher grávida dar à luz, produzindo talismãs escritos em tinta vermelha que deviam funcionar como “contratos de locação”. Medicina, imobiliária mística e direito contratual sobrenatural, tudo num pacote só.

Em suma, esses especialistas de cura atravessavam as fronteiras entre o que frequentemente chamamos de “religião” e “medicina”. E aqui mora uma reflexão importante: tomamos como garantidas as categorias que moldam nossa compreensão do mundo ao nosso redor, mas elas são o resultado de processos históricos complexos, e parecem diferentes em cada tempo e lugar.

Quando olhamos para o kit de ferramentas de um curandeiro japonês medieval, com seu arsenal que ia de gengibre e ginseng a exorcismos e calendários astrológicos, não estamos apenas vendo uma curiosidade histórica. Estamos vendo um sistema coerente de pensamento onde mente, corpo, espírito e cosmos formavam uma rede integrada. Eles não dividiam o mundo em compartimentos estanques como nós fazemos: médico aqui, padre ali, astrólogo acolá. Era tudo uma coisa só, um continuum de práticas destinadas a manter ou restaurar o equilíbrio.

Ler obras como “O Conto de Genji” não é apenas uma forma de mergulhar no mundo de uma corte medieval onde espíritos vagam livremente, mas uma chance de ver outras maneiras de organizar a experiência humana em ação. E talvez, quem sabe, questionar um pouco nossas próprias certezas sobre onde traçamos as linhas entre ciência, espiritualidade e magia.

Porque se há algo que o Japão medieval nos ensina é que essas fronteiras são muito mais borradas – e arbitrárias – do que gostamos de admitir. Murasaki Shikibu, com sua pena afiada e olhar observador, nos deixou mais que um romance – deixou uma janela para um mundo onde a cura era uma arte que não cabia em nossas caixinhas modernas.

Você pode acessar ao Conto de Genji AQUI, boa leitura

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