Grandes Nomes da Ciência: Ötzi

O homem exausto dá seus passos cambaleantes. Ele só tem minutos de vida. A dor e a exaustão cobrarão caro e sua vida estará acabada dali a instantes. Ele senta-se em frente ao monte Similaun, inala o ar enregelante e dorme, para nunca mais acordar. Muito, muito tempo depois seu corpo é descoberto e para espanto de todos, era o cadáver de um homem muito, muito velho. Mais velho que a Grande Muralha da China, mais velho que os mais fabulosos anfiteatros romanos, mais velho até que as grandes pirâmides do Egito. O homem batizado como Ötzi viveu quando grandes mamíferos ainda pisavam sobre a terra e dadas as condições em que fora encontrado, ele ficou cognominado O Homem do Gelo.

Em qualquer artigo, diriam que sabe-se muito pouco sobre Ötzi, mas eu discordo. Sabemos MUITO sobre ele. No tempo em que o tataravô do Bob Drake viveu, seu povo ainda não tinha inventado a escrita. Ele praticamente viveu e morreu na pré-história. Era praticamente um João Ninguém (ou, no caso, Ötzi Ninguém da Silva); ele não foi general, imperador, aventureiro ou cientista. Ele não descobriu nada de importante, não projetou palácios e nem se juntou a mais 299 e chamou um império pra sair na mão. Ötzi era um anônimo, nasceu anônimo e morreu anônimo. Não sabemos até hoje como ele se chamava. O nome "Ötzi" vem de ötztal (oriundo do vale de Ötz), afinal tínhamos que chamar o defunto de alguma coisa. Se quem descobriu o corpo de Ötzi fosse norte-americano, provavelmente estariam chamando-o de John Doe até hoje. Se fosse um brasileiro, seria Magrelo. Se fosse um carioca, provavelmente seria Corno, Puto ou Cabeção. Um povo que chama a sede da Prefeitura – o Centro Administrativo São Sebastião – de "Piranhão" é capaz de qualquer coisa.

O corpo de Ötzi foi encontrado por dois turistas alemães a 3210 m de altitude, no monte Fineilspitze. Como encontrar múmias de mais de 5 mil anos não é algo corriqueiro, os dois turistas pensaram que era algum alpinista azarado que morreu ali. Quando o corpo foi resgatado e enviado pros médicos-legais (eu não vejo nada de legal em dissecar defunto, mas ninguém pede a minha opinião nas nomenclaturas), sua idade acabou sendo estimada em 5300 anos. Se eu estivesse na sexta-série, diria que a mãe de algum desafeto meu é tão velha que foi ama de leite de Ötzi.

Sobre Ötzi, sabemos que tinha cerca de 1,60 m de altura, isto é, era nanico, mas deve-se levar em conta o estilo de vida nessa época e a dieta das populações locais. Sabemos também (mais ou menos) como ele estava vestido e seu sapato era tido como o calçado mais antigo do mundo, até que em 2010 foi descoberto um sapato mais velho ainda. Suas roupas estavam espalhadas, algumas bem longe dele, o que é intrigante. Sua idade estimada era de cerca de 46 anos e já não andava muito bem de saúde, já que seu cabelo e unhas não estavam mais fazendo parte de seus apetrechos de fábrica. Ötzi era um camarada bem doente. Ele apresentava resquícios de tatuagens, mas longe de ser por mera decoração, acredita-se que era com objetivos medicinais. É muita coincidência que os pontos tatuados assentam-se próximo aos pontos usados na acupuntura chinesa. Isso pode até ter ficado meio hardcore, mas não parece que ajudou nosso amigo tampinha.

Se você acha que o Jack Nicholson, apesar de bom ator, deve ter muito pouco a ver com defuntos enregelados do período calcolítico, abaixo temos uma foto de Ötxi. Diga "X", garotão!

Parece que está comemorando um gol!

Infelizmente, não se faz omeletes sem quebrar ovos. Ao ser removido de seu leito de morte, muitos registros arqueológicos se perderam. A área do sítio foi afetado e a própria múmia foi danificada, mas era preciso. Boa quantidade de material orgânico estava no local, entre folhas, sementes, restos de madeira e até mesmo musgo pré-histórico estavam lá, muito bem conservados. Os intestinos de Ötzi foram estudados e pesquisadores puderam ter uma ideia de qual foi a sua última refeição.

O Homem do Gelo não era mané e sabia que o frio era um grande inimigo. As roupas encontradas mostraram-se bem adequadas (na época, claro) para enfrentar o clima, sendo composta de 3 camadas grossas de pele. Como nessa época nem todo mundo era tão bonzinho quanto os brasileiros da Kate Lyra, Ötzi, el malvadón, estava armado com um machado de cobre e um punhal de sílex. Não por acaso aquela era chamada de Idade do Cobre, oque demandava uma boa metalurgia, já que fundir cobre é muito complicado.

A dieta de Ötzi era bem diversificada. Foram encontrados traços de trigo, vestígios de carnes de veado e cabra montanhesa, e junto dele foi encontrado uma fruta seca. Há mais de 5 mil anos, Ötzi se alimentava melhor que você (se bem que isso não impediu de ele morrer cedo. A vida tem dessas coisas).

Quem era Ötzi? Andarilho, bandido ou feiticeiro? Não sabemos. Ninguém sabe. Sabemos que morreu provavelmente nos fins do outono, início do inverno, mas isso diz muito? Acho que diz, pois estamos levantando a biografia de alguém que morreu há 5300 anos. Saber que o Homem do Gelo tinha os pares de costelas número 7 e 8 com uma forma um tanto quanto peculiar é muita coisa, ao meu ver. Exames indicam que eles tinham sido quebrados, mas cicatrizaram-se, ficando as costelas do par número 7 coladas com as costelas de par número 8. Ötzi tinha uma anomalia genética: faltavam-lhe o último par de costelas. Hoje, passando-se mais de 20 anos de sua descoberta, todas as informações genéticas que sobreviveram de Ötzi foram mapeadas. O sequenciamento de DNA imortalizou de vez o nosso amigo que entrou numa fria.

Em 2008, cientistas conseguiram sequenciar completamente o DNA mitocondrial de Öetzi. Ele continha mutações que não são encontrados em populações atuais, e levou a especulações se o Homem de Gelo não pertencia a um povo que desapareceu da Europa. Para obter uma melhor imagem da ascendência Ötzi, o DNA do núcleo das células retiradas de uma lasca de osso pélvico de Ötzi foi sequenciado e esta serie de "letrinhas" (eu sei, eu sei) é, simplesmente, responsável por cerca de 96% de seu genoma.

Ötzi, um homem simples, que simplesmente viveu e morreu em regiões frias da Europa deixou seu legado, mais que vários filhos deixariam. Sabemos do seu dia-a-dia, o que ele comia e o que vestia. Intuímos mais ou menos como era a sua aparência e como foi a forma trágica que ele morreu, pois toda morte é uma tragédia para alguém. A análise de seu código genético nos deu muitas informações, como por exemplo a tendência à calcificação do coração e como ele sofria de infecções bacterianas.

O cientista coloca o que sobrou do homem que viveu há mais de 5 mil anos, com todo o respeito, cuidado e reverência para com os mais velhos, quando estes se assentam para contar-nos suas histórias. Todos os dias, Ötzi conta um pouco sobre si mesmo, e é uma história que não terá fim tão cedo, pois a cada linha de sua história, escrevemos mais uma linha na nossa própria história. E Ötzi, o viajante do tempo que veio do passado falar de si mesmo, e são estas histórias que fazem do Homem de Gelo um dos Grandes Nomes da Ciência.


Fontes:

7 comentários em “Grandes Nomes da Ciência: Ötzi

  1. Fiz o cadastro agorinha e meu primeiro comentário vai ser para parabenizar esse blog que eu entro todo dia para ver se tem post novo. =D
    PS: André, sou teu fã.

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  2. André,este texto me fez voltar no tempo em duas épocas distintas:Enquanto lia,pensava em como devia ser difícil a vida no período em que Ötzi viveu;alimentação escassa,a possibilidade de ser atacado por um animal ferroz e faminto,as disputas tribais por parcos recursos,porém valiosíssimos e o pior de tudo:tratamentos de saúde “punks”, baseados nas crenças mais bizaras aos nossos olhos,no entanto,totalmente dotadas de sentido naquele mundo.Outra época que me vei a mente foi quando li sobre Ötzi pela primeira vez.Não me recordo exatamente em que revista de divulgação científica,mas já faz alguns anos.Gostei tanto da história,que assim que li o título do texto pensei comigo:”Olha só rapaz,o cara do gelo!”Mais uma vez o blog da demontração de que é um excelente veículo de divulgação do conhecimento e de histórias maravilhosas.

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  3. André! Já faz algum tempo que acompanho as postagens no ceticismo.net. E venho parabenizá-los pela qualidade e confiabilidade das informações. Com certeza, uma ótima ferramenta de aprendizado e formação de opinião. Pena que a grande maioria das pessoas prefira não sair dos seus mundinhos de fantasia e continuem contribuindo para que se repitam os mesmos erros do passado. O Ceticismo.net entrou na minha lista de favoritos para não sair mais. :smile:

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