
Você deve ter aprendido no colégio que a Queda de Constantinopla se deu em 29 de maio de 1453, marcando o fim da Idade Média e início da Idade Moderna. Obviamente, isso é muito mais complicado do que a princípio parece, mas deixe-me voltar um pouquinho mais no tempo. Quando vários sujeitos fanáticos por esporte, verdadeiros hooligans, salvaram Constantinopla e o próprio Império Bizantino.
Vamos nos situar primeiro.
O Império Romano estava indo desde a Península Ibérica até o Mar Negro (checa aí no mapa que eu sei que você não tem, mas tem acesso à Internet). Administrar este vasto império estava se tornando inviável, ainda mais que sempre tinha um general com algumas ideias a mais na cabeça e um exército à sua disposição. Diocleciano, sabendo o que um general motivado era capaz de fazer (cof cof Caio Júlio César) resolveu dividir o Império em duas metades: o Império Ocidental e o Oriental. O ano era 293 Era Comum.
Diocleciano passou a controlar as províncias orientais e o Egito, estabelecendo sua capital na Nicomédia (atual İzmit, Turquia), tomando para si o título e “Augusto”. Já Galério também tinha o título de “Augusto” e administrava as províncias balcânicas, cuja capital era Sirmio (atual Sremska Mitrovica, Sérvia).
Cada um estabeleceu um co-regente (chamado “César”). Pelo lado de Diocleciano, Maximiano ficou governando a Península Itálica e a África Proconsular. Pelo lado de Maximiano, Constâncio Cloro cuidava da Hispânia, a Gália e a Britânia. Estava formada a Tetrarquia, mas ela não ia durar. Em 305 E.C., Diocleciano abdica do trono e o restante da Tetrarquia se esfacela. Constâncio Cloro deixou a cargo do seu filho para assumir o governo. Seu nome? Constantino. Por fim, a guerra pelo controle do império ficou reduzido a Constantino e Maxêncio, mas este último é derrotado na Batalha da Ponte Mílvia. Constantino transfere a sede de seu governo para uma cidade que ele fundou e batizou: Constantinopla.
Aquela região, outrora foi descoberta e ocupada por colonos chefiados por um certo Bizos. Daí o lugar ficou conhecido como “Bizâncio”. Sua posição estratégica chamou muito a atenção de Constantino (que subiu ao trono e adotou o nome Constantino I), pois é o portal que separa a Europa da Ásia, e uma ponte entre várias culturas.
O Império Romano Ocidental começa a sofrer várias invasões bárbaras enquanto o Oriental se mantém como algo completamente à parte, distinto em tudo. Ali não se falava latim, mas grego, a cultura era profundamente helenizada e o Cristianismo era a religião oficial desde 325 E.C. por ordem de Constantino I, o Grande.
Entre os anos de 364 e 375, o Império Romano estava sob o comando de dois irmãos co-imperadores: Valentiniano I e Valente. Quando Valentiniano faleceu em 375, seus filhos, Valentiniano II e Graciano, assumiram o comando do Império Romano do Ocidente.
Graciano, então, nomeou Teodósio como co-imperador do Oriente em 378, após a morte de Valente, que caiu em batalha contra os godos, na Batalha de Adrianópolis. Teodósio, após algumas batalhas sem resultados decisivos, firmou um tratado permitindo que os godos mantivessem sua independência dentro do Império Romano, em troca de fornecerem tropas para o exército imperial. Esse acordo acabou contribuindo para o enfraquecimento militar romano, culminando no saque de Roma pelos godos em 410. Nesse ínterim, surgiu outro problema vindo do Oriente: os Hunos.
Os hunos se tornaram uma ameaça ao Império Romano do Oriente no final do século IV, quando chegaram à Grande Planície Húngara, e estabeleceram uma base ao norte da fronteira militar romana. O império enfraquecido não foi capaz de conter essas hordas de guerreiros, e se não se pode vencê-los, pague suborno para lhe ajudar a vencer outros bárbaros. Assim, o já empossado imperador Teodósio I contratou-os como mercenários de forma que pudessem ajudá-lo em sua guerra contra os godos.
Os hunos foram lá pro Ocidente, colocaram os godos para correr e voltaram com uma bela proposta para o império recém-formado: o Império Romano Oriental, que futuramente seria chamado Império Bizantino (apesar que os bizantinos não se chamarem assim. Eles se autoproclamavam romanos). Teodósio II, Imperador Bizantino que subiu ao poder no ano 402, vendo o que aconteceu com o Ocidente, resolveu fortificar Constantinopla ainda mais. Constantino I já tinha fortificado a cidade, mas Teodósio II, prevendo que em algum momento ia dar muito ruim, mandou ampliar e avançar os muros da cidade no ano 420, instando o prefeito Antêmio a construir os novos muros o mais rápido possível. Esse “mais rápido possível” levou 20 anos!

Os novos muros incluíam áreas maiores da cidade e tinham 5,5 km de extensão, contando com 12 metros de altura e 96 torres de 18 metros de altura, rodeado por um fosso. Tudo fica melhor com um fosso. Fosso é que nem bluetooth!

Em 440, uma segunda linha de parede de 8 metros de altura foi adicionada e o número de torres foi aumentado para 192. As novas muralhas ofereciam uma proteção muito melhor do que a cidade tinha anteriormente. Parte desta estrutura está de pé até hoje.

Enquanto o muro estava sendo construído, os hunos continuavam sendo o que sempre foram: gente tocando o terror, e entre esses arruaceiros bem armados, ótimos nas batalhas e guerreiros ferozes estava um rapaz valente e não muito bem conhecido pela sua misericórdia ao tratar inimigos, e receberia futuramente a alcunha O Flagelo de Deus. Seu nome era Átila.
Quando Átila se tornou o líder dos hunos em 434, o Império Romano do Oriente já estava pagando uma taxa anual aos hunos para permanecer em paz com Constantinopla. As exigências de Átila dobraram os 115, para 230 kg de ouro e a paz permaneceu… por enquanto. Em 437, um forte abalo sísmico danificou a muralha e rapidamente Antêmio foi posto para trabalhar e colocar a muralha operacional novamente.
Em 439, o imperador Teodósio II enviou uma força expedicionária para a Sicília, para que as forças combinadas orientais e ocidentais atacassem o recém-estabelecido Reino dos Vândalos no norte da África, e o Ocidente recuperasse o celeiro perdido de Roma.
Neste ponto, o exército oriental foi chamado correndo e às pressas voltou o mais rápido que pôde devido à uma outra ameaça iminente: Átila estava atacando. Seus hunos derrotaram duas vezes as forças romanas estacionadas ao sul do Danúbio, e Teodósio II acaba tendo que aceitar a humilhante ordem de pagar a eles 700kg de ouro. O ano era 443, e Átila viu as muralhas teodosianas lá, grandes, intransponíveis, imponentes.
Mas o horror dos horrores aconteceu em 27 de janeiro de 447, sob a forma de um forte terremoto que atingiu Constantinopla, causando sérios danos aos edifícios da cidade e às muralhas recém-construídas. Grandes seções foram completamente destruídas, juntamente com 57 torres. Em poucos instantes, a defesa da cidade entrou em colapso e surgiu a oportunidade para os hunos atacarem de vez e de forma impiedosa, já que esta era uma oportunidade única na vida para eles. Com sua força, não havia dúvidas de que conseguiriam entrar na cidade pelos rasgos abertos nas paredes. Uma vez lá dentro, eles teriam enormes pilhagens à sua disposição.
Os cidadãos de Constantinopla ficaram apavorados com a perspectiva dos hunos invadirem destruindo sua amada cidade. Em procissões pela cidade, junto com o imperador e o patriarca, eles oraram a Deus pela salvação. O Imperador deixou a cargo do Prefeito Pretoriano do Oriente, Flávio Constantino a batata quentíssima para resolver este problema, e não era um problema qualquer. Era algo catastrófico!
As imensas paredes fortificadas levaram mais de nove anos para serem construídas, e agora um homem estava encarregado da tarefa aparentemente impossível de repará-las em apenas alguns meses. Flávio Constantino era novo em seu posto e tinha uma tarefa enorme pela frente, e ele sabia muito bem o que aconteceria se ele não resolvesse, e não estamos falando dos hunos. Mas ele também sabia que a sua cidade tinha uma característica fenomenal que ele poderia explorar se jogasse do jeito certo: apelar para o imenso espírito de competição.
Assim. Flávio Constantino, munindo-se de coragem (e segundo imagino boas talagadas de vinho para se manter firme) adotou uma abordagem um pouco diferente, algo totalmente heterodoxo. Ele foi pedir ajuda às torcidas organizadas.
Péra, como assim?
Uma das maiores atrações de Constantinopla era o imenso hipódromo. Lá, diversas corridas de bigas ou de cavalos aconteciam, além de lutas com gladiadores e todo tipo de esporte que faz a multidão ir à loucura. Naquele magnífico hipódromo com 450 m de comprimento e 130 m de largura, construído sob as ordens do próprio imperador Constantino, o Grande, havia lugar para mais de 100.000 espectadores. No meio do Hipódromo havia uma pista de corrida que contornava a longa barreira central chamada espinha. Sabem o filme do Ben-Hur? Pois, é!
Abaixo como era antes e como está hoje.

Os obeliscos ainda estão de pé.

O Hipódromo não era apenas o local esportivo, mas também um lugar onde os imperadores podiam sentir o clamor do povo. As corridas de bigas eram verdadeiras festas e os imperadores quase sempre as frequentavam. Além disso, elas eram financiadas pelo próprio Imperador ou pelo Prefeito. Enquanto assistiam à corrida de seu camarote imperial, a multidão os cumprimentava ou vaiava. As corridas de bigas eram os únicos lugares onde as pessoas simples podiam entrar em contato com seus governantes e estes davam a parte do Circo ali, enquanto o Pão ficava para depois.
O esporte era tão levado a sério que havia até torcidas organizadas!. Os vermelhos, os Verdes, os Azuis e os Brancos, mas quando o muro ruiu com o terremoto, apenas duas torcidas existiam: os Azuis e Verdes, tendo incorporado os brancos e vermelhos, respectivamente. E como todo espetáculo com torcidas, às vezes saía brigas, tumulto, confusão, agressões, ainda mais com vinho rolando solto. Sim, mortes, também, e a guarda passava trabalho para colocar todo mundo em ordem! Nada muito diferente das finais de campeonato de futebol de hoje.
Foi para essas pessoas que Flávio Constantino se dirigiu quando chegou ao Hipódromo naquela manhã; ele não sabia qual seria a reação, mas ele podia contar com a boa e velha psicologia. De uma forma teatral, o Prefeito ergueu as mãos e fez um anúncio simples àquele grupo tumultuado de fãs: Constantinopla, a Rainha das Rainhas de todas as cidades estava em perigo. A estas equipes caberia ajudar na reconstrução das muralhas, pois, o orgulho da cidade estava em risco! Cada grupo receberia uma seção para preencher e teriam que reunir o máximo possível de apoiadores para ajudar. Este era o desafio.
A declaração caiu como uma bomba! Uma competição? Os maiores grupos rivais disputando quem era o melhor? Mas isso era irresistível!
Os dois grupos saíram se dispersando por toda a cidade. Seus integrantes percorriam os bares, praças, banhos e os mercados de especiarias, e foram reunindo o máximo de pessoas que podiam nas ruas, dizendo-lhes que o orgulho de sua equipe estava em jogo! Como assim a outra equipe seria reconhecida como vencedora? Venham e participem! Pois a glória da cidade também está em risco, e não vamos deixar a equipe adversária ganhar o ouro dos vitoriosos!
Desta forma, mais de 16 mil trabalhadores foram reunidos para reparar os muros de Constantinopla. Os fãs de esportes subiam nos andaimes com pedras, tijolos e argamassa, cantando as canções das suas equipes e zombando dos adversários, enquanto, juntas, reconstruíam os muros caídos, e pedra a pedra as defesas da cidade foram reerguidas. O esforço foi tão eficaz que em apenas dois meses as muralhas da cidade foram reconstruídas e até reforçadas em alguns locais.
Uma breve inscrição esculpida na base das paredes é todo o monumento que restou a este notável feito, comparando-o à figura mitológica Palas, o Titã da Guerra. Ainda hoje, o extraordinário sucesso está lá, imortalizado, escrito em uma placa de mármore que ainda pode ser vista no Portão Mevlevihane, no que hoje é Istambul.

A inscrição diz:
THEODOSII IVSSIS GEMINO NEC MENSE PERACTO CONSTANTINVS OVANS HAEC MOENIA FIRMA LOCAVIT TAM CITO TAM STABILEM PALLAS VIX CONDERET ARCEM
Constantino, que por ordem de Teodósio, construiu triunfalmente esses fortes muros em menos de dois meses. Palas dificilmente poderia ter construído uma cidadela tão segura em tão pouco tempo.

Podemos imaginar a expressão de consternação e fúria de Átila quando ele chegou aos portões de Constantinopla e encontrou, não a ruína desmoronada pelo terremoto que lhe havia sido prometida, mas uma linha tripla de muralhas defensivas, com seu calcário branco e límpido faiscando ao sol. Átila, Rei dos Hunos, Flagelo de Deus, aquele que por onde passava a grama não crescia, nada podia fazer.
Por fim, os dois lados chegaram a um impasse. Átila não conseguiu tomar a cidade, mas os bizantinos não conseguiram vencê-lo na batalha. Eventualmente, um tratado foi assinado. Os romanos concordaram em aumentar os pagamentos aos hunos e Átila deixou as terras de Bizâncio sem uma única gota de sangue ter ido derramada, só o suor daqueles que não se deixaram abater quando foram instados a uma tarefa árdua.
Dificilmente Flávio Constantino ganharia sua fama se não fosse pela paixão simples de alguns torcedores fanáticos, mas orgulhosos.
PS. Esta fabulosa muralha resistiu a todos os invasores por mil anos, até que sucumbiu perante a melhor tecnologia bélica que não existia, e teve que ser inventada. Mas isso fica para outro dia.

2 comentários em “Quando uma disputa entre torcidas fanáticas salvou um império”