Os livros devem nos lembrar o quão burros e tolos nós somos. Eles são a guarda pretoriana de César, sussurrando enquanto o desfile ruge pela avenida: “Lembre-se, César, você é mortal”. As coisas que você procura estão no mundo, mas a única maneira que um sujeito comum verá noventa e nove por cento delas é em um livro.
– Ray Bradbury. Fahrenheit 451
Este não é um artigo sobre o Alcaide. Não é algo sobre o Senhor Feudal das terras com a Morada do Homem Branco. Vocês passaram o dia todo sabendo sobre isso. No máximo, taqui o link. Sim, o autocrata da cidade determinou que uma história em quadrinhos violava a moral e os bons costumes. Mandou seus “representantes” para verificarem e, se necessário fosse, para tomar as medidas cabíveis.
E sim, esta é a SEXTA INSANA!
Não foi encontrado nada. Nadinhas. Ainda mais com a altíssima disposição dos barnabés, com alto salário e estabilidade, pouco se importando se tem revista com putaria numa bienal. Não, era apenas um beijo entre dois personagens do mesmo sexo, e se isso influencia crianças, então estão toas elas descalças numa noite de temporal com raios, esperando a chance de virar o Flash. Não, crianças não são estúpidas, e se você não acredita em mim, tente pegar das mãos dela o brinquedo favorito.
Mas, claro, estamos falando de crianças, que têm algum discernimento, ainda que não 100% acabado, mas ganham de lavada e prefeitos fundamentalistas, que tinham sido ministros da pesca, alegando no discurso de posse que não entendia nada de pesca, ou que acredita que tudo veio do evento mágico de um ser sobrenatural. E não, não foi o Galactus nem um computador respondendo à Última Pergunta.
Para falar a verdade, isso nem me indignou (muito). O grito dos maus já não mais me impressiona. Isso aqui me impressionou:
A Secretaria de “Ordem Pública” vistoriando a Bienal do Rio à procura de livros que contenham cenas “eróticas ou homossexuais”. O autoritarismo está escancarado. pic.twitter.com/VdNG7VEtBH
— Sâmia Bomfim (@samiabomfim) September 6, 2019
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Você ouviu? Aquilo é o silêncio dos bons, que segundo o dr. Martin Luther King – que era pastor evangélico, mas nem por isso um imbecil –, era pior. Me lembrei do relato de Soljenitsin em Arquipélago Gulag. Quando levavam alguém, as pessoas fingiam que não era com elas. Se calavam. Ninguém protestava. Se protestassem, talvez muita coisa não teria acontecido. Ninguém disse um “A”. ninguém gritou “CENSURA! CENSURA!”.
Assim como os Elóis, ficaram aguardando passivamente quando os Morlocks de coletinho azul iam passando, com uma disposição que só os encostados do serviço público poderiam fazer. Ninguém barrou a entrada. Ninguém impediu a passagem. Eles iam, e todos se abriam. Cadê as revoltas? Cadê os memes? Cadê os xingamentos que fazem no Twitter? Silêncio, o silêncio dos bons que não são bons, pois não importa que a prefeitura diga que é errado só porque disse que é. Não importa se vários pastores fizerem uma acusação absurda. Não importa que todo mundo diga que algo errado tem que ser aceito. As pessoas deveriam ficar de pé, ao lado do rio da Verdade e dizer: NÃO, EU NÃO VOU SAIR DAQUI!
Mas saíram. As pessoas filmam e xingam no Twitter, pois a busca por biscoitos é as suas únicas atitudes a fim de se sentirem bem consigo mesmos. Os Elóis deixaram os Morlocks atuarem; e o pior é terem elegido uma legião de Morlocks. Morlocks que serão reeleitos, pois os Elóis só xingam no Twitter, mas falam mansinho e fingem que não é com eles.
Com o passar dos séculos, as cenas sempre se repetem. Queimam e destroem livros, obras de arte e até mesmo gibis (arda no Inferno, Fredric Wertham), simples gibis de heróis tentando fazer o bem. Mas não é essa a questão do Crivella. Elegeram um idiota criacionista descerebrado com viés autocrático, oriundo de uma igreja com o nome sujo em todas as praças em diversos países, mas como tem um número imenso de seguidores, ela está certa e consegue eleger representantes. A vontade do Crivella é autocrática, mas ao mesmo tempo democrática por ele ter sido o que sempre foi, honrando os seus eleitores. O Crivella apenas fez o que elegeram-no pra fazer, e não foi para cuidar da cidade.
Vocês não viram, entretanto, a comissão de Direitos Humanos da OAB lá. Apenas uma nota, mas só isso. Não viram nenhum vereador da Oposição protestando. Não viu a Associação Brasileira de Jornais, não viu nenhum jornalista avulso, ativista LGBTwhatever nem ninguém lá. Como eu falei, estavam apenas postando indignações no Twitter e no Facebook, stories no Instagram etc. A busca por uma produção inteira de biscoitos!
Prefeitura do Rio realiza fiscalização na Bienal do Livro contra conteúdo considerado inadequado#bienaldolivro #rio #barradatijuca #prefeitura #prefeituradorio #vingadores #marvel pic.twitter.com/uQxuEK9mQW
— Visão TV (@visao_tv) September 6, 2019
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Mas não se preocupem, inúteis. Suas inações não fizeram diferença. Primeiro, porque a revista esgotou antes dos barnabés chegarem (provavelmente, foi ao meio-dia. Ademais, eles não saberiam reconhecer uma HQ de uma revista de jardinagem. Isso sem falar do alto potencial de preguiça daqueles barnabés que só queriam voltar pro escritório e continuar o dia sem fazer nada. Amanhã teremos outra ação do prefeitosco. De novo, vocês não farão nada além de reclamar no Twitter. Na próxima vez, todos os livros de temática não IURDiana serão pegos, queimados e substituídos por livros de moral e respeito, como a Bíblia, com contos eróticos, Davi dançando nu para a cupidez de servos, como dito pela própria mulher, venda de mulheres como escravas sexuais, castração, assassinatos e outras coisas horrendas, que estão bem protegidos dos olhos inocentes das crianças, já que pastores e bispos só apresentarão passagens escolhidas a dedo, para depois passar a sacola, e ai daquele que não der.
Enquanto isso, há de se indignar com uma imagem horrível e destruidora de almas como essa:
Para finalizar, o relatório dos fiscais da prefeitura na Bienal: só encontramos livros. Já sabemos quem será o próximo alvo.