“Et tu, Brute?” Esta infame frase foi a última coisa que Caio Júlio César teria proferido a Marco Bruto, quando este lhe passou o rodo, digo, a faca. Mas não, César efetivamente não disse isso. Esta frase é famosa, mas quem pôs na boca de César (isso soou esquisito) foi Shakespeare, na peça Júlio César, ato III, cena 2. O mais provável que César deva ter dito é “AOUCH!!!” ou, o que eu mais gosto (se Shakespeare pode inventar, eu também posso) é “AI, PORRA!” <vira-se> “Brutus seu…” <outras facadas>. Ah, sim. O historiador Suetônio disse que testemunhas afirmaram que as últimas palavras de César, proferidas em grego, foram “Até você, criança?”,e foi daí que Shakespeare tirou a sua frase, mas o mesmo Suetônio não deu crédito a isso.
O local onde Júlio César recebeu a visita de Leto, a personificação da Morte, é um ponto turístico e, ironicamente, foi graças a Mussolini que mandou resgatar geral e desenterrar a Antiga Roma, afastando todas as modernidades para um canto. Não, o líder fascista não tinha amor pela História, nem venerava a cultura dos antepassados. Ele era apenas um pulha que queria amarrar o antigo Império Romano ao seu governo, praticamente se posando como César (lembrando que larga maioria deles não teve um final muito legal, o mesmo acontecendo com o Duce).
Aqui fica o Largo di Torre Argentina. É apenas uma praça, como tantas outras em Roma, em frente a uma loja de tecidos. Nessas ruínas, havia quatro templos republicanos e o Teatro de Pompeu. Era aqui o antigo Campus Martius.
O nome da praça vem da Torre Argentina, que fica no que hoje é a cidade de Estrasburgo, que hoje situa-se numa comuna situada na região leste da França. Seu nome original era Argentoratum, a Torre Branca (não confundir com a torre em que mora Saruman), em homenagem ao Mestre das Cerimônias Papais Johannes Burckardt, mais conhecido como Argentinus, que, por sinal, mandou construir na Via del Sudario, número 44, um palácio chamado Casa del Burcardo (ou Palazzetto del Burcardo), no rione Sant’Eustachio, em Roma, também.
As ruínas do Largo di Torre Argentina mostram quatro templos, originalmente designados pelas letras A, B, C e D. A área foi delineada ao norte pelo Hecatostylum (Os Cem Pórticos) e as Termas de Agripa, e ao sul pelos edifícios relacionados com o Circo Flamínio, a leste pela grande praça de Porticus Minucia Frumentaria e a oeste pelo Teatro de Pompeu.
O Templo A foi construído no século III A.E.C. e é provavelmente o Templo de Juturna construído por Gaius Lutatius Catulus após sua vitória contra os cartagineses em 241 A.E.C.. Mais tarde, foi reconstruída como uma igreja, cuja abside ainda está lá.
O Templo B é um templo circular, também chamado de “Tholos”. Os tolos (não confundir com tolice) eram edifícios circulares que serviam como a sede do governo da cidade, ou seja, uma espécie de prefeitura (se for para usar o termo moderno).
E se você se interessou em saber como seria este templo em suas dimensões, esta reconstrução deve lhe dar uma boa ideia:
Depois, a palavra “tolo” foi usada para nomear todos os monumentos religiosos de forma circular, templos ou sepulturas. O Templo B ainda possui seis colunas restantes, tendo sido construído por Quintus Lutatius Catulus em 101 A.E.C. em cumprimento de seu voto na Batalha de Vercellae; ele (o templo) foi dedicado à gloriosa Fortuna Huiusce Diei, “a fortuna deste dia”.
Vamos dar uma olhadinha nessa pequena estátua da Fortuna. Algo simples e pouco monumental. Por exemplo, aqui está a cabeça da estátua sendo desenterrada:
Deu para ter uma noção do tamanho? Pois é. Esta estátua colossal foi encontrada durante as escavações e agora é mantida no Centrale Montemartini dos Museus Capitolinos. Ela é o que chamam de “acrolítico”. Ela possuía apenas a cabeça, os braços e as pernas esculpidos em mármore, já que ele sempre foi caro. As outras partes, cobertas pelo vestido, eram de outros materiais, provavelmente madeira e, por isso, se perderam.
O Templo C é o mais antigo dos quatro, datado do século IV ou III A.E.C., e foi provavelmente devotado à Feronia, a antiga deusa itálica da fertilidade. Após o incêndio de 80 E.C., esse templo foi restaurado e o mosaico branco e preto da cúpula do templo interno remonta a essa restauração, do qual pouco restou hoje.
O Templo D é o maior dos quatro, remonta ao século II A.E.C. com restaurações do final do período republicano e foi dedicado a Lares Permarini ou lares que protegem os marinheiros. Lares eram divindades protetoras de diversas coisas. Tinha os Lares familiaris, ou lares que protegiam a família, e, sim, foi daí que veio o termo “lar” enquanto sua casa. Você sabe, o “lar doce lar” e tal. Apenas uma pequena parte foi escavada, já que a maior parte está coberta por uma rua e… bem, não vão tirar a rua só por causa de um lugar histórico, não é mesmo? Mas veremos isso mais adiante. Aqui o que sobrou do templo:
Esta pequena escadaria à esquerda e o que parece um caminho subterrâneo ao seu (dela) lado direito é o que sobrou do Templo D. O restante está por debaixo da rua e você não pode ir para lá. Uma pena.
Este templo teria sido uma promessa de um pretor chamado Lucius Aemilius Regillus, enquanto estava envolvido em uma batalha naval com a frota de Antíoco, o Grande, em 190 A.E.C., e dedicada pelo censor Marco Emílio Lépido (censores eram os oficiais responsáveis pelos censos, manutenção da chamada “moralidade pública” e supervisão das finanças governamentais locais).
Se perdeu na parte onde Júlio César encontrou o seu fim? Deixe-me ajudá-lo. Foi na Cúria no Teatro de Pompeu, entre o Templo B e o Templo C. Exatamente aqui:
Este assassinato causou uma mudança na História. De início, César, o então empossado Ditador, deu início a capanhas militares para o Leste, e Roma estava se desviando dos ideias democráticos republicanos, se podemos simplificar (foi muito mais complicado que isso). Senadores não estavam gostando nada dos rumos, ainda mais porque o Senado havia perdido parte de sua influência e poder, e aquela velharada não ia abrir mão disso facilmente. O medo é que César transformasse seu governo provisório numa monarquia, com o próprio Júlio César no centro do poder absoluto. Sendo assim, a saída era passar o cerol em César para “restabelecer as tradições republicanas e o estado de direito”.
Nos Idos de Março 44 A.E.C. (o que seria em 15 de março em nosso calendário), um grupo de senadores o esfaqueou até a morte na Cúria de Pompeu, matando o último dos ditadores romanos, dando início a uma instabilidade política, seguida de mais uma guerra civil, culminando no primeiro imperador romano: Otávio Otaviano, cognominado Augusto. Parabéns, senadores. O que vocês não queriam, apressaram em conseguir.
César morreu num espaço destinado à democracia, um lugar público para se debater ideias, ainda que sob o seu controle máximo garantido pela sua posição. É uma ironia cruel que o lugar de sua morte fora designado para ser um espaço democrático, usado por um ditador, morto por alguém que não concordava com ele gerando revoltas e, por fim, um império.
Esta praça, não é uma simples praça. É um lugar histórico, ainda que perdido numa Roma da Idade Contemporânea. Um lugar que não pode desaparecer, ser escondido.
Esta obliteração é a História se perdendo, sendo eclipsada pelos anos de descaso e abandono, numa democracia que prefere esconder a todo custo o que uma ditadura fez, mesmo re-enterrar a glória de um passado muito mais antigo que os assassinos que surgiram séculos depois. Isso aliado à corrupção, recessão econômica, incompetência administrativa e puro desinteresse (não necessariamente nessa ordem) levou à decrepitude de muitos locais históricos e o Largo di Torre Argentina foi mais um.
A saída acabou sendo a parceria com empresas privadas, como a Fendi, que financiou a limpeza da Fontana di Trevi, a Tods que pagou metade da restauração maciça do Coliseu, que reabriu em 2016 e a Bulgari que doou US$ 1,6 milhão para restaurar a Escadaria Espanhola. Agora, a prefeita de Roma, Virginia Raggi, anunciou que a restauração está sendo financiada pela Bulgari, num valor de US$ 1,1 milhão, que destina-se a limpar e arrumar as ruínas do Largo, construir passarelas pelo local e instalar banheiros públicos. O tipo de coisa que, no Brasil, custaria o triplo do valor, sem nada ser feito.
Hoje, depois de longo tempo de um soçobrar do que outrora fora um império orgulhoso, terrível, interessante, dominador, estupendo, temos as sombras do passado percorrendo por aquelas ruínas quase esquecidas. Há quem diga que os fantasmas de antigos imperadores caminham por lá, ainda com seu garbo, elegância e altivez. São gatos. Muito gatos. Eles agora fazem parte daquele ambiente e lhes convidam para passear pela História. Há coisas que eles sussurram de forma surda sobre as glórias de um império que dominou quase todo o Mundo Antigo, formando uma das mais magníficas máquinas militares do planeta.
O Largo di Torre Argentina ainda está lá, mesmo que em mal cuidado hoje, irá renascer, o que é ótimo. Aos atuais imperadores que por lá passam, foi garantido um lar por ONGs que cuidam de felinos. E estes imperadores terão seu descanso e veneração como nos tempos dos Césares.
O Largo di Torre Argentina morreu uma vez, mas não pereceu, ainda que brevemente esquecida; e como diz o Tao Te King, aquele que morre mas não perece alcança a imortalidade. Nada mais justo para um lugar na Cidade Eterna.