A moça caminha pela costa, com o som do mar reverberando. Seu cão corre saltitante e o vento farfalha a roupa da moça, com seu vestido longo, mangas compridas e chapéu cobrindo quase todo o rosto. Moças como ela trariam uma sombrinha, mas não aquela moça. Ela trazia algo um tanto diferente: uma picareta. Não, esta não é uma história de assassinato, vingança ou filme de zumbi. Esta é um pouco da história de uma das maiores paleontólogas da História, ainda que quase desconhecida em sua época, em que mulheres ficavam em casa e geravam criancinhas. Esta é a história de Mary Anning.
A Inglaterra do século XIX não era fácil para muita gente, ainda mais se você fosse do sexo feminino. Aos 21 dias do quinto mês do penúltimo ano do século XVIII (tá, ok! 21 maio de 1799. Feliz?) nasceu em Lyme Regis, em Dorset, Inglaterra, uma linda bebezinha. Ela foi batizada Mary Anning. Mary não tinha um carneirinho, mas ganharia um parceiro que a ajudaria a fazer muitas coisas. Só que este parceiro ainda não tinha aparecido em sua vida. Linda Mary era filha de um marceneiro chamado Richard Anning, que complementava a renda da família (que contava com sua esposa Molly e seus 10 filhos. A piadinha pela falta de TV será por sua conta) caçando fósseis ao longo da falésia, próxima à sua casa.
Claro, os fósseis só tinham valor monetário, mesmo. Ninguém se preocupava com a importância científica deles. Os ricaços sempre gostaram desses trecos antigos, então pagavam uma boa quantia de dinheiro ("boa" é algo a ser discutido, já que a vida não era fácil nessa época). Maria era a caçulinha da família. Apesar de ter tido mais irmãozinhos depois dela, todos morreram e… eu já falei que a vida era meio difícil naquela época?
Em 19 de agosto de 1800, Mary estava sendo cuidada por uma babá, que junto de outras mulheres estava debaixo de uma árvore assistindo uma apresentação equestre. A fúria de Thor se apresentou e um raio desceu dos céus, atingindo a árvore e matando quase todo mundo. Mary Anning estava desacordada, mas as pessoas conseguiram revivê-la. Segundo relatos dos pais, a menina franzina e doente passou a ser uma criança saudável. Zeus sabe o que faz!
A família de Mary Anning não era seguidora da Igreja Anglicana, e sim da Congregacional (que se divide em puritanos e separatistas). A visão dos Congregacionistas era que Educação era importante, mesmo para mulheres. Foi por causa disso que Mary Anning frequentou escola e aprendeu a ler e a escrever. Um dos livros que Mary mais gostava era do reverendo James Wheaton, que dizia para as pessoas estudarem mais a nova ciência da Geologia (sim, existe um SciCast sobre isso).
Mary Anning morava perto de falésias, a região em que o terreno se encontra com o mar, normalmente formando escarpas verticais. As falésias naquela região são feitas de calcário, e com o passar dos séculos, muitos restos de seres vivos foram se depositando ali. Mary aprendeu a separar e limpar aqueles fósseis, de animais há muito extintos, lembrando que a Origem das Espécies estava a décadas daquela faixa de tempo. Os fósseis eram apenas uma curiosidade, sendo muito pouco estudados a sério. Havia ideias que eles eram restos de animais que já estavam extintos, mas isso não era consenso entre os cientistas e a Paleontologia ainda engatinhava.
Toda a família participava do projeto, pai, mãe e irmãos ajudavam na coleta de fósseis, montando uma banquinha de camelô. Você acha isso esquisito? Graças aos caprichos dos movimentos geológicos, aquela região estava inundada de fósseis de vertebrados de todos os tipos.
Em 1811, Mary fez sua primeira descoberta significativa: este rapaz aí de baixo: o crânio de um Ichthyosaurus platyodon, um réptil marinho do Triássico Inferior (ver. Os répteis marinhos do passado).
Esta belezinha foi vendida pela nada modesta quantia (na época) de 23 libras esterlinas, para depois ser revendida. Esta belezoca foi um dos estopins na revisão sobre a Terra ter apenas 6000 anos, entre outras barbaridades criacionistas.
Quase todos os fósseis encontrados por Mary Anning e seu inseparável cão Tray datavam do período Jurássico, compreendido entre compreendido entre 199,6 milhões e 145,5 milhões de anos. Mas, para abastecer a lojinha com esses fósseis, Mary era obrigada a sempre ir buscar mais, o que não era uma tarefa das mais fáceis.
Seu pai já tinha falecido, caindo do penhasco e quase que Mary Anning teve o mesmo fim, quando uma rocha cedeu e ela quase se acidentou seriamente, escapando por pouco. Infelizmente, seu amigo Tray não teve a mesma sorte. Em 10 de dezembro 1823, m’Lady Anning viu uma rocha, limpou-a bem (o que demorou um tempo considerável) e achou aquilo muito esquisito. Em 26 de dezembro de 1823, Mary mandou um desenho do que encontrara para seu amigo, com uma descrição de como o encontrara. O que ela achou? Isto aqui:
Isso, queridos, é a descrição do mais completo fóssil de Plesiossaurus dolichodeirus encontrado até então. Todos esses fósseis (e mais muitos outros) estão expostos no Museu de História Natural de Londres, assim como o primeiro fóssil de pterodáctilo, também descoberto por ela.
Em 1833, Mary teve um problemão financeiro, e suas economias foram pro espaço, embora não se tenha entendido o motivo até hoje. O que se sabe é que seu amigo, o eminente geólogo William Buckland, convenceu a Associação Britânica para o Avanço da Ciência e e encheu o saco dos parlamentares do governo britânico de conceder a Mary uma anuidade no valor de 25 libras esterlinas, o que não era muito para um ano, mas privação ela não passaria. E com todas as suas descobertas, o nome de Mary Anning foi para os anais da pesquisa científica, sendo reconhecida por todos os cientistas de sua época e com vários trabalhos publicados, certo?
Errado!
Entendam, Mary Anning tinha o que era considerados dois graves defeitos para o pessoal daquela época. Primeiro, ela não era de família abastada, tendo que trabalhar para viver; e não se enganem. Se Faraday não tivesse sido "descoberto" por Humphry Davy, ele ainda estaria encadernando livros até hoje.
Segundo, Mary era mulher, caso vocês não tenham notado, e para a ridícula sociedade inglesa de sua época, ela não tinha que ficar com a bunda em falésia nenhuma. Ela que fosse esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque, ora bolas! Meu Deus! Uma mulher escavando fósseis! O que acontecerá em seguida? Elas quererem direito a voto?
Muitos geólogos iam viistar Mary Anning (mas nenhum deles querendo falar em seu favor nas reuniões da Sociedade Geológica de Londres), pegando informações, estudando novos espécimes etc. Anning foi deixada de lado, mas ela não foi esquecida; apesar de não ser como ela merecia.
Aos 47 anos, no dia 9 de março de 1847, Mary Anning fechou seus brilhantes e perspicazes olhos para o mundo. Ela fora vítima de câncer no seio e o mundo perdeu uma dádiva, e ela quase foi esquecida. Membros da Sociedade Geológica se juntaram para levantar dinheiro e a fizeram membro honorário do recém-criado Museu de Dorset, o que eu acho muito pouco pelo que ela fez (não, ela não foi reconhecida como membro da Sociedade Geológica. Não vamos exagerar, né pessoal?). Seus restos foram postos para descansar no dia 15 de março no adro da igreja de St. Michael. Sem pompa, nem circunstância e você seria louco de achar que ela seria enterrada na Abadia de Westminster, perto de Isaac Newton. Ela era apenas uma camponesa, não merecia tanto assim.
A Geologia, a Paleontologia e a História Natural têm uma dívida para com o trabalho de Mary Anning. Uma simples mulher que fez o que podia para cuidar de sua família, e, ao mesmo tempo, se tornando uma referência numa área que só homens se destacavam, apesar de terem feito muito pouco em comparação com aquela mulher de vestes estranhas e bons hábitos, que acabou se tornando um dos Grandes Nomes da Ciência.
A contribuição à Ciência feita por pessoas como Anning, que não possuem uma educação científica formal, continua a ser vista com o nariz torcido por grande parte dos pesquisadores atuais, que balançam a cabeça e repetem o mantra: “Amadores… hunf!“. Mesmo os que possuem nível superior costumam ser desprezados, quando dão contribuições fora de sua área de formação. Como o professor Ondemar Dias (presidente daquele mesmo IAB, que foi despejado de sua sede), formado em História e que realizou importantes trabalhos na área de Arqueologia. Apesar disso, era visto como um amador por vários arqueólogos “medalhões”, com formação na Sorbonne e o cacete.
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