A mulher em dores excruciantes adentra o hospital… o que poderia se chamar de hospital aquele açougue. Sem suturas, sem instrumentos cortantes decentes, sem esterilização, sem antisséptico. Aquilo era o Inferno na Terra. Não, não estamos falando do Brasil. A mulher em trabalho de parto estava recusando qualquer tentativa de socorro. Ela só queria ser atendida por uma pessoa. Não uma pessoa qualquer, mas uma figura lendária. Tão lendária que nem sabemos com certeza se existiu. Tão lendária que a história acima descrita pode nem ter ocorrido. Mas o nome da pessoa ainda permeia a História.
O nome dessa mulher era Agnodice.
Agnodice desperta vários sentimentos. Admiração, curiosidade, rejeição etc. Alguns historiadores são enfáticos em dizer que ela é um mito. Outros alegam que pode sim ter existido. É meio como Jesus e Sócrates. Diversos relatos de segunda mão, nenhuma certeza se existiram. Podem ainda ter existido, mas não como os textos a respeito deles falam. O que se sabe ao certo? Pouca coisa.
Agnodice teria nascido em Atenas, a cidade-estado metida a ser mais que as outras, pois era o berço da democracia (onde nem todo mundo votava, mulheres eram tratadas feito lixo, pobre que se danasse e o controle político estava nas mãos de uns poucos. O que pode ser mais democrático do que isso?) Supõe-se que nascera no século IV Antes da Era Comum, o que a faz ser mais ou menos contemporânea de Hipócrates, que não era hipócrita. Hipócrates nasceu em Cós, num arquipélago a cerca de 4 km do que hoje chamamos de Bodrum, na Turquia.
Hipócrates fez a Medicina ser a Medicina, já que ele não era bundão feito um certo sujeito nascido em Estagira, que era incapaz de saber quantos dentes suas duas esposas tinham, já que ele era um menino muito distraído e sua ética versava que não havia nada demais ter escravos e o poder ficar na mão da escumalha de sempre.
Como este artigo não é sobre Hipócrates e nem sobre o manzézão de Estagira ou o seu professorzaço sonhador de Atenas, vamos continuar falando de Agnodice (que não foi mencionada pelos dois babaquaras e já vamos entender o porque) queria estudar mais, mas na antiga e democrática Grécia, mulheres não estudavam. Assim, ela picou a mula para Alexandria, e na Grande Biblioteca, usando roupas de homem, estudou os sábios pergaminhos que lá estavam.
Agnodice percebeu uma coisa: as mulheres não cooperavam para ser atendidas por médicos (homens, claro. Mulher que fique na cozinha). O próprio Hipócrates relatara que a falta geral de cooperação das mulheres afetava de sobremaneira o tratamento. Afinal, tinha o fator pudor, claro. E se você acha isso absurdo há 2400 anos, saiba que até meados do século XIX, muitas mulheres eram proibidas de irem a médicos por seus maridos. No máximo, parteiras. Elas contavam pro marido o que sentiam, o marido contava pro médico e este tinha que ter bola de cristal para pensar num tratamento. Não é à toa que o índice de mortalidade era bem alto.
O primeiro a escrever sobre Agnodice foi Caio Júlio Higino, muito provavelmente nascido em Hispânia, a região sob domínio romano que hoje chamamos de Península Ibérica. Higino escreveu sobre Agnodice no século 1 AEC. Na sua obra Fabulae (Histórias), no item 274, Higino escreveu:
Os antigos não tinham obstetras, e, como resultado, as mulheres por causa de modéstia pereceram. Para os atenienses, era proibido escravos mulheres aprenderem a arte da medicina. Uma moça chamada Hagnodice, uma virgem, desejava aprender Medicina, e desde que ela desejava, ela cortou o cabelo, e na câmara masculina apresentou-se a Herófilo [considerado Pai da Anatomia, que junto com Erasístrato, montou uma faculdade de anatomia – ou algo semelhante – em Alexandria] para algum treinamento. Quando ela tinha aprendido a arte, e tinha ouvido falar que uma mulher estava em trabalho de parto, ela veio para ter com ela. E quando a mulher recusou-se a confiar nela, pensando que ela era um homem, Agnodice tirou a roupa para mostrar que ela era uma mulher, e desta forma ela tratava as mulheres. Quando os médicos viram que não eram admitidos pelas mulheres, começaram a acusar Agnodice, dizendo que "ele" era um corruptor e sedutor de mulheres, e as mulheres estavam fingindo estar doente. Os areopagitas [membros do conselho denominado Areópago, que se reunia em Atenas, com funções de Supremo Tribunal e responsável por cuidar de assuntos de Educação e Ciência] condenaram Agnodice, o que a levou a tirar a roupa para os membros do Areópago, mostrando que ela era uma mulher. Em seguida, os médicos começaram a acusá-la de forma mais vigorosa, e como resultado, as mulheres líderes invadiram o Tribunal, dizendo: "Vocês não são maridos, mas inimigos, porque vocês condenam-na por ter dado segurança a nós". Então os atenienses alteraram a lei , Assim, as mulheres nascidas livres poderiam aprender a arte da Medicina.
Relatos tardios dizem que as mulheres se rebelaram com um furor jamais visto. Elas alegaram que se condenassem Agnodice à morte, elas iriam morrer junto. Eu, particularmente, acho que elas até nem iam se matar, mas matariam qualquer chance da homarada as tocasse. Dali a 1000 anos, Agnodice jamais teria essa sorte. Seria julgada como bruxa, mas mulheres seriam julgadas como bruxas, todas elas sofreriam de maneira horrível e seus executores seriam canonizados.
A história de Agnodice é verdadeira? Ninguém sabe com certeza. O que se sabe é que toda opressão acaba caindo, basta que alguém se recuse a aceitar o Statvs Qvo. As pessoas reconhecendo o trabalho do médico, pesquisador e cientistas também é fator importante, pois uma só pessoa não é capaz de mudar nada. Mas se uma pequena semente for plantada, uma árvore frondosa pode surgir.
Depois de Agnodice, mulheres atenienses puderam estudar medicina e mulheres puderam ter um tratamento adequado, sem o risco de serem mal-vistas ou mesmo desdenhadas na democrática e misógina Atenas, e é isso que faz de Agnodice, um dos GRANDES NOMES DA CIÊNCIA.
A série Grandes Nomes da Ciência é uma das minhas preferidas aqui no Cet.net.
É muito legal saber que a Ciência não se resume aos pesquisadores famosos.
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Realmente essa série nos traz nomes da Ciência geralmente pouco divulgados.Ainda bem que temos o Cet.net para nos brindar com esses posts.Ah,por falar nisso,parabéns André pelo dia do Químico.
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