O anatomista que viu um bolo onde nascem bebês

Se você pensava que nomear crianças já era complicado, imagine nomear órgãos humanos. No século XVI, o anatomista italiano Matteo Realdo Colombo enfrentou exatamente esse dilema ao se deparar com aquela massa carnuda e circular que conecta mãe e bebê durante a gravidez. E sabe o que ele viu? Um bolo. Literalmente. Não é que o homem estava com fome na hora do batismo científico; ele simplesmente decidiu que aquele órgão se parecia muito com uma placenta, o famoso bolo italiano feito de camadas de queijo e mel. Assim nasceu uma das palavras mais estranhas da medicina: placenta. Porque às vezes a Ciência é só uma questão de perspectiva gastronômica.

A história dessa nomenclatura bizarra é muito mais rica do que parece, e nos revela como o conhecimento médico se desenvolveu através de uma dança curiosa entre o saber feminino, a arrogância masculina e a fome de um anatomista italiano. Antes de Colombo resolver batizar o órgão com nome de sobremesa, as pessoas tinham outras maneiras de se referir a essa coisa toda. Na Europa medieval, chamavam de “afterbirth” (algo como “pós-nascimento”), “nachgeburt” em alemão, “arrière-faix” em francês. Ou ainda “secundina” em italiano, “secondine” em inglês, uma referência ao fato de que a expulsão da placenta era a “segunda” parte do parto, aquela parte necessária mas meio anticlimática depois que o bebê já havia aparecido para receber os parabéns.

O interessante é que, nessa época, quem realmente entendia do assunto eram as mulheres. Parteiras, mães, vizinhas e amigas, todas elas tinham um conhecimento prático sobre gravidez e parto que foi sendo transmitido oralmente por gerações. Os homens, esses anatomistas de universidade, ficavam de fora dessa conversa íntima. Mas aí que está o pulo do gato: eles começaram a documentar esse conhecimento feminino para se fazerem de espertos. Era como se dissessem: “Olha só, eu tenho acesso aos segredos das mulheres, por isso sou um médico muito importante”. Uma estratégia de marketing médico que funcionou por séculos.

Um dos exemplos mais famosos dessa apropriação intelectual é “The Trotula”, um compêndio médico do século XII que supostamente foi escrito por Trota, a primeira mulher médica e professora de Salerno, na Itália. Embora estudiosos modernos suspeitem que parte do texto tenha sido escrita por homens (que surpresa), historiadores defendem que pelo menos uma parte foi mesmo influenciada por uma parteira ou curandeira chamada Trota. Afinal, só as mulheres tinham acesso real aos corpos e partos femininos; os homens ficavam do lado de fora da porta, provavelmente inventando teorias.

No “Trotula”, a placenta é descrita como uma “cama” para o feto durante a gravidez, proporcionando suporte e conforto. Uma metáfora linda, na verdade, muito mais poética que “bolo de queijo e mel”. O texto também revela práticas curiosas: se uma mulher quisesse evitar nova gravidez após um parto traumático, deveria colocar na placenta tantos grãos de cevada ou sementes quanto os anos que desejasse permanecer sem engravidar. Era uma espécie de DIY contraceptivo medieval, usando a própria placenta como amuleto da fertilidade… ou da falta dela.

Essas práticas com a placenta eram comuns na Europa. O órgão era visto como tendo qualidades “simpáticas” de cura, relacionadas à fertilidade futura e à saúde do bebê. Mas quando os anatomistas universitários homens descobriram essas tradições, fizeram aquela cara de superioridade intelectual que conhecemos bem. Rotularam tudo como “supersticioso”, embora muitos respeitassem secretamente o conhecimento prático das mulheres. Era aquela atitude típica: “Essas mulheres são meio bruxas, mas sabem das coisas”.

Foi nesse contexto que Matteo Realdo Colombo apareceu para revolucionar a terminologia. Professor de anatomia na Universidade de Pádua – que na época era tipo o MIT da anatomia europeia –, Colombo decidiu que precisava de um termo mais sofisticado para distinguir o órgão das palavras usadas pelas parteiras. Em 1559, em seu tratado “De Re Anatomica” (Sobre Coisas Anatômicas), ele introduziu o termo “placenta”, inspirado no bolo romano de mesmo nome, que era cozido numa panela com camadas de queijo e mel.

A escolha não foi só uma questão estética. Colombo viu que o órgão era largo, achatado, circular e do tamanho similar ao bolo tradicional. Mas há algo quase poético na decisão: ao escolher uma palavra relacionada ao mundo culinário feminino, ele inadvertidamente conectou o termo científico ao universo das mulheres, de onde o conhecimento original havia surgido. A placenta, como o bolo italiano, proporcionava nutrição e conforto, uma continuação da ideia medieval da placenta como “cama” do feto.

É fascinante pensar como essa história aparentemente trivial do nome da placenta revela camadas profundas sobre como o conhecimento científico se desenvolve. Mostra a tensão entre saber popular e ciência formal, entre conhecimento feminino e autoridade masculina, entre tradição oral e texto escrito. E revela como, às vezes, a inspiração científica vem dos lugares mais inesperados; como a fome de um anatomista na hora do almoço.

Hoje, estudar a história da placenta nos ajuda a entender não só o desenvolvimento do conhecimento científico, mas também as atitudes culturais contemporâneas em relação ao órgão. Desde práticas modernas como comer a placenta após o parto (spoiler: não é uma boa ideia) até transformá-la em joias ou arte, as pessoas continuam atribuindo significados especiais a esse órgão que um dia alguém achou que parecia um bolo.

A lição que fica é que nossos corpos não são entidades estáticas; eles são profundamente moldados pelas percepções médicas e culturais de cada época. E às vezes, a ciência mais séria nasce das comparações mais inesperadas. Afinal, foi preciso um italiano com fome de bolo para dar nome a um dos órgãos mais importantes da reprodução humana.

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