Vampiros, bactérias e histeria popular

No final do século XIX, os habitantes de Rhode Island enfrentavam um inimigo peculiar: uma força misteriosa que os consumia lentamente, sugando-lhes a vida com a voracidade de um parasita invisível. Não se tratava, naturalmente, de vampiros no sentido romântico que hoje conhecemos: aqueles galãs góticos de capa esvoaçante e dentição impecável (hoje em dia estão preferindo retratar como ativista de faculdade de Humanas, mas prefiro os vampiros aristocratas).

O antagonista desta história era também elusivo, misterioso, um quê de místico e algo de sobrenatural: a Mycobacterium tuberculosis, a bactéria causadora da tuberculose.

Nossa história começa quando Nellie Vaughn foi sepultada em West Greenwich, Rhode Island, em 1889, numa cerimônia que deveria ter sido o ponto final de sua biografia. Mas Nellie, como muitos de seus contemporâneos, descobriria que a morte no século XIX era mais uma mudança de endereço do que propriamente um fim. Logo após seu enterro, numa decisão que hoje pareceria estranha até mesmo para os padrões de reality shows, sua família exumou o corpo a pedido da mãe e o transferiu para o cemitério municipal.

Se Nellie pensou que a mudança lhe traria mais prestígio social, enganou-se redondamente. Seu novo status veio acompanhado de uma acusação que transformaria seu nome em lenda local: vampirismo. A sorte de Nellie é que ela já não estava entre nós para saber o que fariam com ela.

A Nova Inglaterra do século XVIII e XIX testemunhou o que historiadores chamam de “pânico vampiresco”, uma reação coletiva a surtos de tuberculose que se espalharam por Rhode Island, Connecticut oriental, Massachusetts meridional e Vermont. Como explicou o antropólogo George R. Stetson em 1896, após investigar o fenômeno para o American Anthropologist, a Nova Inglaterra era apenas uma das muitas regiões do mundo que acreditava em “espíritos que deixam a tumba, geralmente à noite, para atormentar os vivos”. Rhode Island, observou ele com a delicadeza científica da época, era “distinguida pela prevalência desta notável superstição”.

Notável, de fato. Numa época em que a ciência médica estava dando seus primeiros passos bambos em direção à modernidade, as comunidades rurais desenvolveram sua própria teoria epidemiológica: famílias inteiras estavam morrendo porque os parentes mortos haviam desenvolvido um gosto póstumo pela hematofagia.

O caso mais famoso foi o de Mercy Lena Brown, de Exeter, Rhode Island. A família Brown era respeitada na comunidade: George e Mary eram fazendeiros prósperos. O drama começou em 1883 com a morte de Mary Brown, seguida em 1888 pela filha Mary Olive, ambas vítimas da tuberculose, uma doença que hoje a gente trata com uma pílula diária por seis meses. Até meados do século XX era praticamente sentença de morte. A tuberculose (também chamada de “tísica” no Brasil) era a principal causa de morte nos Estados Unidos do século XIX, especialmente no Nordeste. As pessoas literalmente eram consumidas pela doença, daí o termo “consumption”, em inglês.

Em 1892, Edwin Brown estava visivelmente definhando, enquanto sua irmã Mercy Lena, de apenas 19 anos, também sucumbiu à doença em janeiro do mesmo ano. A matemática mórbida era simples demais para ser coincidência: três mulheres da família mortas, um rapaz morrendo.

Mas George Brown, desesperado para salvar seu único filho sobrevivente, não estava interessado em explicações médicas. Pressionado pelos vizinhos, ele concordou com a exumação dos corpos de sua esposa, filha Mary Olive e Mercy.

O que encontraram foi, segundo os padrões da época, evidência conclusiva de vampirismo: o corpo de Mercy estava “estranhamente bem preservado” – o frio do inverno de Rhode Island havia retardado a decomposição –, enquanto sua mãe e irmã estavam completamente decompostos. A lógica era irrefutável: se Mercy não estava decomposta como deveria, obviamente estava se alimentando durante a noite. Como qualquer pessoa racional faria diante de tal descoberta, removeram seu coração e fígado, queimaram-nos, e seu irmão doente então consumiu suas cinzas na esperança de se salvar, mas mesmo assim morreu alguns meses depois.

Mercy Brown não foi pioneira neste macabro ritual. Em 1799, quase um século antes, Sarah Tillinghast já havia sido submetida ao mesmo tratamento. O pai de Sarah exumou o corpo da filha numa tentativa desesperada de identificar o vampiro que havia matado vários de seus filhos. As evidências contra Sarah foram igualmente convincentes: “seus olhos estavam abertos e fixos, seu cabelo e unhas haviam crescido, e seu coração e artérias estavam cheios de sangue vermelho fresco”. Seus órgãos foram removidos e queimados.

O fenômeno não se limitou a casos isolados. Como Stetson documentou, exumações foram feitas em pelo menos dez famílias diferentes apenas nas cidades que ele investigou. Em 1875, uma família acreditava que seu pai morto não descansaria até que tivesse atraído para si os nove membros sobreviventes da família. A solução? O filho doente, armado com uma pá, exumou o pai e decapitou-o. Simples e efetivo. Se era um morto-vivo, acabou de morrer de vez. Se era um morto-morto, não fazia muita diferença, de qualquer forma.

Enquanto as comunidades da Nova Inglaterra desenvolviam rituais cada vez mais elaborados para combater vampiros inexistentes, a verdadeira solução estava emergindo nos consultórios médicos e laboratórios da época. À medida que especialistas aprendiam mais sobre a tuberculose e como ela se espalhava, a exumação foi gradualmente substituída por medidas de saúde pública infinitamente mais eficazes: leis anti-escarros, mudanças na ventilação, melhorias sanitárias. O que havia começado como um susto alimentado pela superstição terminou levando a avanços na saúde pública.

Quando observamos estes eventos através das lentes da ciência moderna, é fácil achar um absurdo o comportamento das pessoas de quase dois séculos. Como puderam confundir decomposição retardada pelo frio com vampirismo? Como não perceberam que variedades de tuberculose eram contagiosas, não de origem sobrenatural? Mas talvez devêssemos ser mais generosos. Afinal, estas comunidades enfrentavam uma epidemia devastadora com o que se sabia na época. A rigor, a M. tuberculosis só foi descrita pela primeira vez em 24 de março de 1882 por Robert Koch, recebendo o nome de Bacilo de Koch por causa disso, em que Koch recebeu o prêmio Nobel de Fisiologia em 1905.

Era época anterior à microbiologia, aos antibióticos e aos raios-X; quando famílias inteiras morriam de uma doença que parecia sugar a vida das pessoas lentamente, a explicação vampiresca não era mais absurda que qualquer outra teoria disponível. As informações não eram tão rápidas como hoje e mesmo médicos não tinham acesso a tudo o que era descoberto em todas as partes do mundo.

E, de forma perversa, seus rituais funcionavam. Não porque queimar corações matasse vampiros, mas porque eventualmente a epidemia de tuberculose passou, como todas as epidemias fazem. Para as famílias que realizaram os rituais e depois viram a doença desaparecer, a correlação era evidência suficiente de causalidade. Não apenas isso, há inúmeras variedades de tuberculose e nem sempre elas são bacilíferas, isto é, contagiosas.

Quando Stetson publicou seu ensaio “The Animistic Vampire in New England” em 1896, ele estava documentando não apenas superstições rurais, mas o momento em que uma forma de conhecimento estava sendo substituída por outra. Os vampiros da Nova Inglaterra não desapareceram porque foram derrotados por estacas no coração, mas porque foram exorcizados por algo muito mais poderoso: o entendimento científico.

Assim, enquanto Mercy Brown permanece em seu túmulo em Exeter – desta vez, esperamos, permanentemente –, sua história continua a nos lembrar que a linha entre conhecimento e superstição é às vezes mais tênue do que gostaríamos de admitir. Se há uma lição a ser extraída desta sombria crônica da Nova Inglaterra oitocentista, é esta: vampiros podem não existir, mas a ignorância científica certamente pode sugar a vida de uma comunidade inteira.

Descanse em paz Nellie, descanse em paz Mercy.


Fontes:

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