O marfim é um maravilhoso, lindo e fantástico material para se fazer obras de arte e joias. O problema dele: é obtido por meio de presas de elefantes, dentes de hipopótamos e dentes de narvais (aquilo que parece um unicórnio, é um dente). Ele foi o responsável por mandar muitas espécies – principalmente de elefantes – à extinção, e seu comércio é atualmente proibido, salvo para obras de artes antigas, o que abre um precedente pra vagabundo deitar e se esbaldar. No caso do Brasil, em 2017, a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços aprovou o substitutivo ao Projeto de Lei 7332/17, que proíbe qualquer forma de comércio ou transporte de marfim e de queratina existente nos chifres de animais em extinção. Recebeu parecer favorável e a lei está na dança das cadeiras esperando o que vão decidir, já que está aguardando designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.
O marfim era usado para uma miríade de peças magníficas, mas não falarei delas de um modo geral e sim de um caso particular. Imaginem que se encomendava peças anatômicas detalhadas feitas de marfim. Mas quando eu falo “detalhadas” eram detalhadas MESMO, com direito a órgãos internos e até bebês no útero da mãe.
Há muito, muito antigamente, não bastava ser rico, você tinha que mostrar que era rico… ok, isso continua até hoje, e já que ostentação sempre foi a palavra de ordem, vamos ver… o que de mais caro temos aí? No tempo do Ciclo da Cana, presentes de casamentos eram dados sob a forma de saquinhos de açúcar. Pois, é. O cara não conseguiria adoçar um café, mas mandava aquele EITHA PÍULA, AÇÚCAR!!! Quando recebia, já que era um presente muito maneiro.
No caso da Europa a partir do século XVII, açúcar era praticamente inexistente, então, o lance era ostentar com outra coisa, e esse “outra coisa” escolhido foi o marfim, considerado um dos materiais mais preciosos e desejados da época. Objetos do dia-a-dia eram esculpidos em marfim para mostrar o quão rica uma pessoa era; mas obviamente, muitos itens muito especiais e peças artísticas também eram esculpidos no maravilhoso marfim.
Os europeus ricos, muito ricos, desenvolveram uma obsessão quase doentia pelo marfim, e isso acarretou no aumento do volume de comércio com a Índia e o Leste Asiático, que apresentou ao Ocidente as estatuetas netsuke delicadamente esculpidas do Japão, entre outros itens de marfim. O fascínio pelo marfim tinha um custo, é claro, e este custo era a caça desenfreada por elefantes, focas, baleias, hipopótamos e qualquer coisa que desse ossão gigantão que pudesse ser vendido como marfim, mas a suavidade ao toque, a durabilidade e a aparência fenomenal não enganava os especialistas, que sabiam reconhecer marfim muito bem, e isso aumentava o seu valor.
Arte netsuke
Com o Renascimento tendo sido iniciado, houve uma corrida pelo saber científico e uma das buscas era o corpo humano, a máquina mais maravilhosa que o Homem conhecia na época. Com isso, associaram o belíssimo marfim com a maravilha do corpo humano e começaram a fazer modelos anatômicos muito detalhados. Um dos motivos? A incapacidade de ter defuntos à disposição para se estudar.
Então, quem podia, roubava os seus ou pagava a gente de péssimo caráter para roubar corpos. Mas o conhecimento médico do corpo não podia esperar. Começaram a fazer modelos anatômicos para vender para os estudantes de medicina ou mesmo médicos, como decoração. Para quem não tinha (muitíssimo) dinheiro, modelos de cera eram frequentemente usados no lugar de materiais de modelagem mais caros, embora a cera usada fosse frequentemente obtida de baleias cachalotes, mas ainda assim, mais barato. Para os mais ricos, que tal aquela decoraçãozinha diferenciada?
Modelo anatômico em cera. Dá para ter pesadelos.
E foi assim que os modelos de marfim muito detalhados foram aparecendo, inicialmente esculpidos na Alemanha durante o século XVII, que é possivelmente quando muitas das bonecas anatômicas de marfim foram criadas também.
Não sobraram muito modelos de marfim daquela época, mas os poucos modelos existentes mostram homens e mulheres, com a curiosidade que os modelos femininos mais comuns são todos de grávidas. Talvez essa fosse uma das condições médicas mais incompreendidas da época e, portanto, um mistério que os médicos queriam entender: a gravidez, esse mistério. Nesses modelos, sob as camadas superiores da pele, parede abdominal e intestinos está o útero com um feto dentro, que normalmente está preso com um cordão umbilical de fio de seda, um pequeno detalhe que só aumenta a natureza especial dessas esculturas, já que seda era outro artigo caríssimo.
No entanto, os órgãos geralmente não são muito detalhados. Isso levou historiadores e pesquisadores à conclusão de que os modelos não eram usados para ensinar estudantes de medicina sobre o corpo, apenas, mas também para ensinar leigos sobre sexo e gravidez. Ou provavelmente porque era tão tabu que érea maneiríssimo ter algo “proibido”.
Para finalizar, é importante frisar um detalhe muito interessante: como as esculturas estão dispostas. Normalmente, em luxuosas camas de veludo, ou em pequenas almofadas de renda, e quase sempre têm sorrisos no rosto, mostrando felicidade e satisfação, associando as peças a uma das coisas mais prazerosas na vida: gastar dinheiro a rodo, de preferência com algo relacionado a sexo.
Sexo sempre vendeu e sempre vai continuar vendendo muito. Pelo menos, diferente do marfim, você pode obtê-lo, de graça ou pagando… nem que seja uma estatueta.
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