Como os sumérios assinavam seus documentos

Não basta você ser alguém. Você precisa provar que é esse alguém. Hoje, temos os certificados digitais, mas sempre usamos assinaturas. Romanos antigos usavam anéis de sinete para poderem provar que eles eram quem diziam, mas isso vem de uma prática muito mais antiga.

Para os mesopotâmicos antigos, provar que era alguém era também muito necessário e para conseguirem provar quem era quem, faziam uso de tabletes de argila, claro, como era de praxe em todos os seus documentos; mas ainda havia mais uma engenhosidade:  cilindros de rochas.

A história dos selos cilíndricos começa há cerca de seis mil anos no sul da Mesopotâmia, região entre os rios Tigre e Eufrates (atual Iraque e Síria). Os sumérios, que desenvolveram a escrita cuneiforme e as primeiras cidades-estado, criaram essa forma particular de autenticação documental. Os cilindros possuíam, geralmente, 5 cm de altura por 2,5 cm de diâmetro, e funcionavam simultaneamente como obras de arte, documentos de identidade, amuletos de proteção e ferramentas administrativas. Comparada a esses objetos, nossa assinatura digital moderna parece desprovida de qualquer carga simbólica.

A função era pragmática: em uma sociedade cada vez mais complexa, contratos, inventários de templos, distribuições de rações e registros de impostos precisavam ser assinados e protegidos contra falsificações. O que começou como necessidade administrativa rapidamente se transformou em expressão artística sofisticada.

O processo de criação revela perícia técnica extraordinária. Os cortadores de selos (profissionais especializados após quatro anos de aprendizado) utilizavam a técnica do intaglio: escultura em relevo negativo. O desafio consistia em entalhar imagens e textos na superfície curva da pedra de forma invertida e em espelho. Quando o cilindro era rolado sobre argila úmida, a impressão surgia em relevo positivo com a imagem correta, como podem ver na imagem de abertura. Um cilindro à direita, que quando era rolado pela argila deixava uma marca, que pode ser visto à esquerda da imagem.

O artesão precisava visualizar mentalmente o resultado final enquanto esculpia seu oposto na pedra, habilidade que exigia anos de prática e domínio espacial excepcional.

A Mesopotâmia era pobre em recursos minerais, tornando necessária a importação de pedras de regiões distantes. Materiais como lápis-lazúli (Afeganistão), diorita (Omã), cornalina e ágata (Vale do Indo) eram extraordinariamente valiosos e acessíveis apenas à elite: realeza, altos burocratas e sacerdotes vinculados ao Estado e aos templos. Classes mais baixas produziam selos de calcário, argila comum ou vidro. Essa distinção material funcionava como marcador social visível. Todos precisavam de um selo para participar da vida econômica e legal da sociedade, mas a qualidade da pedra identificava imediatamente a posição hierárquica do proprietário.

Os textos gravados nos selos incluíam nome, genealogia, gênero, profissão e cidade natal do proprietário, transformando cada peça em registro biográfico miniaturizado. Pesquisas arqueológicas indicam que mulheres representavam aproximadamente 10 a 15% dos proprietários de selos conhecidos, proporção significativa considerando as restrições sociais da época. Um exemplo notável é o selo de calcedônia do século XIV A.E.C. pertencente a Tunamisah, filho de Pari, que trazia inscrito um hino à deusa Inanna. Outro, do período acadiano, identificava Balu-ili como copeiro da corte real e exibia cenas de caça com cabras-montesas.

As imagens variavam de cenas cotidianas (agricultura, caça, rituais religiosos) a narrativas míticas envolvendo deuses, heróis e criaturas híbridas como grifos e cavalos alados. Grande parte dessa iconografia refletia escolhas pessoais dos proprietários. Evidências de oficinas em cidades como Ur sugerem que muitos selos eram pré-esculpidos com motivos culturais populares e vendidos em mercados, com inscrições personalizadas adicionadas sob demanda. Selos de membros da elite, entretanto, eram criados sob encomenda, com reis mesopotâmicos ou seus assessores monitorando e aprovando designs destinados a funcionários de alto escalão.

O processo de selagem seguia sequência específica. Primeiro, o cilindro era rolado sobre argila úmida (tabuletas ou envelopes de argila chamados bullae que envolviam documentos). A impressão deixada atestava autoria ou autorização do conteúdo. Quando a argila secava, formava lacre inviolável. Múltiplos selos em um mesmo documento indicavam co-autoria ou testemunhas. Selos também serviam para lacrar recipientes de armazenamento e portas, funcionando como dispositivos de segurança que identificavam o proprietário.

Fisicamente, os selos tinham furo atravessando seu eixo central e eram usados pendurados em cordas de couro ao redor do pescoço ou punho, ou presos às vestes. Mantidos sempre disponíveis, cumpriam também funções de joia e amuleto protetor, adicionando dimensões estética e religiosa à sua utilidade prática.

A tradição artística dos selos permaneceu ininterrupta do final do quarto milênio até o primeiro milênio A.E.C., adaptando-se através de diferentes períodos culturais:

  • Período Sumério (c. 3000 A.E.C.): Estilo geométrico com animais estilizados e padrões abstratos
  • Período Acadiano (c. 2300 A.E.C.): Narrativas complexas com heróis em cenas de caça e combate
  • Período Assírio (c. 1000 A.E.C.): Representações detalhadas de batalhas reais e cerimônias religiosas elaboradas

Essa evolução estilística documenta não apenas mudanças artísticas, mas transformações políticas, religiosas e sociais ao longo de três milênios. Milhares desses artefatos preservados em museus ao redor do mundo oferecem janela única para compreender indivíduos específicos de uma época distante.

O contraste com práticas modernas é revelador. Assinamos documentos com rabiscos apressados ou cliques digitais que não carregam carga pessoal ou artística. Os mesopotâmicos investiam em suas marcas pessoais dimensão identitária profunda: um selo não apenas autenticava documentos, mas declarava quem alguém era, suas crenças, origens e valores. Era miniatura esculpida da própria identidade.

A influência dos selos cilíndricos estendeu-se além da Mesopotâmia, inspirando práticas de selagem em civilizações posteriores, incluindo os persas, que adaptaram a técnica para seus próprios sistemas administrativos. Elementos dessa tradição ecoam até hoje em discussões contemporâneas sobre identidade digital e autenticação, onde questões de unicidade, verificabilidade e expressão pessoal permanecem centrais.

Os mesopotâmicos transformaram necessidade burocrática em forma de arte que revelava não apenas sofisticação cultural, mas a alma de indivíduos que viveram há milhares de anos. Hoje, honramos esta memória, ainda que de forma inconsciente, ao assinarmos documentos, contratos e até canhotos de entregas. Mas ainda acho que esses cilindros antigos eram bem mais estilosos, não acham?


Fontes:

Um comentário em “Como os sumérios assinavam seus documentos

Deixe um comentário, mas lembre-se que ele precisa ser aprovado para aparecer.