
Eu fui a uma loja de roupas hoje. Tinha de todo tipo: as modernas dry-fit, as de poliéster com algodão, as de algodão puro. Uma miríade de roupas de todo tipo de preço (obviamente, não sou de frequentar lojas que cobram caríssimo. Então, em algum momento eu fiquei pensando como era a vida há 100 anos. Você estudou (ou, pelo menos, seu professor tentou ensinar) que em 1929 foi o estopim da Grande Depressão. Não entrarei em detalhes sobre isso. Mas uma coisa eu sei: comprar roupas naquela época era difícil, como tudo naquela época era difícil.
Veio a década de 1930 principalmente os EUA estavam sob os problemas causados pela Crise de 29. O país inteiro está de joelhos por causa da crise econômica, arrumar emprego era dificílimo, lojas fechando e a sobrevivência estava cada vez mais difícil! E se comprar comida estava cada dia mais problemático, vestir as pessoas nem se fala. Mães viam seus filhos com roupas já pequenas demais e cheias de remendos, enquanto os maridos saíam todos os dias em busca de trabalho e voltando de mãos vazias. Não havia dinheiro para alimentação e nem para comprar tecido novo, muito menos roupas prontas.
O lema era “se vira que você não é quadrado”, o tipo de coisa fácil de falar, porque eu garanto que nenhum político daquela época só fazia uma refeição por dia. Não sendo políticos ou grandes empresários (ambos responsáveis pela cagada que ocorreu em 1929), cabia à população garantir que nada fosse desperdiçado e tudo fosse reutilizado ou reciclado. Isso estimulou as famílias a serem incrivelmente criativas na forma como lidavam com refeições, roupas e com o racionamento de água e serviços públicos. Nada era desperdiçado, tudo era reaproveitado, desde as sobras de comida até o último pedaço de sabão.
Foi nesse cenário que nasceu uma das histórias mais fascinantes de criatividade popular americana, quando as mulheres começaram a olhar para os sacos de farinha que eram feitos de algodão e pensaram “por que não fazer roupas com eles?”. Essa tendência rapidamente se popularizou e, assim que as empresas de farinha souberam disso, começaram a contribuir com a impressão de padrões em suas sacolas e até mesmo adicionando cores.
O que começou como um gesto desesperado de economia logo se transformou em uma verdadeira arte popular. Aqueles sacos eram vistos como uma fonte gratuita de material para a confecção de roupas para famílias pobres. Grupos de mulheres se reuniam para trocar os sacos e vendedores ambulantes compravam e vendiam os sacos vazios. Na década de 1930, as empresas consideravam os sacos uma parte crucial da comercialização de seus produtos. Em 1936, a Staley Milling Company, de Kansas City, Missouri, comercializava o “Tint-sax” em tons pastéis.
Não demorou muito para que as empresas de farinha, ração e açúcar percebessem o que estava acontecendo. Em vez de ignorar essa tendência nascida da necessidade, fizeram algo surpreendente: começaram a imprimir seus sacos com padrões coloridos e atraentes. Era marketing puro! Elas sabiam que agora não estavam vendendo apenas farinha ou ração, mas também o tecido para o próximo vestido da filha ou camisa do filho.
Sim, você é uma pessoa nobre, com coração puro e tem a melhor das intenções e acha que o mundo é assim. Não, não é. As empresas não estavam sendo bondosas, porque efetivamente tinham um custo a mais. Elas apenas olharam além da curva e viram um potencial para alavancar suas vendas.
E obviamente, isso nunca aconteceria no Brasil, a terra da reduflação. Mas não estou falando do Brasil, que não é parâmetro de nada. Continuemos.
Os padrões florais eram os mais cobiçados. Em pequenas mercearias pelo país, era comum ver mulheres vasculhando as pilhas de sacos de farinha, procurando estampas que combinassem. Registros da época mostram que muitas mulheres escolhiam marcas de farinha não pela qualidade do produto, mas pela beleza do desenho do saco, como documentado nos estudos sobre vida doméstica rural durante a Depressão.
Em 1927 – ou seja, pouco antes da Grande Depressão se abater sobre os americanos –, três jardas (ou 2,7 metros, já que americano usa tudo, menos o sistema métrico) de percal de algodão estampado para vestido – a quantidade típica de tecido necessária para um vestido adulto de tamanho médio – custavam sessenta centavos quando comprados no catálogo da Sears and Roebuck. Três jardas de peças de vestuário com estampa xadrez podiam custar quarenta centavos. Em comparação, três jardas de tecido xadrez usado em sacos de farinha Gingham Girl da George P. Plant Milling Company podiam ser recuperadas após o uso de dois ou três sacos de farinha de cem libras (pouco mais de 45 kg. Malditos americanos e seu sistema imperial do Inferno!)
Donos de lojas de produtos agrícolas notavam com frustração como os critérios de compra haviam mudado. Onde antes os fazendeiros pediam ração pela qualidade e reputação da marca, agora suas esposas apareciam perguntando por sacos com determinados padrões decorativos, uma mudança significativa nas dinâmicas de consumo rural. Os comerciantes do varejo, diferente dos fabricantes, não conseguiam perceber e ficavam indignados.
Deve ser por isso que eles eram varejistas e não industriais.
A dinâmica social mudou radicalmente. Não cabia mais ao homem decidir qual marca comprar, e sim a esposa, ainda mais que ela sabia coo vestir as crianças, coisa que homens pouco se importavam. Com isso, o uso de sacos como roupas passou a ser uma decisão das mulheres, e não dos homens. Os donos de lojas de ração começaram a ver pessoas pedindo o mantimento, não pela qualidade, marca ou fabricante do produto, e sim qual a reclamou que as decisões de compra passavam do agricultor para a dona da fazenda, dizendo que os maridos costumavam pedir todos os tipos de ração, marcas especiais… agora as esposas iam e perguntavam se tinha mantimentos ensacados em tecido florido.
Nisso, apareceu um problema que antes não havia: encontrar sacos que combinassem. Era importante, pois muitos padrões exigiam mais de um único saco. As famílias às vezes guardavam sacos e trocavam com vizinhos para obter sacos suficientes em uma estampa específica. Não apenas isso, havia ainda o problema da qualidade do fio usado. Sacos de ração eram mais grosseiros do que os sacos de farinha, mas era difícil obter sacos de farinha suficientes no mesmo padrão para fazer um vestido. Um saco de 45 kg de ração para galinhas fornecia um pedaço de tecido de 91 cm x 112 cm, pouco mais de um metro quadrado.
Isso criou uma rede informal de trocas entre vizinhas que poderiam estar separadas por quilômetros de estradas rurais. Relatos históricos documentam que em muitas comunidades rurais, principalmente nas sextas-feiras após as tarefas da manhã, as mulheres se reuniam na casa de alguma vizinha para trocar sacos. Esses encontros funcionavam como pequenos eventos sociais onde, além de trocarem os sacos, compartilhavam café, algum bolo feito com economia de ingredientes, e claro, as fofocas da comunidade.
Essas redes informais de troca permitiam que as mulheres conseguissem acumular quantidade suficiente de sacos idênticos para projetos maiores, como conjuntos de cortinas. Mas, ainda tinha um outro fator: senso de comunidade. Isso estreitou os laços sociais. Estava todo mundo ferrado, então, a rede de suporte entre as pessoas foi aumentada.
Entretanto, a maior dificuldade técnica era justamente remover aquelas marcas teimosas dos tecidos. Os registros históricos mostram que muitas mulheres gastavam horas esfregando os tecidos até deixarem as mãos em carne viva. Foi um grande alívio quando, finalmente, as empresas começaram a usar tintas que saíam facilmente na primeira lavagem.
Nesse ínterim, as empresas logo perceberam o potencial. A Staley Milling Company lançou os famosos “Tint-sax”, sacos em cores pastéis que viraram febre entre as donas de casa. A chegada de um carregamento desses sacos coloridos em lojas locais era um acontecimento notável nas pequenas comunidades, gerando empolgação semelhante à de liquidações nos dias atuais.
O movimento ganhou tanta força que, em 1933, a Associação dos Fabricantes de Sacos Têxteis publicou um livreto chamado “Costurando com Sacos de Algodão”. Ali, entre outras dicas preciosas, ensinavam como remover as marcas e logotipos, sugerindo técnicas como deixar de molho em querosene ou banha por uma noite, esfregar bem e lavar com água quente e sabão.
Editoras entraram na onda e começaram a impressão de livretos com instruções sobre como criar roupas e outros itens domésticos a partir de sacos, especificando quantos sacos de um determinado tamanho eram necessários para um item específico, e moldes projetados especificamente para utilizar sacos de ração. Os moldes eram publicados em revistas e jornais que atendiam comunidades rurais.
E não eram só vestidos! Com os sacos, faziam-se calças, camisas, roupas íntimas, toalhas de mesa, lençóis, cortinas e até fraldas para bebês. O material mais grosseiro, como os sacos de ração, virava calças de trabalho para homens e meninos. Os de farinha, mais macios, eram reservados para peças que tocavam a pele mais diretamente.
Em muitas famílias, a habilidade de transformar sacos em roupas bonitas era motivo de reconhecimento. Muitas ganhavam prêmios com vestidos feitos inteiramente de sacos. Frequentemente, os jurados ficavam incrédulos quanto à origem do tecido, exigindo provas de que realmente se tratava de material reaproveitado. Os sacos se tornaram um elemento da cultura material, as roupas e os costumes das populações rurais refletem a vida e a época da mesma forma que as da população em geral.
No entanto, foram as atividades dessas esposas de fazendeiros, vestindo suas famílias em sacos de ração, que oferecem uma visão de vida única das comunidades rurais durante esse período. À medida que as roupas se desgastavam, elas eram frequentemente recicladas novamente em colchas, tapetes e panos de limpeza. A cultura do reaproveitamento até a última linha de costura era levada muito a sério, e alguns atribuem a isso a saída do país da Grande Depressão. Ao menos, nas zonas rurais.
O sentimento comum era que, embora fossem pobres em recursos financeiros, eram ricas em engenhosidade. O maior orgulho dessas mães era que ninguém podia dizer que seus filhos não estavam bem-vestidos, mesmo que seu guarda-roupa tivesse começado como embalagem de alimentos.
À medida que a Segunda Guerra Mundial se aproximava, a prática ganhou novos contornos. Com o racionamento de tecidos, usar sacos de algodão não era mais apenas uma medida de economia, mas um ato patriótico, pois, se tem uma coisa que ajuda no racionamento de algo é envolver patriotismo (voltemos à parte que pessoas abastadas e políticos não se sentiam obrigados a este “dever patriótico”). Cartazes do esforço de guerra promoviam a ideia de que usar sacos significava economizar tecido para os soldados no front.
E quando finalmente as roupas feitas de sacos ficavam velhas demais para serem usadas, ganhavam nova vida: viravam colchas, tapetes, panos de limpeza. Nada se perdia, tudo se transformava. Uma única estampa floral podia vestir uma menina, depois virar parte de uma colcha e terminar seus dias como pano de pó.
Mas a guerra veio e se foi, e com ela chegou o entusiasmo. Os EUA estavam em franca ascensão, a indústria deslanchou e havia empregos. Com o desenvolvimento da indústria, bens de consumo começaram a aparecer em todo canto junto com ele, a incrível maravilha tecnológica: plásticos. O plástico tornava tudo mais barato, mais acessível. Os salários aumentaram e as famílias não precisavam mais fazer racionamento. A inventividade e criatividade para resolver o grande problema de como vestir a família e decorar a casa não era mais problema.
Mas alguma coisa ficou.
O senso de comunidade fortalecido não esmoreceu, e as famílias, morando mais juntas graças à disseminação de áreas suburbanas (que nos EUA têm um conceito diferente do subúrbio brasileiro). As casinhas mais próximas, geminadas até, estreitaram ainda mais o senso de comunidade das pessoas e cada um começou a olhar mais pelo outro. As mulheres aprenderam a importância da comunidade quando da época de necessidade, e não iriam esquecer agora.
E tudo por causa de uns sacos de farinha.
Para saber mais:

Um comentário em “Quando sacos de alimentos ajudaram a aquecer corpos e corações”