
Os olhos bem delineados com Kohl negro estão fixos. Mais uma gota! Um suave agitar do frasco. O brilho nos castanhos olhos e um torcer no lábio fino, delicado, mas decidido mostra que sua dona está satisfeita. A mistura revolve no frasco e um espírito benévolo desliza para o ambiente trazendo a leveza, a magnífica onda de olor. A fina corrente de ouro traduz o status daquela mulher que fecha os olhos, deixando aparente a belíssima cor azul do lápis lazúli em suas pálpebras. Sim, está perfeito. As narinas se abrem e inalam a maravilha que produzira e aquela mulher se ergue num farfalhar de sua túnica rica em brocados e detalhes em ouro manda um dos seus servos registrar em um tablete de argila a sua conquista. Ela produzira a magia em forma de perfume, cujo aroma enfeitiçaria todos que sentissem reconhecendo-a como a mais grandiosa de seu tempo.
Ela, Tapputi, a primeira química da história!
A história da ciência frequentemente negligencia contribuições fundamentais de mulheres em períodos históricos remotos. Neste contexto, Tapputi-Belatekallim emerge como uma figura singular na História da Química, representando uma das primeiras profissionais documentadas em práticas científicas e de perfumaria na antiga Mesopotâmia.
As evidências sobre Tapputi provêm de uma tabuleta cuneiforme datada aproximadamente de 1200 A.E.C., preservada nos arquivos do Museu do Louvre, em Paris. Este documento único constitui o registro mais antigo conhecido de uma mulher exercendo funções técnico-científicas em um contexto palaciano babilônico, especificamente como chefe de perfumaria real.
O que sabemos sobre a primeira perfumista no registro histórico vem de uma pequena tabuleta de argila. A tabuleta, KAR 220, é uma concordância acadêmica sobre perfumaria e foi alojada ao lado de outros textos químicos na antiga biblioteca de Aššur. A tabuleta, redigida em escrita cuneiforme acadiana, está escrita em assírio médio e atualmente reside no Museu Vorderasiatisches em Berlim. Ela descreve Tapputi não apenas como uma perfumista, mas como uma profissional com conhecimentos sofisticados de processos de extração, destilação e purificação de substâncias. Seus métodos revelam uma compreensão técnica impressionante para o período, utilizando processos que antecipam princípios fundamentais da química moderna.
Não temos muitas informações, mas o escriba do KAR 220 nos fez um imenso favor: ele datou seu trabalho. A tabuleta foi feita no 5º ano do reinado do rei Tukultī-Ninurta I, no dia 20 do mês de Muhur-ilani (maio de 1239 A.E.C.). O rei Tukultī-Ninurta I (cujo nome significa “Minha Confiança Está no Deus Guerreiro Ninurta”) foi um rei da Assíria que reinou entre 1243 e 1207 A.E.C., tendo sucedido seu pai, Salmanaser I, seu pai. O rei Tukultī-Ninurta I subiu ao trono durante o Império Assírio Médio, e se destacou ao ter impingido uma vitória grandiosa contra os hititas, comandados pelo rei hitita Suppiluliuma I, na Batalha de Nihriya, o que lhe fez passar a ser chamado “Rei dos Reis”.
Tapputi trabalhava diretamente para a corte real, desenvolvendo fragrâncias e produtos aromáticos utilizando uma complexa metodologia de manipulação de ingredientes naturais. Suas técnicas envolviam a extração de óleos essenciais de flores, ervas, resinas e outras substâncias orgânicas, demonstrando um conhecimento refinado das propriedades físico-químicas dos materiais disponíveis.
Seu trabalho era reservado para a nobreza dentro de uma economia palaciana rigidamente controlada. A tabuleta descreve seu perfume como “adequado para o rei”. Essa linguagem é importante. Da guilda dos perfumistas de Mari, sabemos que apenas os homens costumavam fazer fragrâncias para os reis. Na Assíria, ou pelo menos sob Tukultī-Ninurta I, as mulheres também faziam fragrâncias para a camada mais alta da sociedade. Ainda assim, o texto inclui a linha, “da boca do muraqqītu Tappūtī-Bēlet-ekallim”. Conclui-se, então, que ela era uma mulher. Sabemos disso porque seu nome e seu título, muraqqītu, estão ambos na forma feminina.
No entanto, ela não tinha o título de šangitû bit hilṣi (supervisora da oficina do perfumista), então, embora seu trabalho fosse digno de registro, ela provavelmente tinha um chefe. É improvável que ela estivesse no topo da hierarquia do bit hilṣi ou seu título refletiria isso, sendo tão-somente uma funcionária feminina de um palácio, ainda um cargo de certo prestígio. Lembrando, era uma época que apenas homens faziam perfume para os reis.
O fato de Tappūtī-Bēlet-ekallim ser citada é significativo. Existem inúmeros documentos de perfumaria mais antigos de toda a Mesopotâmia, no entanto, os trabalhadores do palácio, mesmo os trabalhadores qualificados como perfumistas, muitas vezes não eram nomeados nos registros escritos. Isso era especialmente verdadeiro para os perfumistas que chegaram a Aššur (é como eles chamavam o que você conhece hoje como Assíria) por meio da conquista. Muitas vezes, eles são referidos por sua cidade ou nacionalidade de origem (exemplo: “O Perfumista Assírio”).
De uma maneira geral, as mulheres do Oriente Médio e do Egito eram alvo de escravidão na Mesopotâmia com base em suas habilidades de fabricação de perfumes, cosméticos, cabeleireiro, culinária e fabricação de têxteis. Afinal, uma de suas justificativas para a expansão imperial era o acesso a bens e matérias-primas indisponíveis na Assíria. Isso também exigiu o desenraizamento de trabalhadores qualificados familiarizados com esses materiais. Isso é até mencionado na Bíblia, mais especificamente em 1 Samuel 8: 11-13.
E [Deus] disse: Este será o costume do rei que houver de reinar sobre vós; ele tomará os vossos filhos, e os empregará nos seus carros, e como seus cavaleiros, para que corram adiante dos seus carros. E os porá por chefes de mil, e de cinquenta; e para que lavrem a sua lavoura, e façam a sua sega, e fabriquem as suas armas de guerra e os petrechos de seus carros. E tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras.
Embora o número de textos de fragrâncias da Mesopotâmia traduzidos seja limitado, eles dão a impressão de que a fabricação de perfumes estava associada a trabalhadores estrangeiros e exilados; mas nunca saberemos se Tappūtī-Bēlet-ekallim era uma dessas filhas levadas, nativa da Assíria ou uma imigrante voluntária na capital. Seu nome é assírio, mas se traduz em “a assistente da Senhora dos Palácios”. A Senhora mencionada aqui é a deusa Bēlet-ekalli, protetora dos palácios. Este nome provavelmente não era seu nome de nascimento, mas, em vez disso, um nome adotado no serviço imperial, que era uma prática comum.
A fragrância representada na tabuleta é uma pomada aromática criada pela maceração de plantas por meio de uma série de tratamentos com óleo e água. Isso infundiu o óleo com perfume e engrossou o produto. Embora essas técnicas sejam bastante rudimentares para os sofisticados métodos de produção de hoje, vemos os primeiros antepassados da enfleurage e da destilação a vapor neste trabalho (se você leu o livro “O Perfume”, de Patrick Süskind, sabe do que se trata).
É importante lembrar que essa fórmula não está sendo gravada porque foi uma inovação. Não é a primeira fórmula de perfume. Esta fórmula, em vez disso, foi guardada para a posteridade, com um texto escrito assumindo que o leitor já está familiarizado com essas técnicas. Infelizmente, nem todos os ingredientes foram identificados. O texto também está danificado, faltando seções. Uma tradução completa é impossível, mas o que temos ainda é esclarecedor.

Se você preparar flores, óleo e cálamo como bálsamo, e tiver testado as flores do cálamo e suas partes verdes, você montará um … e vaso destilatório. Você coloca boa água potável … em uma cuba. Você aquece o tabilu (um aromático) e o coloca. Você coloca 1 qa (1 qa = aproximadamente meio litro) hamimu (um aromático), 1 qa iaruttu (um outro aromático), 1 qa de óleo de mirra bom e filtrado na cuba. Seu padrão nisso é a água retirada e dividida. Você opera no final do dia e à noite. Permanece durante a noite.
Mantenha mergulhado. Você filtra esta solução … com um pano filtrante em uma cuba ao amanhecer, ao nascer do sol. Você transfere deste tanque para outro tanque. Você remove o minduḫru (tipo de partícula, sedimento). Você lava 6 qa de raiz de cyperus triturada com a mistura líquida desses aromáticos. Você remove o paḫḫu (um tipo de sedimento claro).
Você coloca em cima dessa mistura líquida de aromáticos, dentro de uma tigela de decantação: 6 qa de murta, 6 qa de cálamo, triturado e filtrado.
Você mede 4 seahs (1 seah = aproximadamente 8 litros) desta mistura líquida que foi embebida durante a noite.
Ao amanhecer, quando o sol nasce, você filtra o líquido e esses aromáticos através de um pano filtrante para uma cuba. Você clarifica a mistura filtrando-a desta cuba para outra cuba.
Você examina o material fragmentado. Você remove sua parte ruim. Você filtra esta solução que você clareou em um recipiente destilatório … 3 qa … Você joga … bálsamo nesta solução na cuba. Você acende um fogo. Quando a solução é aquecida para a mistura, você despeja o óleo. Você agita com um agitador. Você raspa; Você remove o tiṇtiṇu (um tipo de sedimento fino) … essa mistura líquida … você a filtra e a clareia.
… suas misturas líquidas, aquelas que você clareou … você derrama … Você adiciona 3 seahs de pirsạ duḫḫu (um aromático) no topo desta mistura líquida … Quando o óleo, a solução e os aromáticos continuam a se dissolver, você acende o fogo … Você cobre o recipiente destilatório por cima. Você esfria com água. Quando o sol nasce, você prepara um recipiente para o óleo, a solução e os aromáticos. Você permite que o fogo sob o recipiente destilatório se apague. Você remove as substâncias destiladas e sublimadas da calha do recipiente destilatório …
… ao amanhecer … os aromáticos que se interpenetraram … O fogo sobe… você cobre o topo do recipiente destilatório; você o refresca. Você prepara um pote šappatu para óleos de junco. Você coloca um pano de filtragem com uma peneira no frasco de šappatu e, em seguida, pegando um pouco de óleo de cada vez, coa-o através do pano de filtragem para o frasco de šappatu. Você remove os resíduos e sedimentos deixados no recipiente destilatório.
Receita de fabricação de perfume para 2 seahs de óleo de cana processado, adequado para o rei, de acordo com a boca de Tappūtī-Bēlet-ekallim, a fabricante de perfumes: mês Muhur-ilani no 20º dia do 5º ano; o epônimo de Šunu-qardu (Tukultī Ninurta I), o chefe.
Vemos aqui muitas técnicas modernas, como destilação, adição de solventes, filtração, clareamento da solução, evaporação para concentrar a mistura. me lembrei do fascínio que tive nas primeiras aulas laboratoriais da faculdade. Essa magia de extrair coisas, de fazer algo se transformar e onde se tinha apenas óleo se transformar numa mistura perfumada. Isso é Química!
É preciso ser justo agora. Efetivamente, Tapputi não foi a primiera química da História. Foi a primeira química imortalizada numa inscrição da História. Mas não importa. Muito do que se pensa da História se deve ter ressalvas daquilo que não foi registrado. Como Senhor Supremo deste blog, eu me outorgo o direito de achar que Tapputi, não só foi a primeira química, como ela era exatamente como a descrição na abertura do artigo, e seus contrapontos argumentando que uma serva não teria corrente de ouro na fronte, ou usando maquiagens dignas de rainha serão ignorados. Tapputi era, é e será assim para mim.

Um comentário em “Grandes Nomes da Ciência: Tapputi-Belatekallim”