Grandes Nomes da Ciência: Charles-François Felix de Tassy ou O Dia Que Uma Bunda Revolucionou a Medicina

A vida dos Grandes Reis é um tanto complicada. Ainda mais se o sujeito vivia no tempo do Absolutismo, e principalmente se fosse um dos maiores exemplos desse Absolutismo. Entendam, pega mal você se posar como enviado de Deus à Terra e aparecer com alguma doença mundana, correndo sério risco de voltar ao Seio do Senhor de forma tosca. O que irão pensar de você? A propósito, não estou dizendo que Deus tem seios, mas vai que tem? Bem, este não é um artigo sobre a morfologia curvilínea do Altíssimo, e sim de quando um rei teve um sério problema em seu… bumbunzinho.

Essa é a história de quando Luis XIV, o Rei Sol, teve um problema seríssimo onde o Sol não brilha.

Luís XIV foi o sujeito sobre quem você aprendeu na escola (ou deveria ter aprendido, embora o professor tenha tentado ensinar) como sendo chamado “O Rei Sol”, já que era vaidoso demais além de ser megalomaníaco e estar cansado da nobreza dando palpites e mandando mais na França do século XVII do que ele. Assim, ele instituiu que ele mandava na bagaça mandando o famoso “L’État, c’est moi” (O Estado sou eu, carai!).

A propósito, esta frase é apócrifa, e como diria o Analista de Bagé, texto apócrifo é mentira bem-educada. Não há nenhum documento comprovando que Luisão realmente falou isso, e soa mais como uma paráfrase das ações que ele tomou, já que ele meteu a mãozona de ferro e tomou para si o controle do governo francês, acabando com aquela confusão dos feudos e o fato do cardeal Jules Mazarin mandar mais que ele, por ser o Primeiro Ministro. Em 9 de março de 1661, Luis XIV chama seus ministros e praticamente diz que ele ia decidir todas as questões do Estado, com os ministros servindo de conselheiros, e nada mais.

Luis XIV tinha 23 anos na época, mas nas palavras de Louis de Pointe du Lac, era um tempo diferente. Não era um simples jovem, mas um homem feito, no comando de uma das maiores potências da época. Entretanto, mesmo os grandes reis e Delfins de França são acometidos por doenças comuns, o que não pega bem quando você diz que é tão especial que foi enviado por Deus à terra, tem sangue azul e é muito melhor que as pessoas comuns. Isso ficou comprovado em 1686, quando o Rei-Sol teve sérios problemas com os países baixos, e não estou falando do pessoal neerlandês.

Em fins do ano de 1685 e início de 1686, Luis XIV começou a apresentar desconforto nas nádegas e principalmente no ânus. Em 15 de janeiro de 1686, seus médicos identificaram um pequeno nódulo no ânus real, o que evoluiu para um abscesso em 18 de fevereiro e em 2 de maio já era uma terrível fístula anal.

Luis XIV não conseguia sentar direito, dormir direito, cavalgar, praticar esgrima e muito menos fazer suas necessidades reais no peniquinho real sem ter grandes acessos de dor e desconforto. Realmente, o rei estava péssimo! Os médicos não conseguiam tratar o problema, apelando para todo tipo de chá, banhos, pomadas, enemas, cataplasmas de chumbo, administração de cicuta e quaisquer outras esquisitices da época. Pelo visto, não só não estava melhorando como alguns poderiam dizer que estava piorando.

Antoine d’Aquin – o Médico Real e quem comandava a equipe que tratava o Rei – havia apontado que Luis XIV apresentava um pequeno tumor no períneo, junto à abertura das nádegas, a dois dedos do ânus, bastante profundo, pouco sensível ao toque, incolor, sem vermelhidão ou pulsações, mas as dores eram lancinantes!

Relatos da época descrevem como isso estava tornando a vida do rei um inferno e isso impactava o governo de França, o que já estava se transformando em fofoca na base “o Rei está morrendo”, o que não é nada agradável por diversos motivos. Um porque isso poderia causar caos social, posto que o Rei era uma figura divina, como falei. Como interpretar isso senão que Deus estava mais uma vez irritado e iria punir a todos, e o Fim do Mundo estava chegando? Isso sem falar que algum aventureiro poderia ter a brilhante ideia de achar que o trono ia ficar vago em algum momento muito em breve e ele podia muito bem ir lá ocupá-lo com seu exército naquele momento e antecipar tudo.

Como nenhum dos tratamentos teve efeito, recorreu-se a medidas extremas: um cirurgião-barbeiro!

Sim, é isso mesmo o que você está pensando. Os médicos não faziam cirurgias. Quem fazia isso eram barbeiros; pois, é. Os caras faziam barba, cabelo, bigode, amputava dedos, abria a barriga etc. O próprio Juramento e Hipócrates proibia cirurgias em cujo trecho vem “Não farei uso do bisturi, nem mesmo para os que sofrem do mal de pedras. Deixarei esta operação para os práticos”. Eu até entendo o motivo quando levarmos em conta que assepsia era praticamente inexistente e na maioria dos casos a pessoa ficava curada da doença, mas tinha o péssimo hábito de morrer por causa da vontade dos deuses, isto é, uma infecção.

Obviamente, a Coroa tinha o seu próprio cirurgião-barbeiro, e seu nome era Charles-François Felix de Tassy, e quando tudo estava dando errado, a saída era apelar pra Tassy, se livrando da batata quente, porque se desse muito errado, seria na mão dele, e não na de d’Anquin.

Tassy tinha boa fama entre a côrte francesa. Diziam que ele tinha mãos de fada e cortava como um anjo, mas enquanto era nos outros, estava ótimo. O problema é que agora ele ia cortar o rei, e ele sabia muito bem que se desse ruim, ia ser pior para ele; e o pior de tudo é que ele não podia fazer como d’Anquin e jogar a bomba para outro. Ele que teria que resolver o problema.

Tassy não tinha muita experiência em operações de fístulas anais. A rigor, ele não tinha experiência nenhuma, já que nunca tinha sequer visto uma fístula anal na vida, quanto mais operado uma. Então, ele pede ao rei tempo para se preparar e acesso garantido a todos os hospitais de Paris para operar pacientes sofrendo do mesmo mal. Luisão não apenas concedeu isso, como tinha carta branca dada pelo Rei para ele poder fazer o que quisesse, não importando qual fosse o resultado, com garantia de ter todo auxílio de todos os médicos, que obviamente não foram informados do motivo, mas as fofocas estavam correndo. Ainda assim, a equipe médica recebeu aquela advertência de se olharem para o outro lado e se manterem calados, ou outros cus seriam visitados.

No total, Tassy realizou (alegadamente) cerca de 75 intervenções, e acompanhou os pacientes bem de perto por longo tempo. Alguns especulam que ele fez questão de ficar calmamente fazendo suas pesquisas esperando candidamente o rei morrer primeiro, antes de sequer ter a chance de operá-lo. Se foi exatamente isso que aconteceu, Tassy não foi agraciado em seus pedidos, já que o Rei cismava de continuar vivendo, apesar de uma forma bem miserável de viver.

Tassy usou todas as técnicas conhecidas da época e até criou outras. Incisão, extirpação, cauterização, estrangulamento, ligadura entre outras. Ele queria saber qual era a mais eficiente e com maiores garantias que o furico real não ficasse muito comprometido e que, de preferência, o rei não morresse, como aconteceu com vários “voluntários”. Alguns foram dados como oficialmente mortos, mas o número pode ser maior, e ele fez de tudo para esconder.

Os meses estavam passando e Tassy estava sempre com alguma desculpa para atrasar a cirurgia do rei, mas as pressões vindas da côrte estavam se intensificando e alguns já estavam sacando que Tassy estava torcendo para que o pior acontecesse antes de ele sequer chegar perto do rei, mas depois de 6 meses nessa… pesquisa, decidiu-se que já era hora do grande Delfim de França fosse operado. Para tal, Tassy desenhou e encomendou uma instrumentação bem específica, baseada nas suas cirurgias anteriores.

Tassy criou um bisturi próprio para esta operação, feito em prata e aço. O bisturi em questão tinha lâmina curva e recebeu o nome de “faucille”, por lembrar uma foice. Não apenas isso, Tassy ainda criou um separador e uma pequena faca para incisões. Estes objetos estão no Musée d’Histoire de la Médecine de Paris.


Afastador para abrir o furico real e o bisturi pra cortar a fístula fora

Às 7 da manhã do glorioso dia 18 de novembro de 1686, Sua Majestade, Delfim de França, Rei Sol, Rei da França e Navarra, 14º Luís de França, el-Rei Luís Deodato da Casa de Bourbon ficou na pose que mais tarde outro governante francês perderia a guerra, murmurando “Meu Deus, eu me coloco em suas mãos”, em sua confortável e imensa cama no suntuoso Palácio Versalhes.

Claro, o ilustre Charles-François Felix de Tassy não ia fazer o procedimento sozinho, só ele e o Rei. Primeiro, ninguém ia correr o risco do Rei ser assassinado numa pose pouco digna. Segundo, para todo mundo estar a postos caso a cirurgia desse errado e o Rei batesse os sapatos estilosos, carregando Tassy para o calabouço.

Em volta de Tassy, estava um monte de gente absolutamente interessada no desfecho, cada um com seus motivos. Entre eles estava Antoine d’Aquin e os médicos reais, Madame Françoise d’Aubigné, Marquesa de Maintenon (mais tarde segunda esposa do próprio Luis XIV), Luís de Bourbon (que detinha o título de “Grande Delfim”, mas não vivera tempo suficiente para se tornar Luís XV, cabendo esta honraria ao bisneto de Luis XIV) e o Padre François d’Aix, senhor de La Chaise (o famoso Père LaChaise, cujo nome batizou o maior cemitério de Paris), seu confessor.

Tassy fez o procedimento com calma e cuidado, sem pressa, tendo sido assistido por quatro boticários. Relatos dizem que o Rei não abriu a boca para reclamar em nenhum momento, mas creio que foi uma gentileza que prestaram a ele. Afinal, não seria de bom tom deixar registrado que o Rei urrou de dor enquanto introduziam coisas no seu ânus, mas no final, a cirurgia foi um sucesso!

Os relatos continuam dizendo que Luisão passou bem a noite, e no dia seguinte, ele já recebia embaixadores e outros enviados. Na primavera do ano seguinte, Luís XIV estava tão ótimo que galopava em seu corcel. Provavelmente, isso é mentira já que há relatos que houve outras cirurgias nos dias 7, 8 e 9 de dezembro, depois que apareceram certas complicações.

Seja qual versão seja a verdadeira, Luís XIV viveu até o ano de 1775, falecendo aos 76 anos, o que é realmente digno de nota. Charles-François Felix de Tassy foi coberto de comendas, dinheiro (120.000 luíses de ouro era uma quantia enorme, na época), um título nobiliárquico e fama. Vários nobres correram para fazer cirurgias de fístula anal com ele, mas Tassy foi esperto o suficiente para não repetir a proeza, mas muitos médicos se apresentaram para fazer as intervenções, mesmo muitos desses nobres não serem acometidos da doença. O resultado foi algumas fístulas curadas, muita gente tendo sérias complicações e alguns nobres morrendo, para a satisfação de seus herdeiros, que devem ter estimulado que fizessem a cirurgia, mesmo não precisando.

O legado de Charles-François Felix de Tassy foi angariar respeito para a classe dos cirurgiões, fazendo deles mais uma especialidade médica, quando antes eram apenas curiosos a fim de arrumar um dinheiro ou de gente que realmente queria resolver os problemas das pessoas. Enquanto médicos árabes, judeus e indianos já faziam cirurgias, na Europa isso ainda era tabu, mas com o trabalho de Tassy (e sua incrível boa sorte), outros médicos europeus passaram a estudar como resolver problemas internos ao invés de deixar isso para gente que cortava o cabelo, raspava bigodes e amputava dedos, não necessariamente nessa ordem.

Cirurgiões se separaram dos barbeiros, e uma nova especialidade médica surgiu, mudando a História da Medicina, e isso graças a um rei porco que odiava banho e tinha um sério problema na bunda, resolvido por um cara que não tinha formação em Medicina e sequer tinha visto uma fístula na vida, ao custo de vários anônimos mortos em mesas de operações, cujo destino não iria ser lá muito diferente se não passagem pela cirurgia.

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