Seres humanos são mamíferos. Ok, nada demais nisso. O nosso diferencial de outros mamíferos é que nós criamos gado leiteiro para nos suprir de leite. Não que criar outros seres vivos para a própria alimentação seja exclusividade humana, já que formigas também fazem isso. O problema é que não éramos para continuar ingerindo leite e seus derivados. Só conseguimos fazer isso graças a uma mutação que nos deu capacidade de quebrar a lactase em açúcares menores. Lá pro ano 10.000 A.E.C., uma mutação virou este jogo, e em algum lugar perto do que hoje é a Turquia, um grupo de pessoas desenvolveram a capacidade de digerir lactose mesmo depois de adulto (Evolução só acontece em populações, nunca em indivíduos isolados).
Pesquisadores resolveram estudar os mongóis para saber mais sobre a sua dieta à base de leite e seus derivados e encontraram algumas informações interessantes. Não em indivíduos atuais, mas nos ancestrais deles, placidamente repousando nas estepes.
A drª. Shevan Wilkin e a drª Jessica Hendy, a primeira do Departamento de Arqueologia e a segunda do Departamento de Arqueogenética do Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana, resolveram estudar sobre o consumo de leite por mongóis.
Tecnicamente, você se alimenta porque seu corpo permite isso. Pode comer um caminhãozão de comida. É irrelevante se suas células não estiverem aptas para absorver os nutrientes.
Por exemplo, o amigo é um polissacarídeo, mas seu corpo não o absorve por ser uma molécula muito grande. Por sorte, nossa saliva contém amilase, uma enzima que quebra o amido em glicose e maltose. Estes dois monossacarídeos conseguem entrar nas células. Já a celulose não, pois não temos nenhuma enzima que quebre a celulose em açúcares menores, diferente de herbívoros, que conseguem fazer isso por meio de microrganismos em seu sistema digestório. Se nós conseguíssemos digerir celulose, poderíamos comer capim.
Mesmo porque, eu conheço muitos profissionais ligados à Educação que se forem comer um matinho, não se levantam nunca mais do chão.
No caso da lactose, ela não consegue entrar na célula. A glicose sim, mas não de qualquer jeito. A frutose entra bonito, entra gostoso, entra que é uma delícia, porque seus receptores estão sempre abertos. A glicose, não. É preciso uma chave que abra a fechadura, e esta chave é a insulina. Sem insulina, a célula fica fechadinha, se fazendo de difícil, e a glicose dá com a fuça na porta, ficando no sangue e daí vamos para o que chamamos diabetes.
Já a lactose não tem nem como isso acontecer, pois não tem receptor, nem aberto nem fechado. A porta é estreita e a lactose não passa, por ser grandão, assim como o seu guarda-roupas não passa pela sua janela. Sendo assim, o guarda-roupa vem desmontado, passa pela janela e se aboleta no seu quarto.
No caso da lactose, é a mesma coisa. Ela precisa ser desmontada, e quem faz isso é lactase, quebrando a lactose em glicose e galactose.
A glicose vai entrar se você tiver insulina e depois que penetra em você (ui!), você fica feliz e alimentado, com energia para fazer as suas atividades celularísticas na paz de nossa senhora Bioquímica. Não, depois de desmontada, diferente do seu guarda-roupa, a lactose não será remontada. A célula quer é glicose, não o primo esquisitão xipófago.
Os intolerantes à lactose não produzem lactase, daí a lactose começa a se alojar no intestino e isso pode levar à morte. Atualmente, cerca de 50% da população é intolerante à lactose, e se for em comunidades indígenas, o percentual chega a 80%. Por isso que índios não mantém gado leiteiro.
Na Mongólia, laticínios representam até 50% das calorias consumidas durante o verão, ficando também a informação que a cultura de criar gado leiteiro e consumir laticínios se espalhou a partir do sudoeste da Ásia, mas ainda não se sabe direito como se deu isso. É esta a pesquisa de Wilkin e Hendy.
Segundo elas, as primeiras evidências para o consumo de laticínios no leste da Ásia datam de 3000 A.E.C., e responde muitas perguntas sobre como era o modo de vida lá, naquela época. E o interessante: não era uma dieta à base unicamente de leite de vaca, mas até leite de égua o pessoal consumia!
Wilkin & Hendy analisaram os dentes de corpos de indivíduos desde a Idade do Bronze ao período Mongol. Três quartos de todos os indivíduos continham evidências de que consumiram alimentos lácteos. Os resultados do estudo incluem as primeiras evidências diretas do consumo de laticínios no leste da Ásia, identificadas em um indivíduo do local de Afanasievo em Shatar Chuluu, que data de aproximadamente 3000 A.E.C. Não satisfeitas, bóra pro exame de DNA. Não, não descobriram se eram filhos do Mr. Catra, mas descobriram marcadores genéticos não locais consistentes com as populações das estepes ocidentais, indicando que houve migrações durante a Idade do Bronze para o oeste.
Por que analisaram os dentes? Porque seu dente adora cálcio, além de outras substâncias do leite, e eles iam se acumulando nos dentes, inclusive proteínas, que mesmo um tanto desnaturadas conseguiram determinar suas estruturas.
Ao sequenciar as proteínas do leite extraídas dos dentes, as pesquisadoras foram capazes de determinar quais espécies de animais estavam sendo usadas para a produção de laticínios. Hoje, os mongóis criam vacas, ovelhas, cabras, iaques, camelos (sim, camelos), cavalos e renas, independente da cor dos narizes delas. O que não se sabe é quando começou a domesticação desses animais.
O que se sabe é que há cerca de 5000 anos, pastores consumiram leite de espécies de ruminantes, como gado, ovelha e cabra. Alguns milhares de anos depois, em locais da Idade do Bronze datados de 1200 A.E.C, as pesquisadoras descobriram a primeira evidência de consumo de leite de cavalo, ocorrendo ao mesmo tempo em evidências precoces de cavalgadas e passeios a cavalo, bem como o uso de cavalos em rituais.
Mas espere, tem mais! O estudo mostra que durante o Império Mongol (entre 1200-1400 EC), as pessoas também consumiram o leite de camelos. Qual foi o primeiro animal a ser criado como gado leiteiro ainda não se sabe. Ou melhor, AINDA não se sabe. Mas só este festival de informações conseguidas já deu para escrever um artigo que foi publicado no periódico Nature Ecology & Evolution (não, nada de acesso aberto).