A educação segundo a visão de Rousseau e suas mazelas

Por Leonardo Veloso

O homem nasce bom, pacífico e manso e a sociedade e suas experiências o tornam mau ou ele possui inclinações naturais ao egoísmo, violência e perversidade?

A mente humana seria uma espécie de lousa em branco na qual o contexto histórico e cultural escreve livremente ou seja, ela seria apenas o resultado do meio em que o indivíduo vive? O homem é infinitamente perfectível, ou seja, pode se tornar qualquer coisa desde que receba a educação e as oportunidades adequadas?

Essas são questões as quais afligem os ocidentais desde que o homem se tornou o centro das preocupações filosóficas com Sócrates. E, apesar de tentarmos respondê-las há séculos, elas ainda não estão resolvidas – ao contrário do que pensam muitos de nossos sociólogos, psicólogos e, principalmente, pedagogos.

Hoje – não posso afirmar se por questões ideológicas, mas penso que sim – a pedagogia adota a visão presente na obra Emílio de Rousseau. Questões, entre outras, como a do professor mediador do conhecimento, o qual precisa estimular nos alunos o gosto pelo aprendizado, da crença na perfectibilidade quase infinita das crianças, da educação negativa como aquela que pode desconstruir o homem artificial fazendo-o reencontrar sua boa natureza estão presentes no pensamento de Rousseau a respeito de como devemos educar os jovens.

A questão é: Rousseau estava certo? Não sei se ainda temos a resposta para essa pergunta, mas sei que não podemos enxergar o pensamento do genebrino sobre a educação como se fosse a última palavra a esse respeito.

O suíço influenciou de maneira decisiva muitas escolas do pensamento contemporâneo como a marxista, a psicanalítica, a construtivista, etc e, por essa razão, suas ideias precisam passar por exame rigoroso, pois, se estiverem equivocadas, muito do que é aplicado em relação à criação e educação das crianças vai abaixo.

Penso que as discussões sobre a natureza humana foram balizadas ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX muito mais por questões ideológicas e políticas do que por qualquer outra coisa e, no início do século XXI, isso não parece ter mudado muito. Normalmente os direitistas defendendo que as pessoas não se tornam melhores por meio da educação e que, além disso, são egoístas, cruéis, violentas e degeneradas por natureza e os esquerdistas dizem que a perfectibilidade humana é quase infinita, que nossa mente é inteiramente maleável e que os homens são bons, pacíficos e mansos por natureza tornando-se perversos, invejosos e violentos por conta da sociedade, essa sim má. Temos também os mais moderados, os quais tentam uma dialética entre os dois diferentes pontos de vista. Qual das três visões é a correta? Pode ser que nunca saibamos, mas isso não significa que devamos aceitar uma delas sem discussão como ocorre com os pedagogos brasileiros.

O que ocorre no Brasil é simples: influenciados por Paulo Freire, que, por seu turno foi influenciado por Marx e esse por Rousseau, imaginamos que a sociedade, principalmente os meios de comunicação, cria uma consciência artificial no ser humano, subjugando e escondendo sua verdadeira natureza pacífica e piedosa. O homem, modificado pelas relações sociais influenciadas pelos meios de produção da vida material, encontraria-se impossibilitado de enxergar aquilo que existe de essencial em si mesmo, o que está por debaixo de todas as propriedades acidentais, ou seja, artificiais, as quais recobririam suas propriedades essenciais. Então qual seria a função primordial da educação? Ensinar conteúdos formais? Preparar o jovem para o trabalho, para o exercício do pensamento científico? Para um mundo que, não deveria, mas É profundamente competitivo? A resposta é NÃO. A função primeira da educação seria NEGATIVA, quer dizer, além do professor não poder tentar ensinar nada para o aluno, pois isso só pioraria o estado de degeneração em que ele se encontra, ele teria de ajudar a retirar da mente do aluno aquilo que a perversa sociedade colocou lá, “descolonizar as mentes”. Retirar toda o desejo artificial de competição e agressividade. O professor serviria para estimular o aluno e, caso este fracasse, a culpa é inteiramente do docente.

Ótimo, então a nossa educação está baseada nas ideias de Rousseau sobre o homem em estado de natureza, o qual entra em processo de degeneração moral quando se sociabiliza e desenvolve as ciências e as artes. Tudo bem, mas a pergunta que posso fazer é: de onde raios Rousseau tirou essa sua ideia de natureza humana? De onde ele tirou que o indivíduo é um ser que se preocupa apenas com a auto preservação e não deseja fazer mal a ninguém? De fatos observados? Da história? NÃO. Ele mesmo diz no começo do Discurso Sobre a Origem da Desigualdade que não está muito interessado em fatos observados ou históricos – talvez um pouco interessado no que OUVIA FALAR dos viajantes sobre os “selvagens” da América ou no comportamento dos outros animais, os quais, segundo ele, também só procuram a auto preservação, como se todos vivessem no Jardim do Éden. Está bem… então se não é em fatos observados, de onde esse homem tirou essa história de homem bom? Da observação da PRÓPRIA consciência. Ele achava que para se descobrir a verdadeira natureza humana os indivíduos precisavam passar por um processo de autoconhecimento e reflexão, porque cada um de nós traria uma espécie de arquétipo do homem natural. Ou seja, temos de olhar para dentro de nós mesmos para conhecermos aquilo de bom que subjaz toda a violência e egoísmo que a sociedade colocou em nós.

Tá, então se ele descobriu esse tal de homem em natureza olhando para si mesmo, o que seria isso afinal? O homem em natureza de Rousseau nada mais seria do que um construto teórico sem referência no mundo, como a ideia física de um movimento em uma superfície ideal, sem fricção. É algo que provavelmente não existe na realidade. Humm… então ele adotou o método dos físicos, mas a superfície ideal pode ser usada para fazermos previsões e, se não se realizarem, pode ser descartada. E o homem natural? O homem natural não. Não há como refutar essa ideia mesmo com os fatos, porque Rousseau foi bem claro quando disse que os fatos não interessavam. Então é isso: toda a nossa pedagogia está baseada numa hipótese que Rousseau construiu olhando para dentro de si mesmo e a qual não pode ser refutada. E digo mais, Jean-Jacques, com seu “Adão” com a pacificidade original, tentou se opor à Igreja com sua concepção de pecado original. Para os cristãos, Jeová fez o mundo e o homem bons, mas, pela desobediência do vovô Adão, todos os seus descendentes estavam amaldiçoados pelo pecado. Rousseau, para se contrapor a essa ideia resolveu pular a parte da maçã e disse que, por termos sido criados por Deus, então somos naturalmente bons. E mais. O homem em natureza era só instinto, era só sentidos, não possuía a razão abstrata. Essa veio a partir do momento em que os ambientes começaram a desafiar nossa sobrevivência1.

Ao respondermos os desafios dos mesmos por meio da criação de laços sociais de ajuda mútua, nos desnaturalizamos e criamos diversas necessidades artificiais nascidas do progresso da razão, a qual permitiu que desenvolvêssemos a imaginação e a ideia de falta. O homem natural não tinha faltas, as quais precisam ser imaginadas pela concepção do que não está ali, mas poderia estar, ele tinha necessidades naturais, que eram facilmente saciadas, pois havia um equilíbrio entre o que o homem precisava para sobreviver e o que o ambiente oferecia.

Um ser que era solitário então se socializou, e essa socialização modificou os sentimentos naturais de piedade (compaixão, altruísmo) e amor de si (preocupação com a própria conservação sem prejudicar os outros). No lugar, surgiu um homem artificial que busca status social a qualquer custo, que inveja e julga o próximo, que é violento, que está em constante estado de guerra, que estupra, que mata sem piedade, que não tem compaixão.

Com isso, a função do educador passou a ser a de tentar levar o homem a esse estado de natureza novamente e é isso que o tutor ideal de Rousseau faz com o garoto Emílio. Esse tutor, assim como o professor mediador, construtivista, precisa apenas colocar problemas para o garoto resolver, sem tentar ensinar nada a ele. Ele coloca os problemas, os quais desafiam o menino que se encontra em determinado estágio de desenvolvimento, e deixa a natureza fazer o resto. Ele não ensina nada, só media o conhecimento, só coloca determinados obstáculos para que o garoto os supere. Nesse processo, não pode haver julgamentos, pois isso prejudicaria o desenvolvimento da criança em sua volta à pureza original. Essa ideia muito se assemelha as tais avaliações formativas da pedagogia construtivista, as quais não permitem que os alunos sejam comparados uns com os outros, porque isso poderia criar adultos infelizes e traumatizados.

Uma outra característica da educação de Rousseau é a ideia de perfectibilidade (a qual teria ajudado o homem a desenvolver a razão e sair do estado de natureza). O homem não apenas tem livre arbítrio, ele não apenas pode escolher o que quer entre múltiplas opções. O homem, segundo essa concepção, pode também escolher se tornar O QUE BEM ENTENDER. A tal existência antes da essência dos existencialistas tem suas raízes aí. Qualquer homem pode ser qualquer coisa. Se você tivesse criado e educado seu filho da mesma maneira que Einstein foi criado e educado e se ele tivesse passado pelas mesmas experiências do físico, hoje seu filho seria um Einstein. Quanta frustração essa ideia deve ter gerado em pais cujos filhos não se tornaram grandes gênios…

Quer dizer, como diz o tal Perrenoud, um dos ídolos da pedagogia brasileira, o que diferencia uma criança da outra são apenas suas condições sócio econômicas e as experiências pelas quais passaram. Não haveria diferenças cognitivas entre os jovens, todos teriam as mesmas capacidades de aprendizado bastando para isso serem devidamente estimulados (e falar o contrário gera um desconforto e um medo naqueles que confundem igualdade econômica, política e jurídica com igualdade cognitiva).

Psicólogos cognitivos como Judith Harris afirmam que a forma como se trata as crianças NÃO determina o tipo de adultos que serão. Ela, enfrentando todo um status quo acadêmico e de senso comum baseado na tábula rasa, diz que a criação dada pelos adultos tem pouca influência no que os filhos serão. E outros, como E. O Wilson, defendem que o homem se parece muito mais com o homem natural de Hobbes do que com o de Rousseau.

Bom, penso, como já dito anteriormente, que as questões postas no início do artigo são questões em aberto. Todavia, a pedagogia brasileira ainda se baseia na ideia equivocada de que esses problemas já foram resolvidos e de que haveria uma maneira infalível para se criar e educar as crianças. E, pelos níveis educacionais brasileiros, o método pedagógico aplicado nas escolas não vem dando certo. Mas o problema é que vivemos na sociedade moderna, estruturada para dividir as pessoas entre aquelas que pensam e aquelas que executam. Se aquilo que foi pensado pelos teóricos não dá certo na prática, a culpa não é de quem pensou e tampouco da teoria, é culpa daquele que executou, pois não o fez de maneira correta. Ou seja, em vez de mudar a teoria para se ajustar à realidade, é melhor tentar forçar a realidade para que entre no modelo proposto, mas é claro que isso não dá certo. O engraçado nisso tudo é que os teóricos da pedagogia como Perrenoud, Hoffmann, Gonçalves, etc adoram dizer que o professor não é o dono da verdade (como se fosse possível alguém ser dono da verdade ou ter sua própria verdade), mas eles sim se imaginam os donos da mesma com seus métodos infalíveis baseados em premissas – bom selvagem, perfectibilidade infinita, tábula rasa – que ainda não se provaram verdadeiras.

Penso que todos educadores deveriam ler “Emílio” de Rousseau, que foi, sem sombras de dúvida, um dos maiores pensadores políticos da história. Mas, ao mesmo tempo, recomendo a leitura de “O Senhor das Moscas” de William Golding como contraposição ao pensador de Genebra.

E se em vez de culpar o aluno, os pais, a família, começássemos a culpar a teoria educacional em voga no país? É claro que viver numa nação tão desigual do ponto de vista econômico, na qual os jovens de baixa renda quase não têm perspectiva de vida alguma (a ponto de alguns chegarem a dizer que “para que eu vou estudar e trabalhar? Minha mãe trabalha como louca e mal paga as contas. Prefiro meter o louco que eu ganho muito mais grana!”) e onde um professor tem de lidar com 45 alunos em sala de aula, a qual mais parece uma cela de prisão que deixa a molecada doida, apesar da desvalorização e dos baixos salários contribui de maneira decisiva para o fracasso escolar. Mas que tal, mesmo com os problemas sociais e econômicos de nosso país, repensarmos o método pedagógico aplicado no Brasil?

Ah sim! Só por curiosidade. Eu sei que isso que escreverei é uma falácia de apelo à hipocrisia (tu quoque), mas saibam que Rousseau, o nosso guia pedagógico, abandonou TODOS os filhos num orfanato, os quais morreram antes de atingir a vida adulta. Mas isso é só uma curiosidade tola.


Bibliografia

  1. HARRIS, Judith. Não Há Dois Iguais. Rio de janeiro:Globo, 2007.
  2. ROUSSEAU, J-J. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens
  3. (Col. Os Pensadores, 2. ed.). São Paulo: Abril Cultural, 1978.
  4. ______________Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
  5. WILSON, E. O. A Conquista Social da Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2013

1 Lembra Piaget com sua ideia de que crianças só passam a ter pensamento abstrato a partir de uma determinada idade. Todavia, por mais que nossos amigos pedagogos gostem das hipóteses piagetianas, ela já foi devidamente refutada por diversos estudos. Para saber mais, ler o capítulo 4 da obra “Supersentido” de Bruce M. Hood “Bebês Barulhentos e Atordoantes”.

10 comentários em “A educação segundo a visão de Rousseau e suas mazelas

  1. A verdade acredito que deva estar na visão moderada,ou seja,natureza + ambiente geram o ser final.Aliás essa visão pedagógica vigente claramente influencia a nossa base legal,por exemplo o polêmico E.C.A que protege os delinqüentes juvenis apostando em sua natureza supostamente boa e possível recuperação com medidas socioeducativas.

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  2. Confesso que ainda não li (ainda) nenhuma das obras citadas, no máximo resumo de resumos.

    Mas pelo que você escreveu, existe um certo contrassenso ao que Rousseau defendia e ao que muitos (inclusive a Wikipédia) referência como Influência (uma das) dele: Maquiavel

    Se Maquiavel teve tanta influencia na ciencias política, “praticamente demonstrando” que esse individuo “bom por natureza” nada mais seria um “massa de trabalho” para o estado (ele não disse exatamente isso é claro, mas certamente não acreditava nessa bondade interior) então Rousseau estaria fazendo um “destrabalho” ao adicionar apenas problemas aos alunos sem “ensinar” como resolve-los, assim então (penso eu), no mundo “real” quando a coisa apertar ele teria que recorrer nada mais nada menos que ao mesmo estado que apresentou o problema para ajuda-lo, criando uma dependência que ajudaria a todos menos o tal “pupilo”.

    Se minha interpretação foi correta, isso explica bem nosso Brasil. Ensinamos cordeiros a serem mais mansos e lobos a serem mais ferozes.

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  3. Apesar disso, Rousseau também falou coisas interessantes:

    Entre aqueles que nascem ou tornam-se ricos há um tal apetite de dominação que eles sempre acabam por contornar as leis, corromper as autoridades públicas e reduzir seus concidadãos à escravidão. O crescimento de fortunas e os progressos da desigualdade, que são sua consequência, conduzem inevitavelmente à exploração do pobre pelo rico, à submissão do fraco ao forte. A propriedade privada pode tornar-se uma ameaça à liberdade quando não mantida em limites estreitos – Rousseau.

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  4. E também havia sua preocupação com que a mente das crianças, antes de ser preenchida com conteúdos, fosse treinada com a finalidade de aprender a buscar o conhecimento. Infelizmente, o treino para o pensamento científico não existe na nossa pedagogia.

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  5. Pqp. Todo pegagogo, deveria ler O Gene Egoísta e, tentar entender um pouco do porque o homen não é ‘bom’ e nunca foi. E, essa parte foi de doer os olhos: “No
    lugar, surgiu um homem
    artificial que busca status
    social a qualquer custo,
    que inveja e julga o
    próximo, que é violento,
    que está em constante
    estado de guerra, que
    estupra, que mata sem
    piedade, que não tem
    compaixão.” Desde quando o homen é homen, isso tudo ocorre. Outro absurdo, o Rousseau começa sua teoria, se baseando que somos naturalmente bons, aí você, como curioso leitor, pergunta, por quê? Resposta: Porque Deus nos criou assim. Poker Face.

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  6. Pô André, fui obrigado a ter aulas com a pedagoga/psicologa da minha escola onde ela iria me “ensinar” a estudar.Ela sugeriu que eu escrevesse um resumo de alguma matéria e gravasse a leitura do mesmo com alguma música clássica de fundo.Depois, segundo ela, era só eu deixar a gravação rolando enquanto eu jogo vídeo game, assisto tv, lavo a louça, etc…que meu cérebro vai lembrar de todo o resumo porque ele vai assimilar a música ao texto que está sendo ditado.Me diz aí o que você acha dessa técnica André, será que eu já consigo minha vaga de medicina na USP?

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