Quando Roma enfrentou um inimigo monstruoso

Ninguém nega que o Império Romano foi uma formidável máquina de guerra. Seu exército era imbatível, invencível, indestrutível (calem-se, germânicos!). Graças a esse fabuloso exército, Roma era conhecida e temida. A bravura de seus legionários era de conhecimento de todos, mas alguns ainda ousaram desafiá-los. Entre eles, um monstro inenarrável.

Tudo bem, não era um monstro tão monstruoso assim, já que orcas (sim, a baleia assassina que não é uma baleia e nem é assassina) já eram conhecidas desde a Antiguidade. Mas o evento que eu irei contar ocorreu durante o reinado de Cláudio I, o imperador gago e manco que fui alçado à púrpura imperial pela Guarda Pretoriana em 41 da E.C.

Cláudio, cujo nome completo era Tiberius Claudius Caesar Augustus Germanicus, foi o quarto imperador romano, tendo governado até o ano 54 E.C. Apesar de vários defeitos físicos, Cláudio era muito inteligente e um bom administrador, além de ter vindo de uma carreira militar bem-sucedida. Foi durante o seu reinado que o Império Romano expandiu seus territórios para incluir a Grã-Bretanha como uma província, e se Cláudio tivesse vivido mais teria conquistado até a Oceania.

O evento que irei contar foi narrado por alguns historiadores, mas basicamente fizeram cópia/cola do que Plínio, o Velho, escreveu em seu “História Natural”. Uma coisa digna de nota é que Plínio, ye Olde, além de naturalista e filósofo natural, foi comandante naval e do exército do início do Império Romano.

Conta Plínio que durante a reconstrução do porto por Cláudio, uma orca foi atraída por um naufrágio local e começou a se alimentar no porto. O problema é que o golfinho malvadão (sim, orcas são golfinhos e não baleias) ficou preso na areia, Cláudio ordenou que os navios atacassem matassem com lanças para entreter o povo.

Abaixo a transcrição do livro IX (A História Natural dos Peixes) do nosso amigo Plínio, el Viejo. E sim, eu sei que baleias não são peixes. O próprio Plínio também sabia, tanto que ele usa o termo “balæna” para designar estes animais.

A balæna penetra até em nossos mares. Diz-se que elas não devem ser vistas no oceano de Gades antes do solstício de inverno, e que em épocas periódicas elas se retiram e se escondem em alguma baía calma e espaçosa, onde se deleitam em dar à luz. Este fato, no entanto, é conhecido pela orca, um animal que é peculiarmente hostil à balæna, e cuja forma não pode ser descrita de forma adequada, mas como uma enorme massa de carne armada com dentes.

Este animal ataca as balænæ em seus locais de retiro, e com seus dentes rasga seus filhotes, ou então ataca as fêmeas que acabaram de dar à luz, e, na verdade, enquanto elas ainda estão grávidas: e quando avançam sobre elas, ele as perfura apenas como se tivessem sido atacados pelo bico de uma galera Liburniana. As fêmeas balænæ, desprovidas de toda flexibilidade, sem energia para se defenderem, e sobrecarregadas pelo próprio peso, debilitadas também pela gestação, ou então pelas dores do parto recente, sabem bem que seu único recurso é levar para voar em mar aberto e percorrer toda a face do oceano; enquanto as orcas, por outro lado, fazem tudo ao seu alcance para enfrentá-los em sua fuga, se jogam em seu caminho e os matam, ou presos em uma passagem estreita, ou então os empurram para um banco de areia, ou os arremessam para pedaços contra as rochas.

Quando estas batalhas são testemunhadas, parece que o mar está enfurecido contra si mesmo; nem um sopro de vento pode ser sentido na baía, e ainda assim as ondas, por sua respiração ofegante e seus golpes repetidos, são levantadas de uma forma que nenhum redemoinho poderia efetuar.

Uma orca foi vista até no porto de Ostia, onde foi atacada pelo imperador Cláudio. Foi enquanto ali construía o porto que esta orca apareceu, atraída por algumas peles que, tendo sido trazidas da Gália, ali caíram ao mar. Alimentando-se deles durante vários dias, ele se empanturrou bastante, tendo feito para si um canal nas águas rasas. Aqui, porém, a areia foi levantada pela ação do vento a tal ponto que a criatura achou impossível virar-se; e enquanto perseguia sua presa, era impelido pelas ondas em direção à costa, de modo que suas costas passaram a ser percebidas acima do nível da água, lembrando muito na aparência a quilha de uma embarcação virada de fundo para cima.

Diante disso, César ordenou que um grande número de redes fosse estendido na foz do porto, de costa a costa, enquanto ele próprio ia para lá com as coortes pretorianas, e assim proporcionava um espetáculo ao povo romano; pois os barcos atacaram o monstro, enquanto os soldados a bordo lançaram lanças sobre ele. Eu mesmo vi um dos barcos afundado pela água que o animal, ao respirar, derramava sobre ele.

Mas o quanto disso é verdade? Será que Plínio, le Vieux, não deu uma de Heródoto e inventou tudo isso? Tá, ok. Plínio, o Véi, também escreveu umas bobagens como monópodes e cinocéfalos. Tá, beleza, pode ser invenção, mas examinemos certos fatos primeiro.

O então Porto de Ostia fica no que é a moderna cidade de Óstia, sendo que este porto hoje é um sítio arqueológico chamado Ostia Antica, e é considerado um dos mais bem preservados parques arqueológicos da Itália.

Era lá que todas as embarcações com mercadorias do Mediterrâneo chegavam para abastecer Roma e suas necessidades comerciais, desde especiarias até mármores, bem como materiais de construção, comida, tecidos, ouro etc.

É um porto que dá para, claro, o Mar Mediterrâneo. Mas tem orcas no Mar Mediterrâneo? Alguns acharam que era invenção, mas sim, tinha! Em uma pesquisa publicada na Proceedings of the Ropyal Society B, pesquisadores analisaram dados de distribuição da baleia-cinzenta do Atlântico e sugerem que, há 2000 anos, baleias-francas e cinzentas eram comuns quando comparadas com outras espécies de baleias.

Não, não foi percebido nenhuma orca propriamente dita, mas o relato de Plínio, der Alter, estava certo em sua maior parte pelo que se sabe hoje.

A propósito, a cena descrita da Batalha do Porto de Óstia foi representada por Jan Van der Straet (1523 – 1605), também conhecido como Joannes Stradanus, um artista flamenco que passou a maior parte de sua carreira na Itália. Ele produziu uma série de gravuras intitulada “Venationes, ferrarum, arium, piscium, pugnae”, que não só incluiu a batalha com a orca como várias outras cenas de caça com uma grande variedade de animais. Sim, exatamente este que abre o artigo.

2 comentários em “Quando Roma enfrentou um inimigo monstruoso

Deixe um comentário, mas lembre-se que ele precisa ser aprovado para aparecer.