
O empertigado homem caminha pelos corredores. Sua arrogância prussiana o precedia, seus passos são decididos, todos ali o respeitam… e o temem; não tanto por quem ele é, mas por causa de quem ele é íntimo, de quem era seu paciente. De quem um país inteiro temia, ainda mais por causa da sua neurastenia e distúrbios psicológicos. O homem empertigado tinha sido escolhido a dedo, apesar de métodos pouco ortodoxos, apelando para algo chamado “tratamentos alternativos”, sendo um profissional pouco qualificado e de reputação duvidosa. Mas não importa. O homem que ali caminha é médico de Adolf Hitler.
Theodor Gilbert Morell nasceu em Trais-Münzenberg, em 22 de julho de 1886, sendo o segundo filho de um professor. Após a escola, ele estudou e, posteriormente, trabalhou por um ano como professor. Morell filho então estudou Medicina em Heidelberg e trabalhou brevemente em Grenoble e Paris antes de iniciar o treinamento em obstetrícia e ginecologia em Munique.
Em 1913, Morell foi licenciado como médico e trabalhou como médico para companhias de cruzeiros alemãs antes de comprar um consultório em Dietzenbach, perto de Offenbach. Durante a Primeira Guerra Mundial, ele serviu no front e, posteriormente, como oficial médico da prisão em Ohrduf. Em janeiro de 1919, mudou-se para Berlim, onde, um ano depois, casou-se com a rica atriz Johanna Moller.
Morell começou a estabelecer uma prática elegante e não convencional, onde atraiu com sucesso muitos famosões e gente importante de Berlim. Em 1932, ele ganhava o equivalente a aproximadamente 300.000 euros por ano em dinheiro de hoje. Em abril de 1933, Morell se filiou ao partido nazista – principalmente porque havia sido confundido com um judeu, e isso não era bom para os negócios. A rigor, naquele regime, ser confundido com um judeu era péssimo em todos os sentidos!
Em 1935, ele mudou seu escritório para a prestigiada Kurfürstendamm, em Berlim. Sua placa de identificação o classificava como especialista em doenças sexualmente transmissíveis. Na primavera de 1936, Morell curou o fotógrafo de Hitler Heinrich Hoffman da gonorreia. A secretária e modelo do fotógrafo era uma tal de Eva Braun, acho que você já ouviu falar dela.
Em 1936, Hitler sofria de eczema crônico, espasmos abdominais recorrentes, exaustão e períodos de depressão. Hoffman recomendou o doutor Morell e marcou um encontro pessoal entre os dois. Morell, então, visitou Hitler em Berchtesgaden. O tratamento de Morell foi bem-sucedido e Hitler o convidou para se tornar seu médico pessoal em tempo integral. Morell aceitou contra a vontade de sua esposa, mas dá para compreender um pouco por que Morell não podia recusar: não fazia bem para a saúde contrariar o Manda-Chuva supremo da Alemanha Nazista.
A partir de então, Morell esteve quase constantemente ao lado de Hitler. Mais tarde, ele se gabou de que ninguém, nem mesmo Eva Braun, havia passado mais tempo com o Führer. A promoção teve vantagens consideráveis para Morell, principalmente financeiramente. Ele manteve sua prática em Berlim, que delegou a assistentes.
Morell recebia um salário substancial, equivalente a cinco vezes o de um professor universitário, e recebia uma grande quantia fixa isenta de impostos de Hitler por comprar uma vila em Berlim que acabara de ser confiscada de um banqueiro judeu. Além disso, Hitler arranjou uma cátedra honorária para Morell, que foi capaz de usar suas boas conexões para se tornar proprietário ou sócio de várias empresas farmacêuticas. Sua riqueza total acabaria sendo estimada em seis milhões de Reichsmarks.
Diz-se que o obeso e insalubre Morell era altamente impopular entre a comitiva do Führer, especialmente entre os outros médicos da sede de Hitler. Ele era considerado desleixado e anti-higiênico e dizia-se que tinha um odor corporal pungente do qual a própria Eva Braun uma vez se queixou; ao que Hitler teria respondido: “Eu não o emprego por sua fragrância, mas para cuidar da minha saúde”.
As tentativas de expulsar Morell feitas por outros médicos que estavam preocupados com o impacto deletério de seus tratamentos bizarros sobre Hitler fracassaram por causa da fé quase cega que o ditador havia desenvolvido em seu médico pessoal. Hermann Göring chamou Morell Der Reichsspritzenmeister, (“Reich Master das Injeções”), e variações sobre esse tema, implicando que Morell recorreu ao uso de injeções de drogas quando confrontado com problemas médicos, e as usou em excesso.
Os tratamentos pouco ortodoxos – hoje diríamos alternativos – que Morell deu a Hitler incluíam:
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Argentium nitricum (nitrato de prata);
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Franzbrandwein (em alemão soa “uau”, mas é apenas álcool 70);
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Enema de chá de camomila;
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Probióticos;
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Vários extratos de beladona (que é venenosa);
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Nux vomica (ou fava-de-santo-inácio, extremamente venenosa por ter estricnina);
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Um composto naturopático de extrato biliar, angélica, babosa, papaverina, cafeína, e pancreatina;
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Um composto injetável de enzimas, aminoácidos e vitaminas B1, B2 e C, além de extratos de músculo cardíaco, suprarrenal, fígado e pâncreas;
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Uma mistura de estrofantina, glicose, vitamina B e ácido nicotínico;
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Estrofanthus gratus homeopático (ou estrofantina, uma planta que em algumas concentrações é altamente venenosa);
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Preparação feita a partir de glândulas animais, fígados e outros órgãos;
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Vitaminas A, D e B12 e
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Um extrato enzimático de Aspergillus oryzae.
Além disso, Morell administrou uma lista impressionante e crescente de drogas convencionais poderosas, incluindo opioides, anfetaminas, hormônios, sedativos e esteroides. Acredita-se que, em determinado momento, Hitler consumiu mais de oitenta drogas diferentes. Consequentemente, Hitler tornou-se cada vez mais dependente de drogas, e sua saúde se deteriorou acentuadamente. Além disso, vários de seus problemas de saúde na época podem ter sido causados por efeitos adversos ou interações entre vários medicamentos.
De particular interesse é o uso liberal de Morell de uma droga chamada Eukodal, também conhecida como oxicodona, que foi desenvolvida em 1916 por cientistas da Universidade de Frankfurt. A oxicodona é um opioide forte, semissintético e altamente viciante. Hoje, é vendido sob diversas marcas, como Roxicodone e OxyContin. Sua principal indicação é dor moderada a intensa. A oxicodona tornou-se o foco do escândalo dos opioides nos EUA. Em 2007, a Purdue Pharma foi multada em 5.634,5 milhões de dólares por não rotular adequadamente na embalagem do OxyContin que a oxicodona tem um alto potencial de dependência.
Pela sua participação na difusão do medicamento, a consultora McKinsey concordou em pagar 5,573 milhões. Em 2011, a oxicodona foi a principal causa de mortes relacionadas com drogas nos Estados Unidos. Em 2020, a oxicodona foi o quinquagésimo quarto medicamento mais prescrito nos Estados Unidos (mais de meio milhão de prescrições).
Morell usou-o em doses cada vez mais elevadas (até quatro vezes a dose recomendada administrada por via intravenosa) e até combinou-o com cocaína quando Eukodal perdeu o seu poder. Essa mistura é conhecida por causar várias das condições que afetaram Hitler em seus últimos meses, incluindo doença cardíaca coronária, constipação, ansiedade, irritabilidade, perda de memória, psicose e depressão.
Após a tentativa de assassinato de 20 de julho de 1944, Hitler degenerou em um naufrágio físico e mental. Ele dependia dos estimulantes de Morell para funcionar durante o dia e de seus sedativos para dormir à noite. Ele havia sido diagnosticado como portador de doença coronariana e havia sofrido vários eventos cardíacos menores. Os tratamentos de Morell foram sintomáticos na melhor das hipóteses e prejudiciais na pior.
Pouco antes de seu suicídio, Hitler se desentendeu com Morell e até ameaçou matá-lo. Hitler, então, ordenou que Morell deixasse o bunker, e Morell conseguiu fugir para fora de Berlim, mas foi descoberto na Baviera por um jornalista do New York Times e, posteriormente, preso por tropas americanas.
Durante dois anos, foi interrogado por crimes de guerra e (segundo Morell) torturado. Não querendo fornecer informações relevantes, acabou sendo liberado. Enquanto isso, sua saúde havia se deteriorado significativamente; ele sofria de distúrbios da fala afásica e foi levado para o hospital distrital de Tegernsee, ao sul de Munique, onde permaneceu até sua morte em 26 de maio de 1948.
A maioria dos biógrafos de Hitler parece pensar que a influência de Morell sobre Hitler e o Terceiro Reich foi insignificante. No entanto, uma revisão dos tratamentos de Morell sugere uma conclusão diferente. A incompetência médica de Morell transformou Hitler em um viciado em drogas e, posteriormente, em um naufrágio físico e mental. Curiosamente, isso ajudou e muito na queda da Alemanha Nazista.
Parece, portanto, difícil imaginar que Morell não tenha tido um grande impacto na história do Terceiro Reich. A saber, ele não teve nenhuma participação, por menor que seja, no Holocausto. Ele sequer era simpatizante do Nazismo. Alguns podem atribuir que suas ações eram propositadas para destruir Hitler por dentro, mas é um debate que morre na praia por não ir a lugar nenhum. Não se sabe de nada a respeito.
Morell saiu ileso de tudo. Nunca conseguiram associá-lo a nenhum dos crimes que os nazistas cometeram. Ele era apenas um charlatão com tratamentos para lá de estranhos. Seu fim foi causado pela sua extrema obesidade, causadora de diversos problemas de saúde.
Theodor Morell, médico de Hitler – e ainda que indiretamente, responsável por encurtar a vida do Führer como encurtara a própria vida – morreu em um hospital de Tegernsee em 26 de maio de 1948.

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