Sapatos correndo apressados ecoam seu som em desespero pelo límpido piso da catedral. As figuras dos vitrais observam impassíveis o terror do homem, em que um fio de suor gélido escorre pelas suas costas. O próprio Demônio parecia estar atrás dele, e talvez realmente estivesse. O bufar da respiração exalava ar úmido que condensava na atmosfera fria. Os olhos arregalados de puro terror. Acontecera de novo. Satã operara sua perversidade mais uma vez na Casa de Deus, uma ação ultrajante! Jesus, Nosso Senhor, a tudo observava do seu Calvário, olhando com reprovação.
É preciso sair dali; sair e encontrar alguém superior, alguém mais sábio. Mais investido do Poder de Deus. O medo impedia o homem ficar ali mais um minuto. O tubo rachara e aquilo era a ação maligna da crueldade lancinante de Lúcifer. O que poderia explicar isso?
Era muito recorrente, nos meses frios, tubos de órgãos (o instrumento musical, seu mente suja) racharem e esfarelarem. Como tudo de ruim que acontecia na idade Média, era obra de Satanás, que ao invés de promover guerras e destruição de todos os lugares sagrados, estava ocupado em dar susto em organistas. Na verdade, não tem a ver com Satã, mas com a alotropia do estanho.
O estanho é um metal obtido do minério chamado “cassiterita”. Este minério tem este nome porque era abundante numa região então conhecida como Kassiterós, que hoje chamamos Grã Bretanha. O estanho possui uma importância milenar na História da Humanidade, já que sua liga com cobre foi de tamanho valor que deu nome a um período: Era do Bronze.
O ponto de fusão do estanho é 231,9 ºC, o que o faz mais fácil de trabalhar que o ferro, que possui ponto de fusão de 1.538 ºC. por isso, muitos utensílios são feitos com estanho, desde tubos de órgãos de catedrais, passando por taças e até mesmo botões de roupa. Ainda hoje, muitos desses utensílios são feitos mediante técnicas antigas, como a taça abaixo, cuja foto me foi mandada pelo Contini.
Somente o penitente passará!
O estanho só tem um problema e isso tem a ver com as suas variações alotrópicas. Alotropia é o fenômeno em que um elemento pode se apresentar de diferentes maneiras. Isso tem a ver com muitos fatores, entre eles a organização atômica do elemento, em que sua rede cristalina possui formas geométricas diferentes, por assim dizer. Isso dá características próprias para cada validade.
Por exemplo, o carbono pode se apresentar sob a forma de grafite e diamante. A diferença entre eles você conhece só de olhar.
Com o estanho, acontece a mesma coisa. Se o resfriarmos abaixo de 13,2 ºC, ele passa da variedade “estanho branco”, sólido metálico duro, firme e resistente, e passa para a variedade “estanho cinza”, opaco e quebradiço.
Chamamos isso de “doença do estanho” ou “peste do estanho”, e era isso o que acontecia com os tubos dos órgãos nas frias catedrais. Os tubos passavam para o estado alotrópico “cinza” e ficavam quebradiços, como o exemplar de estanho abaixo.
Isso ajudou a mudar o curso da história. O caso mais famoso é o que ficou conhecido como “botões de Napoleão”. Os botões das roupas eram feitos de estanho. Durante as Guerras Napoleônicas, o exército francês marchou em direção à Rússia, em pleno inverno, que não é preciso dizer ser bem rigoroso. Os botões quebravam e se desfaziam, fazendo com que os soldados ficassem impossibilitados de fechar suas túnicas e casacos, muitos deles morrendo de frio. Isso fez com que Napoleão perdesse pro General Frio.
Só espero que o Contini não beba nada muito gelado na sua taça de estanho.
Alguns links legais sobre ” organ pipes”:
Sobre como os tubos são feitos:
Processos de fabricação dos instrumentos:
Sobre o “Wanamaker Organ”:
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Isso também ocorre em placas de circuito impresso (geralmente as fabricadas a mais de 40 anos). A solda usada nessa época geralmente era composta de estanho e chumbo, em proporção 60% estanho e 40% chumbo. Apesar de o chumbo ajudar a inibir essa mudança de fase do estanho, as vezes acontece de os pontos de solda numa pcb começarem a literalmente “criar cabelo”. Lá nos primórdios da minha carreira como consertador, cheguei a ver algumas placas de Atari 2600 que pararam de funcionar porque alguns pontos de solda “criaram cabelo” e começaram a fechar curto com os pontos adjacentes. E, de fato, isso costumava acontecer mais frequentemente em épocas de frio.
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