Olá amiguinhos(as)!
A gente já viu muito sobre a fala e sua complexidade, mas ainda há muitas dúvidas sobre isso. E outro dia me deixaram encasquetada no twitter falando sobre sotaques. Então… Você sabe o que é sotaque?
Eu já disse que a primeira coisa que a gente aprende quando aprende a falar é a variante diatópica de lugar onde aprendemos a falar, ou seja, o dialeto. Isso inclui aprender as palavras e construções típicas dessa região, além da fonologia específica (por exemplo, se vai usar o "chiado" [o termo técnico é africada, em oposição às oclusivas, sem "chiado"] ao falar |tia|dia|). Mas o que mais faz diferença mesmo entre os dialetos e que mais "marca" a fala das pessoas é o sotaque.
A gente costuma descrever isso "senso-comumente" como um jeito "cantado" ou "arrastado" de falar, ou dizer que "come as letras" ou que "fala tudo direitinho". Em termos técnicos, a gente fala em prosódia. Não é fácil definir prosódia (vocês estão vendo que não é fácil definir quase nada em linguística hehehe). Mas podemos dizer que ela tem a ver com algumas características da fala que interferem no discurso: variações melódicas (=nota musical), volume, pausa, acento, tom, intensidade, velocidade, ritmo. A gente se baseia MUITO na prosódia para interpretar a fala.
Por exemplo, em português (não sei como é em outras línguas), a gente identifica perguntas e afirmações através do contorno melódico. Na prática, a gente sabe que é uma afirmação quando a parte final da sentença vai diminuindo o tom, enquanto que em uma interrogativa o tom sobe. Experimente dizer aí:
(1) Oi, tudo bem?
(2) Oi, tudo bem.
(3) Oi, tudo bem!
Perceba que na primeira você vai levantar o tom, na segunda você vai abaixar e na terceira você provavelmente vai esticar o final da frase sem levantar nem abaixar o tom.
E essas são apenas algumas maneiras de se dizer "oi, tudo bem", você deve conseguir improvisar umas 20 bem diferentes.
Essa é apenas uma característica da prosódia. Há ainda muitas outras. Você já deve conhecer o famoso "a sábia sabia que o sabiá sabia assobiar". É um exemplo bonitinho do acento, uma característica suprassegmental do português (suprassegmental porque a gente não consegue dividir em partes analisáveis). Há línguas que marcam seu ritmo de fala por picos de altura (e muitas vezes de alongamento). Essas línguas são chamadas de acentuais. Normalmente você vai ver nelas sílabas intercaladas do tipo forte-fraco e variações disso. Mas há outros jeitos de marcar isso – línguas bantu, coreano, chinês e muitas outras possuem um padrão rítmico tonal. Isso significa que essas línguas não fazem padrões de sílabas fortes e fracas, mas marcam diferenças de pitch ou altura melódica.
(Um dia eu estava muito à toa, sem namorado pra discutir relação, sem filho pra xingar, e resolvi ir no google translate testar os tons do chinês. Eu fiquei falando "ma" de todas as maneiras que consegui pensar: subindo, descendendo, sobe-desce, desce-sobe, enfim, e mandava ele traduzir do chinês pro inglês. Cada hora sai um resultado diferente. Tente você também! É divertido.)
Basicamente, o que nós chamamos de "sotaque" são as diferenças prosódicas entre as línguas e dialetos. Línguas com padrão silábico forte tendem a manter as sílabas e perder acento (português europeu, por exemplo). Línguas mais acentuais perdem sílaba mas mantém o acento (dialeto mineiro, que sai "comendo tudo com angu", como se vê nas brincadeirinhas divertidas).
(Desafio relâmpago! Traduza a seguinte frase do mineirês para a forma escrita padrão do português:
Ce’ssasse’ssôns’passassa’vas?
os apóstrofos indicam que a próxima sílaba é acentuada)
Cada dialeto vai ter sua prosódia diferente, e cada língua também.
Ah sim, fatores lexicais, sintáticos, morfológicos e fonológicos também entram na conta do "sotaque". Por exemplo, costumamos reconhecer dialetos pela presença ou ausência do "chiado" do |tia|dia|, pelo "chiado" de |s|z| em final de sílaba e final de palavra (o termo técnico é coda), pelo uso de palavras regionais como macaxeira, aipim, bah, tchê, uai, pelo |r| "arranhado" ou "puxado" (o "arranhado" carioca é uma fricativa velar; o "r puxado" caipira é um retroflexo), pelo uso de determinados pronomes, como você/ocê/cê/tu, emprego ou não de artigos diante de nomes próprios (na casa de fulana x na casa da fulana) e por aí vai…
Então, basicamente, todo mundo tem sotaque, que é basicamente o padrão sonoro específico de uma língua/dialeto. Se você acha que não tem sotaque, está redondamente enganado, meu chapa. "Ah mas fulaninho não tem sotaque", não, você não percebe a diferença porque ele fala igual a você ou porque você já se adaptou àquele padrão sonoro e não o percebe mais qualitativamente.
Por hoje é só, amiguinhos!
Leiam os outros textos da série se ainda não leram – é importante acompanhar o raciocínio!
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