Você está no ar. O homem a pegou, rodopiou e a jogou pra cima. A gravidade para por poucos décimos de segundo, e você está livre no ar, como os pássaros. As forças gravitacionais param de agir por instantes, porque as forças que a impulsionaram para cima compensaram. Você está livre! O homem embaixo ri e você se delicia, olhando para o mundo do alto; e ainda que esteja prestes a despencar de volta, podendo cair no chão e virar um amontoado de ossinhos quebrados, não teme mal algum, pois nenhum pai deixaria sua filha cair no chão e a criança tem plena confiança naquele adulto risonho.
O mundo é maravilhoso pela óptica de uma criança. Somos levados a crer que o mundo não é o que é, e isso garante que sobrevivamos, pois eu teria vontade de entrar no ventre de minha mãe de novo! O que nos faz levar a vida adiante é a confiança nos maníacos que chamamos de família e amigos (nossos maníacos são melhores que os outros). Mas de onde vem este sentimento de confiar nos outros?
Não é difícil de imaginar como nasceu o processo de confiar nos outros. Quando se é um ridículo caçador-coletor, com uma gama imensa de inimigos espalhados, a necessidade de estabelecer laços de amizade é mais que imperativo. Não é por mero acaso que lobos caçam em matilhas, tubarões andam em cardumes e leões caçam usando estratégia devidamente copiada por tropas de assalto. Para que estes processos sejam eficientes, é preciso confiar no carinha que está ao lado. Se formos levar para o lado dos combates, um soldado romano usava o scutum não para proteger a si, enquanto avançava com o pilo em riste, pronto para aniquilar a próxima leva de bárbaros. A função do scutum era proteger o companheiro lado, de forma que a linha de frente estivesse protegida. Na formação testudo (tartaruga), os soldados atrás usavam os escudos para proteger por cima, de forma a prevenir qualquer ataque de lanças atiradas ou mesmo flechas. Dessa forma, a formação estava tão segura quanto o soldado menos protegido, repetindo o adágio que a força de uma corrente é medida pela resistência do elo mais fraco.
Com a nossa necessidade de confiar nos outros, surgiram as sociedades, pois grupos começaram a se unir em prol de um bem comum (não virar almoço de outro grupo, por exemplo). Psicólogos, psicanalistas e outros inúteis arrumarão mil e um argumentos sobre o porque de isso ter surgido. Mas alguns cientistas de verdade se preocupam nos detalhes disso ter acontecido.
O dr. Markus Heinrichs, Professor de Psicologia Biológica da Universidade de Freiburg, não é um idiota a ponto de achar que as emoções e laços afetivos aparecem na mente como por mero acaso. Ele bem sabe que tudo se relaciona com a a bioquímica cerebral. Sendo assim, o dr. Heinrichs (que me lembrou aquele agente da Gestapo do filme Caçadores da Arca Perdida) vem há anos estudando o papel da oxitocina em nosso cérebro.
De acordo com sua pesquisa, a oxitocina e a vasopressina são os compostos que mais atuam na regulação da chamada "cognição social complexa e comportamento". Estudos recentes têm investigado os efeitos das duas substâncias sobre a interação social humana, os mecanismos genéticos e a análise de como o cérebro humano se comporta frente a isso através de imageamento do cérebro. Estes dados têm avançado nossa compreensão dos mecanismos pelos quais esses neuropeptídeos contribuem para o comportamento social humano. O dr. Heinrichs e seus colaboradores publicaram um artigo (por favor, não falem "paper". Digam "artigo científico". Paper is what I use to clean my ass) no periódico Nature Reviews Neuroscience.
Já se sabia que a oxitocina é um hormônio importante para o parto e a amamentação (o chamado "hormônio do amor materno"); estudos posteriores identificaram-no como responsável em estabelecer vínculos sociais, bem como suas taxas são aumentadas durante as relações sexuais até a chegada do orgasmo (saiba mais AQUI).
Na pesquisa, o dr. Heinrichs demonstrou que a oxitocina, ao ser administrada como um spray nasal, aumenta a confiança dos indivíduos e empatia, reduzindo sua ansiedade e stress. Em outras palavras, não é seu cunhado que é um safado a ponto de você não confiar nele. Você é que não desenvolveu oxitocina suficiente para isso. Não que, com isso, seu cunhado passe a ser mais confiável, mas seu cérebro é muito burro e não consegue avaliar isso, pois somos apenas fruto de nossa bioquímica cerebral. Aliás, esse negócio de estabelecer confiança é extremamente relativo e não são aquelas dinâmicas imbecis que fazem nas empresas que mudará isso. Trabalhei num lugar onde a possocóloga criou uma "dinâmica da confiança", onde as pessoas se dividiam em grupos. A dinâmica (que na minha opinião era uma completa perda de tempo, mas o lanche era gostoso) consistia em uma pessoa ficar atrás da outra (ÊPA!) a uma certa distância. O idiota da frente tinha que se deixar cair, na tola confiança que o sujeito atrás iria segurá-lo.
Sim, este teste é um desastre pré-anunciado. Pena que a possocóloga não tinha o dom da clarividência do óbvio.
Um dos tolos que topou fazer isso ficou reto em frente à sua "companheira" (companheira de teste, apesar que ele queria estender este "companheirismo", se me entendem). Então, ele se deixou cair. Ela não era tão burra a ponto de ignorar as leis da física. Imagino que ela tinha lido algo sobre a Segunda Lei de Newton e fez o que qualquer pessoa sensata faria a ver alguém com quase 90 kg despencando em sua direção: saiu de perto e o cara se esborrachou no chão (com direito a algumas pessoas rindo, é claro). Como podem imaginar, a fantasia de ter encontros carnais com a distinta senhorita desapareceram da mente do sujeito.
Quanto a mim, eu aleguei que não podia fazer o teste, pois o tal que seria meu "companheiro" (na dinâmica, apenas!) era um maníaco psicopata e tinha me jurado de morte por eu ter usado a meia dele para coar café e dar para o gerente da minha seção. A possocóloga passou a me ignorar depois dessa observação.
No mundo neurológico, não bastam simples atividades propostas por tias vestidas de forma antiquada para se ter algum resultado. O cérebro não funciona porque… bem, porque funciona. Seu funcionamento segue de acordo comas leis da química e da física e todos nós somos apenas frutos de reações químicas e descargas elétricas. Isso pode parecer muito reducionismo e tira todo o brilho sobre o que somos. Na verdade, não temos brilho algum e é exatamente o fato de sermos diferentes mediante as reações químicas similares, onde temos atitudes diferentes, pois algum fator caótico não previsto atua diferentemente em nós, formando nossa individualidade que faz aparecer a "magia" do que somos, apesar da semelhança de nossas atitudes.
Entendendo como nosso cérebro funciona, podemos interferir, ainda que devamos ter cuidado, no modo como agimos. Usando terapia e medicação, podemos ser melhores, dentro dos limites éticos, claro. A pesquisa esclarece que apenas metade dos pacientes com fobia social pode atualmente ser tratada com sucesso com a terapia, mas não há terapia efetiva foi ainda desenvolvida para curar pacientes com autismo, posto que aí entram outros fatores, bem escondidos em nossos genes.
O dr. Markus Heinrichs não prometeu milagres e não haverá nenhum medicamento milagroso a curto prazo. A questão se baseia num sistema de tratamento que combina administração dos neuro-hormônios e terapia interpessoal. Mas se isso significa para você que é a chave para resolver seu problema de infelicidade, melhor desistir, pois você continuará infeliz e só piorará ao ver que o resultado obtido não é o que você espera. A vida não veio com manual de instruções e o que somos pode se basear apenas em produtos químicos e descargas elétricas. A chave está em como percebemos isso e usamos em nosso bem pessoal e comum. Se você quer coisa fácil, não procure um médico, procure um sacerdote. Pode não funcionar, mas é mais rápido… ao menos, é o que as pessoas que vão nas igrejas há anos esperando resolver suas vidas dizem.
Excelente artigo. Foi muito interessante saber como nós, simples humanos, desenvolvemos tamanha confiança uns nos outros. Seja para formar famílias, laços de amizades e conviver em sociedade.
Claro que não apenas a confiança é relativa como ela tem limites. Posso emprestar uma grana para um amigo, mas jamais daria o cartão do banco e a senha para ele, por exemplo.
Agora vou procurar um meio para minha patroa desenvolver mais oxitocina…
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@Nihil Lemos, “Agora vou procurar um meio para minha patroa desenvolver mais oxitocina…”
Acho que mais sexo resolve, com todo respeito à vc e sua patroa. rs
O assunto me lembra quando digo pra garotada da faculdade que acho fantástico entender que muito do somos, é subproduto de nossas atividades físico-químicas cerebrais. Pena que ninguém se empolga muito em saber/estudar mais sobre, e acabo falando sozinho. Fazer o quê….
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@Karlos Junior, eu frequentemente faço a mesma coisa. E os meliantes crentes ali presentes contestam. Como não “confiam” em mim, eu também não dou muitas notas boas para eles.
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Excelente artigo.
Acredito que esta pesquisa poderá vir a auxiliar no tratamento de fobias e stress.
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@skin, acho que pode ajudar tb a evitar depressão pós parto (não acho que se enquadra em fobia/stress). Os números parecem ser assustadores, mas não achei rapidamente (sim, sou preguiçoso) números de mortes relacionadas a PPD).
http://www.cdc.gov/prams/ppd.htm
http://en.wikipedia.org/wiki/Postpartum_depression
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