Grandes Nomes da Ciência: Florence Nightingale

O soldado exausto repousa numa maca improvisada, abrigada sob uma tenda de lona. Lá fora, o vento gelado da Criméia urra como um monstro e a dor e a exaustão estão prestes a reclamar mais uma alma. O vulto silencioso chega à entrada da imensa barraca e sua vestimenta farfalha ao vento. O medo nos olhos daqueles pobres diabos era palpável e o vulto com a mão levantada traz consigo uma lâmpada. O vulto aproxima-se do soldado e este percebe que chegou seu fim, que a Morte chegara… Não, não foi a morte quem entrou na barraca, mas a Vida.

O vulto deixa a lâmpada a óleo de lado e coloca compressas sobre a testa do soldado e dá-lhe palavras de conforto. O soldado agradecido vê, à luz tênue da lâmpada, traços firmes, mas ao mesmo tempo delicados; o que ele vê é a mãe de todas as enfermeiras, ganhadora de duas medalhas de guerra, responsável pelo uso sistemático da Estatística e uma referência no atendimento médico-hospitalar. O nome do anjo que carregava a lâmpada era Florence Nightingale.

Ser patricinha não é algo inventado por filhinhas-de-papai no século XX. Tal coisa sempre existiu, onde meninas mimadas não lavavam nem as calcinhas (isso as que usavam calcinhas). Num mundo onde o politicamente correto e o sofativismo ainda não existiam, o grau de preocupação com os pobres tendia a zero; mesmo porque, não havia twitter para espalhar aos quatro ventos como são pessoas legais, nem havia YouTube para gravar um vlog.

Enquanto o Império Britânico ia de vento em popa, com suas trocentas colônias espalhando-se pelo mundo, a aristocracia tinha grandes preocupações, como o vencedor do campeonato de Cricket, um jogo idiota e sem o menor sentido. Era um mundo menos hipócrita, onde ninguém fingia se preocupar com nada para pagar de bonzão.

Florence Nightingale não era de família pobre, pelo contrário. Sua família era bem abastada, com direito a castelos e tudo mais. Florence nasceu em 12 de maio de 1820, em Villa Colombaia, em Florença, Itália, daí a origem de seu nome. Ela teve uma educação à altura de sua posição social, apesar de não freqüentar uma escola regularmente, já que meninas não costumavam freqüentar colégios. De certa maneira, é estranho perceber que ela não se casara antes do seu “chamado”.

Tia Florence era anglicana e, segundo seu próprio relato, Deus deu-lhe inspiração para a carreira que deveria seguir. Enquanto idiotas recebem mensagens de Jesus que informam que eu irei ao joelho e dobrarei meu inferno para louvá-lo (ou algo nesse sentido), a missão divina de Florence era o de servir aqueles que mais necessitassem. Era o ano de 1845.

Florence faz um comunicado à família, dizendo que cansou daquele negócio de ficar bordando em casa e resolveu ser enfermeira. A mãe teve um ataque de pelanca e rompeu relações com a filha. A questão é que não havia a profissão de enfermeira como temos hoje. As “enfermeiras” existentes era um bando de mulher vadia desempregada e sem atributos suficientes para trabalhar na mais velha das profissões ou as que eram presas e punidas para dar (ops) serviço nos hospitais militares. Talvez seja daí o fetiche de roupinhas de enfermeiras, mas estou me dispersando.

Florence começa a demonstrar preocupação com os pobres e a família se preocupa com sua sanidade, já que este tipo de preocupação não é coisa que uma dama da alta sociedade tivesse que se preocupar, o que deixava muita gente preocupada. Shame!

Em 1846, um mendigo morreu numa enfermaria esquecida em Londres. A morte do mendigo também seria esquecida, mas dessa vez a coisa foi diferente. Isso se tornou praticamente um escândalo público! Novas exigências com relação ao tratamento de pacientes começou a varrer a Inglaterra (que nunca deu tanta bola assim a quem não era da aristocracia). Não necessariamente, o Rouxinol participou dessa revolução hospitalar, pois sua contribuição maior se daria mais pra adiante.

Em 1854 explodiu de vez a Guerra da Criméia, próximo ao Mar Negro, na Ucrânia. As tropas da Aliança Anglo-Franco-Sarda cercaram Sevastopol e o frio, ferimentos e doença cobriram a região com o manto da morte.

O Rouxinol reuniu uma equipe de 38 enfermeiras voluntárias treinadas por ela, inclusive sua tia Mai Smith, servindo nos Campos de Scutari, na Turquia Otomana. Ou isso é prova de imensa coragem ou grande burrice. De um jeito ou de outro, o trabalho de Florence começou a florescer, pois uma série de cartas começaram a chegar na Inglaterra, de forma que as pessoas pudessem saber o que realmente andava acontecendo naqueles cantos onde Judas perdera as cuecas.

Florence sabia que não bastava curar os doentes. Era preciso saber quantos se feriram, quantos tinham condições de sobrevivência, quantos podiam voltar pra casa, quantos teriam condições de voltar a lutar.

Tia Florence sempre teve um dom nato para matemática. Ela usou seus conhecimentos e seu brilhantismo para um levantamento estatístico de tudo que estava acontecendo durante a guerra. Ela transformou os números frios em informações gráficas, usando o famoso gráfico setorial criado por William Playfair, que mais tarde passou a ser conhecido como Gráfico de Pizza.

Ninguém pensara, até então, usar Estatística para estudar o que se passava durante as guerras O lance era “Aponte pro inimigo e mande-o pro inferno!”. Juntamente com o gráfico sob a forma de área polar, Florence conseguiu tabular muitas informações, principalmente sobre quantos soldados morriam nas frentes de batalha, coisa que ninguém dava a menor bola até então.

Em 1856, Florence, o Rouxinol, contraiu febre tifoide e por muito pouco ela não foi visitar os Céus Amigos de Javé. Ela regressa à Inglaterra como heroína, sendo conhecida pela alcunha A Dama da Lâmpada, pois sempre visitava os enfermos à noite, com uma lâmpada na mão. Chegando em casa, ela luta pela melhoria dos hospitais e as enfermeiras treinadas por ela se tornaram uma referência no atendimento médico-hospitalar.

Florence não sabia ainda sobre bactérias e outros microorganismos. Pasteur ainda não concluíra seu trabalho sobre isso e ia demorar um pouquinho. No entanto, o Rouxinol sabia que a higiene era ponto principal na luta contra doenças. Nas escolas de enfermagem de tia Florence, eram ensinadas 4 coisas básicas:

  1. O dinheiro público deveria manter o treinamento de enfermeiras e este, deveria ser considerado tão importante quanto qualquer outra forma de ensino.
  2. Deveria existir uma estreita associação entre hospitais e escolas de treinamento, sem estas dependerem financeira e administrativamente.
  3. O ensino de enfermagem deveria ser feito por enfermeiras profissionais, e não por qualquer pessoa não envolvida com a enfermagem.
  4. Deveria ser oferecida às estudantes, durante todo o período de treinamento, residência com ambiente confortável e agradável, próximo ao local.

Florence fez ainda um estudo estatístico global de saneamento na vida rural da Índia e foi a principal figura na introdução de melhores cuidados médicos e serviços de saúde pública na Índia, possessão inglesa até que um pedófilo careca viesse com uma novidade chamada revolta pacífica. Em 1859, Florence Nightingale foi eleita como o primeiro membro feminino da Royal Statistical Society, e ela mais tarde se tornou membro honorário da Associação Americana de Estatística.

A enfermagem não é o que temos hoje se não fosse por Florence Nightingale. Os levantamentos estatísticos não seriam o que são hoje a não ser por seu trabalho. Muitos soldados conseguiram voltar pra casa graças aos seus cuidados e se hoje enfermeiras fazem besteira nos hospitais, é porque não foram treinadas pessoalmente por Florence Nightingale.

O mundo ficou um pouco pior em 13 de agosto de 1910, quando a voz do Rouxinol calou-se, aos 90 anos de idade. Seu legado, entretanto, permanece em cada sala de operações, em cada corredor, em cada homem ou mulher que corre para salvar a vida de um paciente. Em cada paciente que vive graças aos cuidados médicos, saneamento e higiene, o canto dos rouxinóis veneram Florence Nightingale, ganhadora da medalha da Royal Red Cross, das mãos da própria Rainha Vitória, e da Ordem do Mérito, comenda criada pelo rei Eduardo VII.

15 comentários em “Grandes Nomes da Ciência: Florence Nightingale

  1. A introdução me fez pensar que era um texto de Tolkien. Aí notei que não estava entre aspas…rs.

    Parabéns, belo texto.

    Off: Finalmente vejo alguém colocar o “indiano careca” em seu devido patamar.

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          1. Só uma vez, Senhor… Só uma vez eu espero que ninguém desvie a MERDA do assunto só por causa de uma droga de piadinha!

            Vamos combinar uma coisa: Se vocês são incapazes de comentar o ASSUNTO, por favor, não comentem.

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  2. Adoro gráficos, e saber que a tia Florence mostrou a todos a importância de obter dados sobre o que acontece mostra como tinham tolos naqueles tempos. Eu penso:

    — Como ninguém pensou nisso antes?

    Pois é, coube a Florence Nightingale. Se ninguém pensou, então o mundo precisou de alguém que pensasse mais a frente do seu tempo. E ela mereceu o seu nome na série Grandes Nomes da Ciência :)

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    1. @Nihil Lemos, Engraçado que a História, até onde vejo, esta cheio destes momentos ‘pq ninguém pensou nisso antes!!1!111!’… A Estatistica como disciplina já existia, mas penso que eles preferiam confiar nas sangrias/vomitórios do que pensar ‘será que esta porcaria realmente funciona?’…

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      1. @Zero_Anjo, Para você ver. Por essas e outras que admiro esse tipo de história. A série Grandes Nomes da Ciência tem diversas histórias assim.

        Claro que sozinha a estastitica não resolve nada, mas é ela que indica por onde devemos começar a resolver o problema.

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        1. A Estatística não foi criada para resolver nada, nem ela indica como se resolve um problema. Ela apenas matematiza dados, é apenas uma ferramenta que mostra situações e faz projeções da “verdade” (aspas, preste atenção nelas).

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  3. Eu não conhecia a história ou pessoa que Florence Nightingale foi, mas com este artigo fiuei fascinada. Sinceramente jamais dei valor ao trabalho de enfermeiros, principalmente que fazia o curso técnico, mas depois do seu artigo, darei mais valor. Parabéns pra você, André, pelo trabalho e para a Florence… Se bem que uma medalha das mãos da Rainha Vitória já seria a maior honra de todas.

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  4. Muito bom o artigo! (como sempre).
    Eu passei em Enfermagem na UFMT – Sinop e estava procurando textos a respeito no teu blog. Fiquei muito feliz em ver um “Grandes Nomes” da Florence.
    Queria contribuir com sugestões, mas não estou encontrando o e-mail.

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