Bougainville e a Revolução dos Cocos

revolucao-cocos.jpgMuito provavelmente, o máximo que você deve ter ouvido falar de Bougainville diz respeito a flores ou a condomínios de classe média, mas há também um lugar chamado Bougainville, uma ilha pertencente ao Arquipélago de Salomão, com uma população superior a 175 mil habitantes, um pouquinho a mais do que o Maracanã suporta de torcedores (na Copa de 1950, estima-se que havia 200 mil torcedores no Maracanã, quando o Uruguai ganhou do Brasil), vivendo numa área de 9.318 km². O lugar não é nenhuma riqueza, pelo que pode-se imaginar algo rico, como tendo ouro, prata, platina e diamantes. A riqueza de Bougainville não é mineral e sim sua população.

Esta é a história de uma guerra de independência, onde o líder dos revoltosos não era John Connors, mas foi muito mais heroico contra as adversidades que apareceram. Esta é a história de como os ilhéus de Bougainville lutaram até mesmo contra o poderio de um país rico e os colocaram de joelhos. Esta é a história da Revolução dos Cocos.

Em 1768, o explorador francês Louis de Bougainville chegou ao arquipélago de Salomão e viu uma ilha, a qual decidiu investigar. Como ele era muito modesto, ele batizou a ilha com seu próprio nome. No século XIX, as redondezas começaram a ser visitadas por baleeiros norte-americanos. Assim, os baleeiros estabeleceram comércio com o arquipélago de Papua Nova-Guiné. Com o passar do tempo, outros resolveram estabelecer seu próprio quintal naquela região e dane-se o pessoal que já morava lá. Alemães e ingleses resolveram dividir o local irmamente. Assim, Bougainville ficou sob controle de Papua Nova-Guiné, mesmo que Bougainville pertencesse ao arquipélago de Salomão, que formam um outro Estado; este último sob o domínio inglês.

Como qualquer invasor que estabelece uma colônia extrativista, os alemães tratavam os ilhéus como animais de carga e o açoite era regra normal. A vida era muito complicada e piorava cada vez mais. Mas aí chegou a Segunda Grande Guerra e o local foi tomado pela marinha japonesa. Em 1942, 65.000 súditos de Hiroito, armados até os dentes, desembarcaram em Bougainville e adjacências com uma política de ganhar os corações e mentes dos habitantes e que inicialmente estabelecido escolas de língua japonesa fazendo as pessoas mandarem seus filhos para lá. Obviamente, ninguém consultou os filhos de Bougainville. Ninguém nunca consulta nada; se bem que, segundo dizem, os ilhéus eram bem tratados. Segundo relatos, uma moça fora estuprada por dois soldados japoneses. O pai da menina fez queixa com o comandante da divisão e este ordenou que houvesse um desfile, onde o pai identificou os culpados. Estes foram sumariamente decapitados. Japoneses não brincam em serviço e palitinhos debaixo das unhas era só passatempo para com os norte-americanos. Não acredite muito nos filmes com o Lee Marvin.

Americanos e ingleses não estavam satisfeitos com a situação e disseram: Aqui, ó! E partiram pra porrada; como vocês devem saber, o Japão se rendeu depois que levou duas bombas atômicas no quengo e a Guerra acabou e aí começou a partilha dos despojos. Afinal, cada qual queria o seu quinhão. Durante as batalhas, muitos dos ilhéus morreram; se não pelos confrontos, também de fome e doença. Se a vida era ruim antes, e melhorou um pouco, agora virou o Inferno. E a coisa só tendia a piorar.

Os ilhéus iam vivendo mal e mal, até que na década de 1970, chegou a Bougainville Copper Limited, também conhecida como BCL, uma subsidiária da Rio Tinto Group, uma companhia binacional inglesa-australiana, com abrangência diversificada, especializada em mineração. Como pode-se notar pelo nome, a BCL foi até Bougainville e começou a extrair cobre, sem se dar ao trabalho de se preocupar com o meio-ambiente. A mina de cobre a céu aberto tinha 100 metros de profundidade, cobrindo 7 km². O povo de Bougainville protestou, pois qualquer um com um mínimo de neurônios não consegue achar que tal coisa é normal. A resposta lacônica da BCL: tomaram a terra dos moradores à força. O que era uma mata verdejante, com grandes árvores, com flora e fauna exuberante tornou-se um lugar desolado, imundo e pútrido com os resíduos químicos usados indiscriminadamente. O lucro, em contrapartida, girava em torno de bilhões de dólares e era isso o que importava.

1 bilhão de toneladas de cobre, mercúrio, chumbo e arsênico acabaram sendo jogados no Rio Jaba, acarretando em seu total envenenamento. O rio ficou estéril. Não há nada vivo lá e as pessoas não podem beber daquela água. Sinto vergonha pela ciência que eu estudei e pela qual jurei que jamais iria usá-la para ofender seres vivos e o meio-ambiente ser usada de forma tão criminosa. Se eu pudesse, eu pediria humildes desculpas pelo que fizeram, mas não posso. Só me resta contar e recontar esta história.

Francis Ona, nascido e criado em Bougainville, era funcionário da BCL e se revoltava com o que via. Ele nasceu em 1953, mas a data correta é desconhecida. Ele serviu de intermediário entre o povo de Bougainville e os diretores da BCL. Ele solicitou que parassem a mineração e que a Rio Tinto indenizasse a população em 10 bilhões de dólares, muito mais que a mineradora valia. Ele recebeu de volta um riso de escárnio. Este foi um sério erro por parte da direção da BCL; eles pensavam que Ona era um capiau idiota, incapaz de fazer qualquer coisa contra os poderosos ocidentais e seu poderio econômico.

Um sério erro. Provavelmente, o idiota que resolveu escarnecer de Ona nunca leu sobre História. Nunca soube que simples tribos celtas na Gália Cisalpina (atual Irlanda) mandaram cadáveres de volta pra Roma, quando esta enviou 3 exércitos para combatê-los. Só quando Caio Júlio César chegou lá com um exército imenso, propagando uma selvageria sem limites, no melhor estilo Guerra Total digna dos filmes do Rambo é que Vercingentorix se rendeu. Roma, entretanto, acabou sucumbindo na mão de outros bárbaros. Séculos antes, Alexandre da Macedônia, com “apenas” 50 mil homens botou as legiões de Dario I pra correr (os que não correram viraram hamburger na mão da Cavalaria dos Companheiros). Os EUA tomaram seu remedinho quando acharam que poderiam subjugar o Vietnã e a URSS foi chutada do Afeganistão. Como bons perdedores que são, os EUA ainda pagaram outro mico sendo expulsos por um bando de analfabetos toscos, com armas ridículas, da Somália. Aquela visão heróica do Falcão Negro em Perigo não passa de palhaçada, quando se vê que um imenso poderio militar saiu com o rabinho entre as pernas de um ridículo e inexpressivo país africano. Idiotas nunca levam isso em conta e a atitude é sempre a mesma: riem. Só que Ona não era o tipo de sujeito que aceitaria zombaria calado. Era novembro de 1988.

Ona sabia onde a empresa guardava explosivos. Saiu da reunião, foi ao depósito e roubou 50 kg de explosivos. Motivo: Estava declarando guerra à BCL. Guerra de guerrilha. Ele e seus seguidores começaram a sabotar as instalações da BCL de forma estratégica. Seus diretores entraram em pânico e apelaram para o governo de Papua Nova-Guiné. A guerra começara.

Tropas de Papua Nova-Guiné desembarcaram em Bougainville, com homens, armamento, helicópteros e tudo o que se precisa para uma guerra. Obviamente, isso soa esquisito, como um governo do ridículo país de Papua Nova-Guiné conseguiria tudo isso. Acontece que eles faziam isso com ajuda da Austrália. E a Austrália sempre foi capacho da Inglaterra, que tem tradição imperialista desde os tempos de Elisabeth I.

O mundo estava tão preocupado com isso como eu fico preocupado com a fauna do ralo de meu banheiro quando jogo desinfetante lá. A diferença é que fungos e bactérias não revidam.bougainvillianos, sim. Este foi o segundo erro daqueles imbecis que acharam que um bando de aborígenes seriam dizimados facilmente. Quem não conhece história corre o risco de repeti-la. Foi isso o que aconteceu em Bougainville.

Os revoltosos não tinham equipamentos, não tinham treinamento militar, não tinham veículos. Mas a Força era poderosa neles. Os jedis de Bougainville improvisaram tudo. Desde estilingues potentes, capazes de acertar um helicóptero até reconstruir carros avariados. Atacaram os exércitos de Papua Nova-Guiné com seu conhecimento superior das redondezas e atacavam iguais aos partisans franceses: de sobressalto, com armadilhas, flechas venenosas e colocaram os soldados do exército papuano pra correr. O governo de Papua Nova Guiné instituiu um bloqueio econômico à ilha de Bougainville. O mar territorial foi fechado. As ordens eram que qualquer barco passando por ali devia ser prontamente eliminado, de preferência matando todos os seus ocupantes.

A tática deveria fazer com que o povo se voltasse contra os líderes revoltosos, fazendo com que a necessidade falasse mais alto e estes se entregassem ao domínio de Papua Nova-Guiné. Foi o terceiro erro.

Francis Ona não possui as feições idealizadas por um herói no sentido clássico. Ele não bebe vodca martini (batida e não misturada) nem tinha um sabre de luz. Ona não recebeu de presente as sandálias de Hermes e nem o escudo de Atena. Ona não era o senhor de Krull e nem tinha dádivas divinas. Mas seu trabalho superou os 12 trabalhos de Hércules, pois ele não era um semi-deus. Ele sequer tinha o físico musculoso de Conan. Era não era muito alto, tinha uma barba bem espessa e uma protuberante barriga. Ona não se parecia com nenhum líder de resistência e era aí que residia o seu grau de periculosidade. Se Ona tivesse que ser comparado com um herói, ele seria o MacGyver de Bougainville! Era organizado, inteligente e um líder nato. Ona decidiu que as pessoas deveriam e ajudou a desenvolver plantações e hortas familiares. cada família teria que ser autossustentável.

Os carros foram consertados nas oficinas da BCL que ficaram, mas seus funcionários, num lampejo de esperteza, saíram de lá, deixando tudo para trás. Se me perguntarem, acho que estes eram os únicos espertos na BCL. Os que ficaram se juntaram à Aliança Rebelde contra o Império… Sim, eu sei. É uma licença poética, já que o governo papuano não conseguia nem limpar a própria bunda sem consultar a Austrália.

Os bougainvillianos desenvolveram tecnologia própria, usando como matéria-prima uma coisa que a ilha fornece em abundância: cocos. É dos cocos que eles extraíam óleo, em diversos graus de pureza. Dependendo do tipo de óleo, a população usava para cozinhar, fazer sabão e até mesmo para substituir o óleo diesel. O que acarretou disso foi um combustível mais eficiente, menos poluente e com maior autonomia. Sim, óleo de coco é um combustível muito melhor e as atuais pesquisas sobre biodiesel são, ao meu ver, idiotice, se você tem algo tão bom e eficiente quanto óleo de coco, plenamente natural, sem precisar de aditivos caros e tóxicos, como o metanol. Além de ser uma luta pela liberdade, era uma guerra ecológica, bem diferente do que os eco-chatos fazem, ao achar que desligar a luz por uma hora é suficiente para salvar o planeta. Bougainvillianos não perdiam tempo achando que o que a BCL fizera era uma “puta falta de sacanagem” e nem iam chingar muinto nu tuíter.

A ilha dispunha inclusive de energia elétrica, obtida de geradores que não eram movidos a diesel nem a óleo de coco. Os jedis de Bougainville canalizaram parte de um rio, fazendo-o cair numa roda d’água, que, através de engrenagens devidamente ajustadas transferiam sua energia cinética e a transformava em trabalho, fazendo girar os geradores, que faziam um trabalho conhecido muito bem por Michael Faraday (mesmo porque, foi Faraday quem inventou isso). A população não tinha suprimento médico e a Cruz Vermelha não estava nem aí. Assim, eles partiram para a floresta e usaram os conhecimentos dos mais idosos sobre medicina fitoterápica. A floresta fornecia alimento, energia, remédios, moradia, utensílios desde caçambas até bolsas feitas de folhas. Se você acha que tecnologia é clicar no botão Iniciar, revise seus conceitos.

A coisa começou a sair do controle. 80% da ilha já pertencia ao BRA, o Exército Revolucionário de Bougainville (Bougainville Revolutionary Army). Papua Nova Guiné entrou em desespero e implorou por mais ajuda da Austrália. Esta enviou mercenários contratados junto à Sandline International, uma companhia militar privada (sim, isso existe), sediada no Reino Unido, como se aquilo fosse algum livro do Frederick Forsyth. Só que o chefe dos mercenários não era Cat Shannon e eles também foram expulsos de Bougainville, com os revoltosos erguendo o dedo médio para Sua Majestade. Agora, o mundo estava se tocando que algo tava acontecendo naqueles recônditos de Deus-me-Livre. Não que a ONU fosse se preocupar com aquilo; em Bougainville não existe petróleo, só cocos.

Em 1997, a Nova Zelândia mediou o início das conversações de paz e Papua Nova-Guiné acabou reconhecendo a autonomia da ilha de Bougainville.

Eleições foram realizadas em junho de 2005 e Joseph Kabui foi eleito presidente. Francis Ona, apesar dos pedidos, recusou concorrer à presidência. Kabui morreu em 2008, e foi sucedido por um presidente interino em exercício. Novas eleições conduziram James Tanis à presidência de Bougainville em 2009.

Há uma clara ligação entre a revolução que aconteceu em Bougainville e o filme Avatar, de James Cameron, onde uma companhia mineradora tenta dizimar a população dos nativos, os na’vi, mas estes reagem contra os mercenários, provocando sérias baixas no lado dos extrativistas.

A vida de um herói, diferente dos filmes, nem sempre acaba em glórias. O grande Francis Ona, chefe da resistência e comandante do BRA faleceu em 24 de julho de 2005. Não foi um batalhão do exército papuano que o liquidou nem um atirador sniper da Sandline. Ona morreu como pessoa simples que era, vítima do ataque voraz de um ser desprezível, indiferente às obras daquele homem. Francis Ona morreu de malária, mas seu legado é o de uma ilha livre, um Estado soberano, com um povo nobre.

Eu poderia dizer que Francis Ona é um dos grandes nomes da ciência por tudo o que ele fez. Mas eu estaria desmerecendo aquele homem. E se o Olimpo ou o Valhalla existir, entre Aquiles, Hércules, Perseu, Teseu, Ulisses, Beowulf, William Wallace, Thor, Leônidas entre tantos heróis, mitológicos ou não, com certeza há uma cadeira reservada. Nela, senta-se um homem que não usa armadura. Ele não tem físico atlético. Tem uma imensa barba e um sorriso simples. É servido com reverência por valquírias e sílfides. Ele não bebe hidromel, mas uma simples caneca de água de coco. Seu nome é Francis Ona, libertador da ilha de Bougainville.

Este é um relato que deve ser contado muitas e muitas vezes. Fizeram até mesmo um documentário, onde os jornalistas viram de perto o que se passou entre as fileiras da BRA e passou por maus bocados na selva. O documentário de nome The Coconut Revolution (A Revolução dos Cocos), que você pode achar para baixar em algum canto perdido nesse mundo internético.

9 comentários em “Bougainville e a Revolução dos Cocos

  1. Acabei de assistir, depois que li o artigo fiz questão de baixar, é o exemplo de realidade mais incrível que a ficção, Francis Ona, era médico, filósofo,jardineiro, estadista, guerreiro, lider religioso, armeiro, MacGyver, etc, etc, etc… incrível mesmo, vou guardar esse documentário com carinho! A parte com ele mostrando as atiradeiras que usavam contra as metralhadoras , bombas e helicópteros dos inimigos foi impagável, apesar de toda merda e desgraça que sofreram, não conseguir ver auto-piedade , somente humildade e uma capacidade incrível do povo se adaptar e evoluir, além claro da bosta que é muitas multinacionais para as nações “atrasadas”! Que fique a lição pra essa escória, humildade não é fraqueza!

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  2. Continuando, ñ sei se entendi bem o texto mas parece que o atual governo pretende explorar os recursos da mina, e uma das empresas convidadas foi Copper Limited (Isso mesmo)
    http://www.bougainvillecopper.com.pg/
    Ou é uma mentira descarada, considerando o que ela foi capaz, ou a “política” esta se desenvolvendo no lugar!

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    1. @Altius, Pelo que li, ela não só foi convidada, mas também os moradores QUEREM que ela volte a explorar a mina.

      “BCL is seen by many as the preferred operator of a re-started mine”

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  3. Um texto que vira e mexe estou aqui sempre lendo. Especialmente pelo legado deixado pelo Francis Ona que, como eu disse no Twitter, é um cara que Xs lacradorXs, empodeiradXs e empodeiradorXs, mimimillennials e geração Ydiota devia conhecer urgentemente.

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