A diversidade do islã

Por Philip Bowring
Herald Tribune

Seria pueril criticar o discurso do presidente Obama no Cairo para o mundo muçulmano. Foi bem redigido e, como de costume, bem proferido. Teve o impacto pretendido, apesar de serem difíceis as ações que sustentarão as palavras.

Contudo, o discurso sugeriu uma divisão entre muçulmanos e não-muçulmanos maior do que realmente existe. Houve uma falta de reconhecimento implícito na grande diversidade do islamismo, uma religião que, como o cristianismo, formou e foi formada pelas sociedades às quais se ligou.

Essa diversidade não é primariamente refletida na divisão entre sunitas e xiitas, mas nas práticas dos muçulmanos no Sul e no Sudeste da Ásia, na Ásia Central e na África Subsaariana – quase todos sunitas. Esses muçulmanos não-árabes constituem de longe a maior parte da comunidade global muçulmana.

A diversidade também não é suficientemente reconhecida por muitos no mundo islâmico. O resultado é a imposição de uma ortodoxia de forma tão vigorosa quanto os países católicos discriminaram, no passado, contra outras interpretações do cristianismo.

Foi dito, supostamente por Voltaire, que a Inglaterra tinha 60 religiões, mas apenas um molho, e a França, uma religião, mas inúmeros molhos.

Todas as religiões eram, é claro, ramificações do cristianismo. A questão para a sociedade era a aceitação da diversidade e da separação entre Igreja e Estado. Os EUA alcançaram isso com a constituição, enquanto que, na França, o anti-clericalismo tornou-se uma força política contra as afirmativas seculares da religião única.

Obama reconheceu que os EUA, apesar de seu pluralismo e de uma comunidade muçulmana quase tão grande quanto a judia, tinham muito o que curar em seu relacionamento com o mundo islâmico. Ele também tentou promover o processo de paz do Oriente Médio demonstrando igualdade no trato com israelenses e palestinos. Esses objetivos, contudo, não são idênticos. A empatia com a situação palestina é comum nos países em desenvolvimento antes governados pelos europeus.

Por outro lado, quanto mais distantes os muçulmanos estão de Jerusalém, menos estão emocionalmente envolvidos no que é mais uma luta entre nações do que entre religiões.

Em parte, a falta de influência da comunidade muçulmana nos EUA sobre a política do Oriente Médio resulta da grande diversidade de suas origens e interesses. Os árabes são uma minoria entre os muçulmanos americanos como no resto do mundo muçulmano.

Ainda assim, tanto os árabes quanto os EUA -de fato, o Ocidente em geral- vêem o islã pelo prisma da política do Oriente Médio, Al Qaeda e Iraque. Esse é um resultado natural dos recentes eventos, mas também alimentou a sensação dos árabes de guardiães do islamismo. Ao falar ao mundo muçulmano de Cairo, Obama reforçou tal percepção.

E isso pode ser uma desgraça. O dinheiro do petróleo deu mais influência às interpretações árabes estreitas do islã, apesar da maior parte do progresso social e econômico do mundo muçulmano ter sido em países não árabes -Turquia, Indonésia e Bangladesh, por exemplo. Mesmo o Paquistão, apesar de todos seus problemas, demonstra uma diversidade de interpretações do islã, algumas com fortes tendências liberais individualistas que ajudam a sustentar o debate democrático e mantêm viva a noção que é o “Estado é para os muçulmanos” em vez de um “Estado islâmico”.

A aceitação da diversidade dentro do islã assim como a tolerância pra com cristãos e hindus talvez sejam mais marcadas na Indonésia. Ali, como em muitas partes da África subsaariana e da Índia, sem mencionar a Bósnia e as repúblicas da Ásia Central, as regras sociais dos muçulmanos são frequentemente quase idênticas às dos cristãos e ateus.

O problema muitas vezes não é tanto entre muçulmanos e não-muçulmanos, mas dos esforços da religião controlada pelo Estado em negar aos muçulmanos a diversidade de interpretação que deve ser seu direito de nascimento. Assim, não-muçulmanos na Malásia enfrentam apenas obstáculos modestos. Mesmo na República Islâmica do Irã, os cristãos podem tanto beber quanto fazer suas adorações. Nos dois países, os próprios muçulmanos são os que têm a liberdade negada pelas autoridades religiosas governamentais que massacram séculos de tradições locais para impor sua ortodoxia.

Obama tem uma formação que envolveu dois países onde o islamismo e o cristianismo coexistem e onde a política em geral não gira em torno da afiliação religiosa -Quênia e Indonésia. Talvez quando tiver a chance de visitar um deles, ele possa enfatizar -para seu público nos EUA assim como seus anfitriões- a diversidade das tradições islâmicas e a importância da separação entre Igreja e Estado como a chave da liberdade e do pluralismo que definem o sucesso americano.

A batalha não é entre o Islã e os outros, e sim entre a sociedade aberta e seus inimigos.


Fonte: UOL Notícias

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