Os parasitas evoluem constantemente para maximizar sua infecciosidade e otimizar sua virulência, enquanto os hospedeiros tentam, por sua vez, evoluir rapidamente para minimizar essas propriedades dos parasitas. Se um deles conseguir uma vantagem evolucionária significativa, isso poderá levar à extinção do outro. A bem da verdade, se parasitas tivessem desenvolvido consciência, a última coisa que ele iria desejar seria a morte de seu hospedeiro. Sem hospedeiro, sem “casinha” e/ou alimento.
Infelizmente, parasitas não possuem consciência e não estão nem aí se o hospedeiro morre ou não. Se o hospedeiro morrer, os parasitas também se ferram. Assim, acontece que o sistema imunológico dos hospedeiros tentará combater o safado que está vivendo sem pagar aluguel e ainda danificando a residência; os parasitas aos poucos vão se modificando para driblar o contra-ataque do Império e assim sucessivamente. Dessa forma, parasitas bem sucedidos e hospedeiros bem sucedidos estão sempre em um “equilíbrio” competitivo, no qual não há perdedores nem vencedores definitivos, apenas a coevolução constante que mantém o status quo. Esse equilíbrio foi denominado de a dinâmica da Rainha Vermelha.
À primeira vista, a coevolução de parasitas e hospedeiros pode não parecer bem balanceada, pois sabemos que os parasitas evoluem mais rapidamente do que os hospedeiros, por três motivos: maior tamanho populacional, tempos de geração mais curtos e elevadas taxas de mutação. Por essa lógica, os parasitas deveriam ganhar sempre.
Entretanto, sabemos que isso não é o que ocorre em populações naturais. A solução para esse aparente paradoxo foi fornecida pela primeira vez pelo grande evolucionista inglês William D. Hamilton (1936-2000), que mostrou que o equilíbrio podia ser mantido se os hospedeiros adotassem a reprodução sexuada.
O que uma coisa tem a ver com outra?
Em reproduções assexuadas (onde não há troca de gametas), indivíduos se reproduzem praticamente produzindo clones de si mesmos, como é o caso de bactérias. Obviamente, nada na natureza é perfeito, apesar de parecer tudo lindinho a um primeiro momento. Reproduções assexuadas proporcionam pouca variação genética. Em contrapartida, quando você tem uma reprodução sexuada (com troca de gametas), genes do pai se combinam com genes da mãe. Nem sempre dá pra se prever como será essa combinação e o que vai resultar dela. A taxa de ariação genética é muito maior e, portanto, maior probabilidade de termos proles com variabilidade genética maior. Se somarmos a isso o fator das mutações, elevamos essa variabilidade, tornando cada hospedeiro um ambiente singular para o parasita e dificultando a sua adaptação.
Assim, mesmo que o pai não tenha resistência a um determinado agente infeccioso, características maternas poderão compensar isso, dando aos filhos maiores chances de combater as infecções. Claro que essa combinação também poderá acarretar numa doença genética. Como eu disse, nada na natureza é perfeitinho. Ainda assim, geralmente esse mecanismo é tão eficiente que permite que o hospedeiro tenha resistência natural à infecção por parasitas que ele sequer encontrou. A partir desse raciocínio, Hamilton propôs que, evolucionariamente, o sexo emergiu como uma estratégia para lidar com parasitas e que representa uma real vantagem para as espécies.
Óbvio que não foi algo intencional. Apenas aconteceu e, vejam só, como isso propiciou uma melhor adaptação e condição de sobrevivência, indivíduos que se reproduziam sexuadamente tiveram melhores capacidades de continuarem vivos e gerarem mais descendentes.
Darwin era um cara espirituoso. Ele teve algumas tiradas de humor mediante suas pesquisas. Uma de suas frases é: “The sight of a feather in a peacock’s tail, whenever I gaze at it, makes me sick!”, a qual foi escrita por Darwin em uma carta em 1887 (tradução: a visão de uma pena da cauda de um pavão me deixa doente).
Desde a publicação de seu importante livro A descendência do homem e seleção em relação ao sexo em 1871, Darwin vinha tentando, sem sucesso, conseguir uma explicação para o fato de os machos de várias espécies de aves apresentarem uma plumagem colorida e volumosa, que teoricamente deveria ter o efeito deletério de torná-los presas fáceis para predadores. O pavão é o exemplo mais flórido desse fenômeno.
O risco elevado tinha de ser contrabalançado com o lucro de um aumento considerável de atração sexual desses machos. Tal observação era análoga às características de outras espécies nas quais se observava este paradoxo da “seleção sexual”, como o coaxar dos sapos, o tamanho da galhada dos alces ou o colorido dos peixes. Por que as fêmeas prefeririam esses machos tão enfeitados?
Como a sociedade conservadora (e hipócrita) britânica jamais pôde admitir que fêmeas “escolhessem” seus machos – já que lugar de mulher é na cozinha – demorou muito tempo até que alguém realizasse experimentos a respeito. O dilema persistiu até que em 1982 Hamilton,junto com M. Zuk, postulou a hipótese de que os caracteres exuberantes de seleção sexual constituíam uma demonstração de boa saúde, uma prova de que os animais estavam livres de parasitas. Os autores mostraram que entre as aves havia uma correlação negativa significativa entre a infestação por parasitas (nematódeos e protozoários) e a exuberância da plumagem e do canto dos machos. Esses resultados são compatíveis com um modelo de seleção sexual no qual as fêmeas das aves escolhem parceiros sexuais pelo escrutínio de características físicas cuja expressão completa depende de saúde e vigor.
Antropomorficamente falando – o que sempre é arriscado –, ao optar por machos ornamentados, as fêmeas estão na verdade escolhendo machos não parasitados, isto é, com genes de resistência, que serão transmitidos aos seus filhotes. Esta é mais uma demonstração do papel fundamental dos parasitas na evolução dos hospedeiros.
De início isso poderia ser um contra-senso, já que tais enfeites atrairiam predadores mais facilmente. Mas, dessa forma, animais já teriam acasalado e produzindo novos descendentes. Elas preferiram os mais saudáveis e plenamente adaptados ao ambiente, passaram seus genes aos descendentes e assim a corrida continua, mesmo sem sair do lugar, como diria o Átila do Rainha Vermelha.
Hamilton desenvolveu uma brilhante e rigorosa teoria matemática das bases genéticas e evolucionárias do altruísmo por meio da seleção de parentes e aptidão inclusiva, conceitos que infelizmente têm sido usados abusivamente pela sociobiologia e pela psicologia evolucionária. Fundamentalistas retardados, que só lêem sites crentes, acabam “pensando” (é apenas uma maneira de dizer) que isso significa que os mais fortes sobrevivem; mas, como sempre, eles estão errados. Não se trata de força e sim adaptação ao meio. Se você está, beleza! Se não está, Darwin cobrará o seu preço. BUAHAHAHAHAHAH!!
A vida, entretanto, é irônica às vezes. Em 2000, Hamilton organizou uma excursão científica ao Congo para investigar a hipótese que o vírus da AIDS era uma forma mutada do da poliomielite (infelizmente, ele estava errado). Durante a viagem ele contraiu malária, que evoluiu para forma cerebral. Hamilton foi transferido de volta à Inglaterra para tratamento, mas faleceu após seis semanas de hospitalização, com uma hemorragia cerebral. A ironia reside no fato de Hamilton, o cientista que demonstrou a ação de parasitas que influi na evolução biológica, ser acometido de um mal causado pelo Plasmodium falciparum, um parasita que acompanha a humanidade desde os primórdios, e que vem evoluindo e mantendo-se adaptado e vivo ao longo dos milênios.
A Evolução dá, a Evolução tira. Louvada seja a Evolução.
Como último desejo, o grande Hamilton deixou expressamente sua vontade de ser enterrado na floresta brasileira.
Deixarei um pedido no meu testamento para que meu corpo seja carregado para o Brasil e para essas florestas […] e estes grandes besouros Coprophanaeus me enterrarão. Eles penetrarão em minha carne e a comerão; na forma de cria deles e minha, escaparei da morte. […] Zumbirei no lusco-fusco como uma grande mamangaba. Serei muitos, zumbindo como um enxame de motocicletas, alçarei voo, corpo ao lado de corpo no ar, voando na selva sob as estrelas, suspensos sob esses belos élitros [asas dos coleópteros] que teremos nas nossas costas. Finalmente, também reluzirei como um escaravelho violeta sob uma pedra.”
Ainda que poético, o desejo não foi atendido. Hamilton foi enterrado em Londres, Inglaterra; mas suas pesquisas e seu nome forma imortalizadas. Enquanto existirem livros, artigos, documentos ou estas letras que vocês leem agora, William D. Hamilton – nascido em 1º de agosto de 1936 e falecido no ano de 2000 – viverá para sempre. Em letras que somarão em muito maior resultado que as asas iridescentes dos besouros que absorveriam sua carne. Sua essência vive entre nós, cientistas.
Essa é nossa história. Seres humanos e seus parasitas (e muitos seres humanos SÃO parasitas), muito especialmente o Plasmodium, estão há milênios aprisionados no processo coevolucionário antagonístico constante da Rainha Vermelha. Bela e inexorável. Profunda e implacável. É incrível como a nossa espécie é a única que tem consciência da própria evolução, a não ser certas pessoas que preferem acreditar que não, que somos algum pedaço de matéria inorgânica e extremamente limitada. O que os leva a crer nisso? A vontade de crer, só isso! Mesmo assim, não fará diferença, pois o mundo biológico não é como gostaríamos que fosse. Ele é o que é e não adianta fecharmos os olhos.
Meus respeitos, William Donald Hamilton, membro da Royal Society.
Fonte: Ciência Hoje

Brilhantes, a ideia de Hamilton e seu texto (não necessariamente nesta ordem :razz: ) Não estou certo mas acho que Hamilton também era crítico do handicap de Zahavi, não ?
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