
Diz o filósofo que guerras não fazem ninguém grande, mas ele esqueceu que guerras também acarretam evolução científica e tecnológica. Claro, não é para o bem, mas como no conto de transformar espadas em arados, podemos usar tecnologias bélicas para tempos de paz e aprender mais sobre nossa história e nós mesmos.
Tomemos o exemplo da Guerra Fria. A Guerra Fria blábláblá foi um período de intensa rivalidade geopolítica entre os Estados Unidos e a União Soviética, blábláblá corrida armamentista e tecnológica blábláblá avanços na exploração espacial, das telecomunicações e computação blábláblá satélites espiões blábláblá GPS e aviões de passageiros sendo derrubados. Você sabe de tudo isso. O que talvez você não saiba é sobre o programa CORONA, uma série de satélites de reconhecimento estratégicos americanos produzidas e operadas pela CIA que cuidava do monitoramento de territórios inimigos a partir do Espaço, revolucionando a inteligência militar.
Embora esses avanços tenham sido impulsionados por interesses estratégicos e militares, muitos deles acabaram sendo aplicados para uso civil e desenvolvimento de Ciência em geral, não necessariamente visando transformar o amiguinho num estacionamento fumegante e radioativo.
Hoje, um exemplo fascinante desse legado é o uso de imagens captadas por antigos satélites espiões dos Estados Unidos para localizar e estudar sistemas de abastecimento de água construídos por civilizações milenares. Esse encontro entre passado e futuro revela a engenhosidade humana em domar um dos recursos mais essenciais para a sobrevivência: a água.
Um exemplo disso são os qanats, um dos sistemas de engenharia hídrica mais sofisticados e duradouros da História. Criados há mais de 3.000 anos, essas estruturas subterrâneas permitiam a captação e distribuição eficiente de água em regiões áridas, garantindo o desenvolvimento de assentamentos humanos onde, de outra forma, a vida seria inviável. Presentes no Irã, Afeganistão, Marrocos, China e Península Ibérica, os qanats minimizavam a evaporação e aproveitavam ao máximo os recursos subterrâneos.
No entanto, a passagem do tempo e as transformações geográficas enterraram muitos desses sistemas, tornando sua identificação um grande desafio arqueológico. Com os avanços da tecnologia, pesquisadores começaram a explorar novas formas de redescobrir essas obras-primas da engenharia antiga.
Um grupo de cientistas do Instituto Catalão de Arqueologia Clássica, na Espanha, decidiu inovar ao combinar imagens de satélites da Guerra Fria com uma ferramenta avançada de inteligência artificial. Utilizando o algoritmo de aprendizado profundo You Only Look Once (YOLO), a equipe analisou extensos bancos de imagens para identificar padrões visuais que indicassem a presença de qanats soterrados.


As imagens vieram dos antigos satélites espiões CORONA e HEXAGON, lançados pelos EUA entre as décadas de 1950 e 1970. Originalmente projetados para monitorar atividades militares inimigas, esses satélites capturaram detalhes impressionantes da superfície terrestre. Hoje, essas informações se transformam em uma ferramenta valiosa para a Arqueologia.
O algoritmo YOLO foi treinado para reconhecer padrões característicos dos qanats, como as sequências de buracos de ventilação e manutenção dos túneis subterrâneos. Esses buracos aparecem como pontos escuros ou claros nas imagens em preto e branco capturadas pelos satélites. O resultado foi surpreendente: a inteligência artificial conseguiu identificar qanats com uma taxa de precisão superior a 88%.
Esse método representa um salto na arqueologia moderna. Antes, a identificação desses sistemas dependia de escavações dispendiosas e imprecisas, ou de imagens de satélites modernos, muitas vezes obstruídas por elementos urbanos e geográficos recentes. Com essa nova abordagem, torna-se possível explorar grandes extensões de terra e identificar vestígios arqueológicos ocultos sob o solo com uma eficiência sem precedentes.
Apesar dos avanços, o método ainda apresenta desafios. A precisão da análise depende da resolução das imagens, que são limitadas a preto e branco e possuem qualidade restrita. Além disso, o modelo se mostrou mais eficaz em regiões desérticas, onde a visibilidade dos qanats é maior. Para o futuro, cientistas planejam aperfeiçoar o sistema, incorporando imagens de maior qualidade e expandindo sua aplicação para outras áreas geográficas.
A redescoberta e preservação dos qanats não é apenas uma curiosidade acadêmica. Essas estruturas representam marcos da história da engenharia, testemunhando a capacidade humana de se adaptar a condições adversas. Algumas dessas redes subterrâneas ainda estão em funcionamento, e sua compreensão pode inspirar soluções sustentáveis para a gestão de água em regiões afetadas pela escassez hídrica.
Curiosamente, uma tecnologia originalmente desenvolvida para mandar o amiguinho para a vala agora ajuda pessoas a encontrarem o mais notório, antigo, e necessário recurso do qual a Humanidade depende desde que começou a Aventura Humana: água. Sempre ela, para sempre ela, eternamente ela.
A pesquisa foi publicada no periódico Journal of Archaeological Science

Um comentário em “Quando satélites da Guerra Fria mandaram Q1 e deu água”