
No turbulento século I da Era Comum, Roma vivia sob o governo do infame imperador Nero. Conhecido por sua extravagância e crueldade, Nero ascendeu ao trono aos 17 anos e governou de 54 a 68 E.C., um período marcado por controvérsias e transformações profundas na capital do império, principalmente depois que houve uns eventinhos de menor importância num cantinho chamado Iudaea.
Ser um cidadão romano durante o reinado de Nero significava viver em uma época de contrastes extremos. Por um lado, a cidade experimentava um esplendor sem precedentes, com construções grandiosas e espetáculos públicos elaborados. O Coliseu, embora concluído após a morte de Nero, foi concebido durante seu reinado, mas foi construído, mesmo, por outro motivo. Por outro lado, a população enfrentava desafios que não seriam muito (ou praticamente nada) diferente do que acontece nas nossas metrópoles de hoje.
Os romanos testemunhavam uma sociedade em rápida transformação com a expansão do império trazendo riquezas inimagináveis para alguns, enquanto a maioria da população lutava com a superlotação, a pobreza e condições de vida precárias, e eu nem vou levar em conta que escravidão era comum. O grande incêndio de 64 E.C., que devastou grande parte da cidade, apenas exacerbou essas disparidades sociais e urbanas.
Neste cenário de mudanças drásticas e desafios urbanos, o historiador francês Dimitri Tilloi-d’Ambrosi lançou um olhar revelador sobre o cotidiano da Roma Imperial em seu ensaio “24 heures de la vie sous Néron” (24 horas de vida sob o governo de Nero, tradução livre. Não gostou, leia em francês). Sua análise traça paralelos surpreendentes entre a antiga capital romana e as grandes cidades do século XXI, revelando como muitos dos problemas que enfrentamos hoje têm raízes profundas na história. Roma, a primeira metrópole a atingir um milhão de habitantes, enfrentava desafios notavelmente similares aos das grandes cidades atuais.
Tilloi-d’Ambrosi é professor de história romana na Universidade Paris-Nanterre e na Sorbonne (e tem Twitter!). Em seu trabalho, Dimitri (fiquem com preguiça de escrever o sobrenome dele todo) destaca a pressão imobiliária intensa que levou à construção de edifícios cada vez mais altos. As “ínsulas”, blocos de apartamentos que chegavam a seis andares, eram a resposta romana à crescente demanda por moradia, e preocupação com o a qualidade da construção não era lá muita.
Além disso, o êxodo rural, fenômeno que marcou o final da República Romana no século I A.E.C., impulsionou um crescimento urbano desenfreado. Camponeses sem terra, fugindo de condições precárias no campo, migravam em massa para a capital, resultando em uma expansão urbana desordenada. Este cenário não é muito diferente do observado em países em desenvolvimento nas últimas décadas.
A gentrificação, termo comumente associado às dinâmicas urbanas modernas, já era uma realidade na Roma antiga. O monte Aventino, tradicionalmente um bairro da plebe, gradualmente se transformou em uma área nobre, ocupada pela elite romana. Este processo de “elitização” de bairros evidencia as semelhanças nas dinâmicas sociais e econômicas entre a Roma Imperial e as metrópoles atuais.
O trânsito caótico era outro desafio enfrentado pelos romanos. Para mitigar o problema, o imperador Júlio César chegou a proibir a circulação de carroças durante o dia. No entanto, esta medida resultou em um aumento significativo da poluição sonora noturna, com o barulho das rodas de ferro sobre o calçamento perturbando o sono dos cidadãos. A busca por soluções para a mobilidade urbana, portanto, não é uma preocupação exclusiva de nosso tempo.
A diversidade cultural era uma característica marcante da capital do Império, abrigando uma mistura cosmopolita de nacionalidades, religiões e línguas. Comunidades judaicas, comerciantes sírios, escravos de diversas origens e seguidores de cultos orientais coexistiam na capital, criando um mosaico cultural comparável a qualquer megalópole de hoje.
A obra de Dimitri Tilloi-d’Ambrosi não apenas ilumina o passado, mas serve como um lembrete de que, apesar dos avanços tecnológicos e sociais, muitos dos desafios fundamentais da vida urbana permanecem constantes ao longo do tempo. Esta perspectiva histórica pode oferecer insights valiosos para urbanistas, políticos e cidadãos empenhados em melhorar a qualidade de vida nas cidades do século XXI. Mas, sendo honesto, havemos de convir: o que mais se faz e ignorar o passado e perpetuar os mesmos problemas de sempre!

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