Nós e nossos cães temos uma relação de dezenas de milhares de anos. Não é apenas sentimentos, ambos aprendemos que convivência é extremamente benéfica para ambos e, com isso, traçamos laços. Sim, interesse. Nosso e deles. Cooperação é sempre mais favorável que competição por recursos. Aprendemos a honrar nossos companheiros em vida e depois da morte. Isso se dá em vários grupos de animais, como macacos e até mesmo elefantes. Humanos aprenderam a fazer rituais de sepultamento mais complexos, e assim evoluiu até a chamada cultura Yamna, uma cultura da Idade do Cobre/Idade do Bronze do final do 3º ao início do 2º milênio AEC. Este grupo de humanos que existia ao longo do rio Dnipro, na região das estepes da Crimeia, perto do estuário do rio Danúbio e nas regiões a leste da Ucrânia até os Urais. Pelo fato dessas culturas usarem fossas profundas para enterrar famílias inteiras, ficou também conhecida como “Pit Culture”, com os mortos sendo cobertos com ocre vermelho e colocados em decúbito dorsal ou nas laterais com as pernas flexionadas.
Não apenas isso, eram colocadas oferendas que acompanhavam os mortos em suas jornadas no pós-vida, como cerâmicas em forma de ovo contendo alimentos, pedras, ossos e instrumentos de cobre, armas e adornos. Nada tão sofisticado quanto os egípcios, mas ainda assim com uma religião bem organizada em termos de rituais fúnebres. Por extensão, aprendemos a honrar aqueles nossos bravos amigos que estiveram com a gente, ainda que não humanos. No caso, os cães.
A drª Silvia Albizuri é pesquisadora do Seminário de Estudos e Pesquisas Pré-históricas da Universidade de Barcelona. Como historiadora, ela adora coisa velha, mas não tão velha quanto você. Sua pesquisa envolve estudar civilizações como a cultura Yamna que migraram do sul da Europa para formar as comunidades neolíticas do nordeste da Península Ibérica, trazendo consigo suas atividades cerimoniais para o último adeus aos seus, o que envolvia também sacrifício e enterro de cães. A grande quantidade de casos que são registrados na Catalunha sugere que era uma prática geral e prova a estreita relação entre humanos e cães, que, além de serem enterrados ao lado deles com uma refeição similar à dos humanos, de forma a irem pro Além de barriga cheia.
A pesquisa da drª Albizuri analisa os restos mortais de vinte e seis cães encontrados em estruturas funerárias de quatro locais e necrópoles da região de Barcelona. Ela?e realizou uma análise isotópica para dezoito deles, para determinar se a relação com seus proprietários incluiu outros aspectos, como um controle de sua dieta; o que foi descoberto é que os doguinhos tinham idade entre um mês e seis anos e tinham tamanhos similares, entre quarenta e cinquenta centímetros de altura.
Os caninos foram enterrados principalmente em sepulturas circulares, junto ou perto dos seres humanos, embora alguns foram encontrados separadamente em sepulturas próximas e um foi encontrado na entrada da câmara mortuária. Os esqueletos eram semi-completos em conexão anatômica – apenas um era encontrado inteiro, perto de uma criança – sem fraturas ósseas ou marcas devido a manipulação por evisceração, ou quaisquer sinais de predadores.
O estudo isotópico dos corpos e sua comparação com a dieta de humanos e de outros herbívoros no local demonstrou que a dieta da maioria desses animais era semelhante à dieta dos humanos, com alta presença de cereais, como milho e vegetais. Em dois filhotes e dois cães adultos, a nutrição era principalmente vegetariana e apenas alguns casos tinham uma dieta rica em proteína animal.
Sobre essa dieta, ainda há poucos estudos, com alguns casos de dietas mistas na França, Anatólia e China. Alguns cães têm cerca de dez genes com uma função chave para digestão de amido e gordura, o que tornaria a assimilação de carboidratos mais eficiente do que a do ancestral, o lobo. Mesmo sendo cães e lobos pertencentes à mesma espécie, os cães acabaram sendo uma versão mais eficiente dos lobos no tocante à alimentação, o que lhes conferiu uma vantagem evolutiva.
A pesquisa de Albizuri levou a concluir que durante o Neolítico vários vegetais foram introduzidos na nutrição do Rex, deslocando-o um pouco para o lado do onivorismo, mas não vegetarianismo. Como carnes não era algo fácil de se ter em larga disposição, humanos daquela região dependiam muito de alimentação agrícola. Só muito mais tarde a disposição de proteína animal estaria a fácil alcance, o que faria uma grande diferença. Se não tinha carne para humanos, com certeza não teria pros cães, então, eles compartilhavam do menu do dia.
O estudo permite reforçar a ideia de que os cães desempenham um papel importante na economia das populações neolíticas, cuidando de rebanhos e assentamentos. Essa pode ser a relação vital que os transformou em companheiros de morte ou símbolos em rituais funerários. Companheiros em vida e até depois dela.
A pesquisa será publicada no periódico Journal of Archaeological Science: Reports