Continuando a nossa série de textos sobre estudos da linguagem, hoje vou falar um pouquinho sobre os estudos "tradicionais", ou seja, aqueles relacionados à primeira definição de gramática que eu dei no texto anterior (e se você não leu os textos anteriores, PARE AGORA! e só volte quando ler tudo. É importante seguir o raciocínio.)
Para falar dos estudos tradicionais, vou usar um texto do linguista britânico David Crystal, mais especificamente o segundo capítulo do livro A Linguística. Infelizmente não consegui uma versão digital do livro para linkar aqui (eu tenho um xerox desse texto que usei numa matéria na faculdade, traduzido para o português, aparentemente uma edição portuguesa.).
A primeira coisa que a gente tem que pensar é: nós humanos existimos como espécie há relativamente pouco tempo, uns 100 mil anos, e provavelmente temos linguagem desde então (outros animais têm linguagem também, mas, como pretendo explicar melhor em outro texto, a linguagem animal é MUITO diferente da nossa, muito mais limitada). Ou seja, estamos em contato íntimo com a linguagem há 100 mil anos como espécie. Nós temos uma relação muito íntima e próxima e diária com a linguagem. E por isso mesmo somos complacentes com ela: nós achamos que já sabemos tudo o que podemos saber sobre a linguagem. Nós desenvolvemos relações de amor e ódio com as palavras. Nós estamos nos debruçando sobre a linguagem desde sempre, pra que mais uma disciplina pra estudar isso?
Então, na verdade, nessa nossa história toda de estudos da linguagem, temos as mais variadas posições. Os estudos "tradicionais" não são, nem de longe, homogêneos. Citando o Crystal:
A frase "gramática tradicional" (GT), a significar alguma coisa, corresponde a uma tentativa de resumir um estado de espírito, a uma imagem dos métodos e princípios que aparecem combinados e realçados de maneiras diferentes através dos tempos, associados a muitas escolas de pensamento. Há ideias acerca da estrutura da frase que vêm de Platão e Aristóteles, conceitos sobre as partes do discurso que têm origem nos gramáticos estoicos, hipóteses sobre a natureza do significado que derivam dos debates escolásticos da Idade Média, ideias acerca da relação entre a linguagem e o pensamento com origem nas controvérsias filosóficas do século XVII entre os racionalistas e os empiristas, ideias acerca da correção na linguagem que vêm das gramáticas inglesas do século XVIII e ideias acerca da história da linguagem que derivam da insistência dada, no século XIX, à filologia comparativa. (…) Mas nunca houve uma gramática tradicional que contivesse todas as falácias que os linguistas gostam de citar como exemplo do que não é estudar a linguagem.
Ou seja, o panorama histórico é muito maior do que a gente imagina, e influenciou MUITO a linguística moderna. Como eu já citei antes, Chomsky diz que seu Programa Gerativista deve muito à Gramática de Port-Royal, por sua vez herdeira da tradição racionalista do século XVII.
As nossas "gramáticas tradicionais atuais", tipo Cegalla, Rocha Lima etc, são herdeiras da gramática latina, por sua vez uma tentativa de reproduzir a gramática do grego. Na Idade Média uma das definições de gramática era ars bene dicendi et bene scribendi, ou seja, falar e escrever bem (ou seja, de acordo com os clássicos). Nossas gramáticas modernas ainda mantém essa tradição: prescrevem o que é "correto" baseadas nos escritores consagrados e na herança greco-latina.
Temos um problema aí, amiguinhos(as). Nossos gramáticos querem "explicar" e "preservar" o português como o latim. Mas o português não é o latim. O português deixou de ser latim há pelo menos 600 anos. É ilusão, é tapar o sol com a peneira querer que a gente continue querendo ser latim ou grego. Ta passando da hora de a gente se assumir como sendo diferente e criar um novo jeito de estudar a língua que aceite as diferenças.
O maior problema dos estudos tradicionais tem a ver com o que eu disse sobre a diferença entre fala e escrita: esses estudos sempre foram baseados em língua escrita, só se aplicam à língua escrita. Não tem nem como eles se aplicarem à língua falada; nem se a gente pegar alguém e amarrar a gente consegue obrigar esse alguém a falar igual a GT manda. Ninguém fala como a GT manda, nem o Cegalla, nem o Rocha Lima, nem o Azeredo, nem o Houaiss. Aposto que até eles já soltaram um "quis mininu bunitu!" alguma vez na vida. E além disso, a GT normalmente se limita a estilos formais de escrita. Ou você vai escrever "deixe-me a comida dentro do micro-ondas ao sair, por obséquio" no recadinho da geladeira? Existem mil e uma formas de escrita, cada uma adequada a uma situação de uso: carta pessoal, bilhetinho, e-mail para o patrão, redação de vestibular, conto erótico, romance, artigo científico etc etc etc… A GT só foca nas mais formais (tipo prova de concurso público da Cespe-UnB).
E tem outros problemas. A GT normalmente era escrita por um "gramático de poltrona" (eu amo essa expressão, vai virar meu mote), que sentava na sua confortável poltrona e ia escrevendo à medida que ia pensando, sem nenhum método minimamente científico, usando critérios altamente subjetivos. Daí surgem anomalias, explicações insuficientes, regras insatisfatórias. Além disso, há uma restrição artificial do objeto de estudo: como o gramático de poltrona está preocupado com o "dizer bem", ele vai solenemente ignorar tudo o que ele acha feio. Isso resulta em ignorar boa parte da linguagem real, da linguagem que as pessoas de fato utilizam no dia-a-dia.
Por fim, a GT é rígida demais, ela não aceita mudar através dos tempos, seguindo o que acontece com a fala (que muda o tempo todo). Tanto que até hoje usamos coisas que copiamos dos gregos (como as classes de palavras, as partes do discurso).
Mais uma citação do Crystal:
Um linguista tem consciência de que o gramático de uma língua não "faz" as regras de uma língua. Um gramático não pode nem deveria fazê-lo. Devia restringir as suas ambições a codificar e explicar o que já está lá, o uso linguístico das pessoas que falam a língua. Se um gramático tenta ultrapassar-se a si próprio perde: as suas regras serão dominadas pelo peso do uso linguístico majoritário, se esse uso diferir das normas que o gramático prescreve, e as pessoas ignorarão essas normas ao usarem automaticamente sua língua.
E é isso o que acontece. Ninguém, absolutamente ninguém, fala de acordo com a GT, já que a GT está em pleno desacordo com a gramática internalizada dos falantes.
Ou seja, apesar de termos todo um contato antigo e íntimo e intenso e frequente com a linguagem, de termos toda uma tradição de estudos que remonta a civilizações muito antigas, essa tradição e esse contato não são boas fontes de informação para um estudo da linguagem que se pretenda científico, que pretenda investigar a fundo esse fenômeno complexo que é a linguagem. E é assim que surge a linguística moderna – criando novos métodos e critérios e práticas e conceitos e perguntas de pesquisa, de modo a tentar entender e explicar satisfatoriamente o fenômeno.
O texto do Crystal tem MUITO mais coisas além disso, mas não tem como falar de tudo. Se tiverem como entrar em contato com o texto, recomendo fortemente.
Por fim, leiam o texto do Sírio Possenti falando sobre as diferenças entre linguística e gramática (nesse caso, a GT). Aliás, o blog/coluna do Sírio (que é linguista da Unicamp, diga-se de passagem) é muito legal e eu recomendo lerem também.
Embora amasse a cultura grega e o modo de escrever e falar dos portugueses, Monteiro Lobato afirmava que o povo é que era o dono da língua, restando aos gramáticos apenas registrar o uso da mesma. Por conta disso, em “Gramática da Emília” ele não teve dúvidas em soltar um rinoceronte em cima da velha Ortografia Etimológica e dos gramáticos que a adulavam. Na mesma obra, sempre através da Emília, ele defende o uso de neologismos e a aceitação da gíria como parte da linguagem no dia-a-dia.
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Não pode mencionar Monteiro Lobato. Ele era um racista e suas obras foram proibidas e declaradas lesa majestade.
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@André, :mrgreen:
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