Acaso geográfico explica diferenças étnicas

Quem tem e quem não tem

Tudo isso parece bastante lógico, como você deve ter admitido. Mas ainda persiste um problema óbvio. No Oriente Médio e na China, a domesticação de plantas e animais aconteceu há cerca de 10 mil anos, e demorou poucos milhares de anos para se espalhar pela Europa toda e por grande parte da Ásia. Na América, porém, esse evento só veio há pouco mais de 5.500 anos; na África, há uns 7.000 anos; e a Austrália só passou a ser cultivada no século 18, com a chegada de colonos europeus. Por que o atraso? Por que a dificuldade? Será que os povo não-eurasiáticos sofriam de algum tabu cultural para abandonar a caça e a coleta, ou simplesmente eram burros demais para ter essa idéia logo?

Tudo indica que não é nada disso. Acontece que, por sorte ou azar, algumas regiões do mundo simplesmente foram dotadas pela evolução com um número desproporcionalmente maior de espécies vegetais e animais que já estavam “pré-adaptadas” para a domesticação, digamos assim.

Comecemos pelas plantas. Os primeiros vegetais a serem cultivados no Oriente Médio são cereais anuais, ou seja, que podem ser colhidos com abundância todos os anos – não era preciso plantar uma árvore e esperar um tempão de barriga vazia antes que ela desse frutos. Também são plantas com alto teor calórico e uma quantidade boa de proteína, como é o caso do trigo. Finalmente, são capazes de polinizar a si mesmas, o que facilita a produção. E possuem grãos relativamente grandes, o que faz valer mais a pena recolhê-las na natureza.

Bem, acontece que há uma brutal desigualdade na distribuição das plantas com essas características ideais ao redor do globo. Um estudo que catalogou as 56 espécies de gramíneas selvagens com as maiores sementes do planeta mostrou que nada menos que 38 delas estão na região do Mediterrâneo (32 desse total) ou no Extremo Oriente. É uma lavada absurda, quando se considera que todo o continente americano tem só 11 dessas espécies na natureza, a África abaixo do Saara só quatro e a Austrália só duas. Os antigos mesopotâmios e chineses simplesmente tinham mais matéria-prima para trabalhar quando suas sociedades ficaram prontas para partir para a agricultura.

O mesmo cenário, aliás, repete-se no caso dos grandes mamíferos – bichos com mais de 50 kg que se tornariam a base das civilizações antigas, como vacas, cabras, ovelhas e cavalos. Desses bichos, a Europa e a Ásia tinham 72 espécies, a África Subsaariana 51, as Américas 24 e a coitada da Austrália, apenas uma espécie. A maior variedade simplesmente multiplicou as chances de que os antigos eurasiáticos achassem mamíferos que se prestam à domesticação – bichos cujos ancestrais selvagens eram relativamente pouco agressivos, com uma hierarquia social que podia ser cooptada pelos humanos, capazes de viver em confinamento relativo, de crescimento relativamente rápido e dieta não muito exigente. De novo, sorte pura.

“OK”, você poderá dizer, “tudo isso explica por que a China e o Oriente Médio criaram civilizações antes das Américas e da África abaixo do Saara. Mas não por que os europeus acabaram se tornando historicamente dominantes?”

Mais uma vez, o acaso geográfico interveio em favor dos habitantes da Europa. Pegue um mapa da Europa e da Ásia e compare com os mapas das Américas e da África. Repare no eixo predominante das distâncias – na Eurásia, o comprimento é maior de leste a oeste, enquanto o continente americano e o africano são mais compridos de norte a sul. E isso pode ter feito toda a diferença.

Eu explico: numa faixa imensa, que vai de Portugal no oeste ao Japão no leste (com algumas interrupções causadas por montanhas e desertos, é verdade), a latitude é a mesma, e portanto a maioria das variáveis do clima e da duração das estações também. Isso significa que os europeus não tiveram a menor dificuldade de simplesmente importar o pacote pronto de animais domésticos e culturas agrícolas do Oriente Médio, e pelo menos parte desse pacote também pode se difundir para o leste – afinal, plantas e animais não precisavam se adaptar a climas fundamentalmente diferentes dos de sua região nativa.

Compare essa situação relativamente fácil com o que acontece nas Américas, por exemplo. Plantas e animais precisavam atravessar um imenso gradiente de latitudes e climas para circular pelo continente. Embora isso não tornasse as coisas impossíveis – afinal, o milho do México acabou sendo cultivado tanto pelos índios brasileiros quanto pelos povos do leste dos atuais Estados Unidos –, atrapalhava um bocado. O único mamífero de grande porte domesticado no nosso continente, a lhama, nunca deixou os confins de seu habitat andino para carregar mercadorias em seu lombo em outros lugares.

As barreiras diretas para plantas e animais acabavam se convertendo em barreiras indiretas para culturas, tecnologias e idéias. Para dar um exemplo simples, os Reis Católicos da Espanha, Fernando e Isabel, não só financiaram a viagem de Colombo como sabiam muito bem que Constantinopla era governada pelos turcos. Já o Império Inca do Peru e o Império Asteca do México muito provavelmente não tinham a menor idéia da existência um do outro.

A conectividade proporcionada pelo eixo continental leste-oeste da Eurásia provavelmente é um dos fatores-chave para o rápido intercâmbio e competição de bens e idéias que fez da região o principal celeiro de inovação tecnológica e cultural da história humana. Os europeus tiveram a sorte de estar posicionados perto dos grandes centros de origem da produção de alimentos e de contarem com um ambiente natural ao mesmo tempo favorável à revolução agropecuária e menos vulnerável que o do Oriente Médio, onde a degradação ambiental logo atrapalhou os frutos da agricultura.

E, assim, foi com o trigo da Mesopotâmia, os cavalos do mar Negro, o ferro dos assírios e a pólvora chinesa que os brancos conseguiram sua supremacia mundial. A coisa poderia ter sido diferente? Sem dúvida. O imperador chinês decidiu que não queria mais viagens transoceânicas de sua frota no século 15, impedindo que os orientais alcançassem muito antes a preponderância que ameaçam assumir hoje.

De qualquer maneira, que a multidão de dados empíricos e bem-costurados acima sirva de lição para quem busca soluções fáceis para explicar a situação lastimável dos povos não-brancos hoje. A derrota deles não teve absolutamente nada a ver com inteligência inata. E usar um argumento desses para se vangloriar é um desserviço ao passado e, principalmente, ao futuro.

8 comentários em “Acaso geográfico explica diferenças étnicas

  1. Depois de tudo isso só posso lhe dar os parabéns. Nessa mesma linha de raciocínio então o que podemos dizer sobre as cotas para negros nas universidades? Melhor nem começar, não é!

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  2. Mariana, não basta apenas facilitar o ingresso na faculdade, quando temos um sistema de aprovação automática nos níveis Fundamental e Médio.

    Muito melhor seria melhorar o ensino básico e médio para que alunos de todas as classes tenham igualdade de condições de prestar um vestibular.

    Afinal, também existem negros e pardos com condições financeiras que não beiram a linha da pobreza e temos brancos que estão abaixo dela.

    Só acho curioso o fato de ninguém ter falado nada a respeito dos índios e os descendentes asiáticos. Será que estes não são brasileiros também?

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  3. Muito bom o texto e o site também, parabéns.
    Concordo com vc André sobre as cotas, um estudante que passa numa faculdade através delas não tem condição de acompanhar os outros alunos já na faculdade.Minha mãe é professora e quando eu vejo as provas dela constato que seus alunos são analfabetos funcionais, esse sistema de aprovação imediata é nocivo aos estudantes.

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  4. Pois é, João.

    O mesmo acontece nas escolas particulares. Os alunos passam pq são “clientes” e os diretores não os contrariam.

    No final, professor que reprova muito, acaba ‘”reprovado”.

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  5. Verdade, nas escolas particulares acontecem exatamente o que vc falou, mas a formação ainda é um pouco melhor em geral de alunos de escola particular.

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  6. A Seleção Natural explica. Os mais adaptados ao meio, quando começou a haver a migração de seres humanos) fez com que diferenças se mantivessem onde facilitava a vida.

    Por exemplo, em lugares muito abrasados pelo sol, os indivíduos de pele escura tinham melhor adaptação a isso, já que o ácido fólico, importante para o desenvolvimento dos fetos, é destruído por causa da luz ultravioleta.

    Com a pele escura, ela absorve maiores quantidade de luz solar, impedindo que a luz UV penetre mais na pele.

    Em locais onde há menor incidência de luz do sol, a pele mais clara é melhor adaptada, pois permitirá melhor absorção de luz, facilitando o metabolismo da Vitamina D.

    Mas estes são apenas dois exemplos para vc entender o processo.

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