A Revolta dos Jornaleiros de 1899

Não, não estou falando dos pseudojornalistas que cobrem celebridade e influencers. Estou falando de jornaleiros, mesmo. Gente que vendia jornal, principalmente crianças. Conhecidos como “newsies”, em inglês (news = notícias), eram em sua maioria crianças com apenas sete ou oito anos de idade, trabalhando para ajudar a sustentar os pais. Eles eram responsáveis pela distribuição dos principais jornais da cidade. De mãos calejadas e vozes estridentes, eles anunciavam as manchetes do dia em esquinas movimentadas, independentemente das condições climáticas ou das horas.

O que poucos imaginavam era que, em julho de 1899, estes pequenos trabalhadores protagonizariam um dos mais significativos movimentos grevistas infanto-juvenis da história americana, desafiando gigantes do jornalismo como William Randolph Hearst e Joseph Pulitzer.

Esta é a história de um dos maiores movimentos lutando por direitos trabalhistas.

A virada do século XIX para o XX foi marcada por profundas transformações no cenário urbano americano. A industrialização acelerada transformou Nova York em um centro efervescente de comércio, imigração, desigualdade social, vício e crime. Nesse contexto, os jornais exerciam papel fundamental na formação da opinião pública e na circulação de informações. Claro, de acordo com os interesses dos donos de jornais e dos amigos dos donos de jornais.

Os magnatas da imprensa, em busca de lucros cada vez maiores, frequentemente negligenciavam as condições de trabalho daqueles que estavam na base de sua cadeia de distribuição: os jornaleiros, majoritariamente crianças órfãs, filhos de imigrantes ou jovens de famílias empobrecidas, que sobreviviam da venda diária de jornais.

Em 18 de julho de 1899, um grupo de entregadores de jornais em Long Island City, Queens, Nova York, fez uma descoberta que seria o estopim para uma revolta sem precedentes. Eles perceberam que um fornecedor estava deliberadamente entregando menos jornais em seus maços do que haviam comprado inicialmente dos centros de distribuição. Para estes jovens, que dependiam de cada centavo para sua sobrevivência e, muitas vezes, para o sustento de suas famílias, tal prática representava uma direta ameaça aos seus rendimentos, o que iria afetar a já precária subsistência.

A indignação foi imediata e a reação, contundente. Tomados pela fúria diante do engano, os jovens entregadores viraram o carro do fornecedor desonesto, expulsaram-no da cidade e confiscaram ou destruíram todos os seus jornais. Este ato, que poderia parecer impulsivo à primeira vista, acabaria num protesto em larga escala. O episódio de Long Island City não acabou como sendo um evento isolado.

As notícias da rebelião em Queens atravessaram o East River e chegaram rapidamente a Manhattan, onde outros entregadores de jornais já andavam por conta dos altos custos impostos pelos editores William Randolph Hearst, do New York Journal, e Joseph Pulitzer, do New York World (sim, o “Pulitzer” do prêmio Pulitzer). Até então, os pequenos jornaleiros compravam os jornais a 50 centavos por cada cem exemplares (o equivalente a aproximadamente 19,14 dólares hoje), e os revendiam por 1 centavo cada.

Sua margem de lucro já era mínima quando, durante a Guerra Hispano-Americana de 1898, Hearst e Pulitzer elevaram o preço para 60 centavos por cem exemplares, sem permitir que os jornaleiros aumentassem o preço de revenda, que permaneceu fixado em 1 centavo por tradição e expectativa pública.

Pode parecer que eles estavam com um lucro exorbitante, mas não esqueçam que nem sempre conseguiam vender todos os jornais, além do custo de vida na cidade ser elevado. Então, esse aumento de 20% no custo de aquisição dos jornais representou um golpe severo para aqueles jovens que viviam no limiar da pobreza. Muitos deles dormiam nas ruas ou em abrigos improvisados, alguns eram responsáveis pelo sustento de irmãos mais novos ou pais adoentados, e praticamente todos enfrentavam condições de vida extremamente precárias.

Diferentemente dos trabalhadores assalariados da época, os jornaleiros operavam em um sistema que os colocava como pequenos empreendedores individuais: compravam os jornais e assumiam o risco de não vendê-los, sem qualquer garantia de remuneração. Jornais não vendidos significavam prejuízo direto, fome e, muitas vezes, a impossibilidade de pagar por um lugar para dormir, já que não tinham como reciclar o papel, posto que isso só apareceria muitas décadas mais tarde.

No dia seguinte à revolta de Queens, em 19 de julho de 1899, ocorreu um momento decisivo que transformaria um ato de indignação local em um movimento organizado de resistência. Uma multidão de jornaleiros, estimada em mais de três mil jovens, convergiu para o City Hall Park, no coração de Manhattan. Ali, em um raro exemplo de organização espontânea, estes jovens trabalhadores decidiram formar um sindicato e eleger como seu presidente Louis “Kid Blink” Baletti, um carismático jovem de 18 anos, reconhecível pelo tapa-olho que lhe rendera o apelido.

Kid Blink era um jovem carismático e com uma impressionante capacidade oratória e liderança que contradiziam sua pouca educação formal. Em um discurso apaixonado que seria posteriormente reproduzido (e parcialmente ridicularizado) pela imprensa local, ele declarou: “Nós estamos prontos para morrer de fome por nossos direitos! E nós vamos vencer porque temos a coragem para isso!”.

O dialeto característico dos jornaleiros, uma mistura do inglês com expressões de várias línguas imigrantes, particularmente o italiano e o iídiche (Queens é um enorme reduto judaico em Nova York), foi estrategicamente incorporado ao movimento como símbolo de identidade coletiva.

A assembleia no City Hall Park resultou em uma decisão unânime: iniciar uma greve em toda a cidade, recusando-se a comprar ou vender os jornais de Hearst e Pulitzer até que o preço fosse reduzido aos anteriores 50 centavos por cem exemplares. A principal demanda era simples e clara, mas representava uma audácia extraordinária para a época: crianças e adolescentes, alguns com apenas dez anos de idade, desafiando abertamente dois dos homens mais poderosos dos EUA.

A greve dos jornaleiros rapidamente ganhou dimensões inesperadas. De acordo com registros da época, mais de cinco mil jovens aderiram ao movimento, paralisando significativamente a distribuição dos principais jornais de Nova York. O impacto foi imediato: a circulação do New York World, por exemplo, caiu de 360.000 para 125.000 exemplares em poucos dias. Os jornaleiros não se limitaram a simplesmente parar de trabalhar; eles ativamente impediam que qualquer um comprasse ou vendesse os jornais “proibidos”, confiscando exemplares e, em alguns casos, intimidando aqueles que tentavam furar a greve.

O movimento se espalhou para além de Manhattan, atingindo Brooklyn, Queens, e chegando até cidades vizinhas como Jersey City. Em cada local, os jornaleiros formavam piquetes, organizavam comícios e marchavam pelas ruas cantando hinos improvisados contra Hearst e Pulitzer. O carisma e a eloquência dos líderes como Kid Blink, Morris Cohen (conhecido como “Manhattan Morris”) e David Simons (“Brookeyn Dave”) eram notáveis, especialmente considerando sua pouca idade e educação limitada.

Os principais concorrentes de Hearst e Pulitzer – particularmente o New York Tribune e o New York Sun – farejaram sangue e se aproveitaram da oportunidade para cobrir extensivamente a greve, frequentemente com simpatia pelos jovens grevistas. Não que o Tribune o Sun estivessem essencialmente do lado dos gartotos, era apenas vingança contra as práticas predatórias dos dois magnatas e encontraram uma excelente forma de bombardear a concorrência por meio de artigos e mais artigos, o que foi crucial para moldar a opinião pública a favor dos jornaleiros (e trazer grandes dores de cabeça aos seus concorrentes).

A percepção da população mudou. Antes, os pequenos jornaleiros eram vistos como delinquentes de rua, mas agora eram crianças trabalhadoras lutando por justiça! Fotografias de pequenos jornaleiros dormindo em becos ou lutando para carregar pilhas enormes de jornais já vinham sensibilizando o público americano desde o trabalho pioneiro do fotógrafo social Jacob Riis, alguns anos antes.

Hearst e Pulitzer fizeram de tudo para acabar com a greve. Contrataram adultos desempregados para substituir os pequenos jornaleiros, mas estes foram rapidamente intimidados pelos jovens grevistas. Tentaram distribuir os jornais diretamente em pontos estratégicos da cidade, mas os piquetes dos jornaleiros frustrava essas tentativas. Hearst e Pulitzer chegaram a contratar capangas para dispersar as reuniões dos grevistas, resultando em confrontos violentos que apenas serviram para aumentar a simpatia do público pela causa dos jovens.

Claro, você me perguntará como a polícia estava nessa situação. Bem, não estava, já que a polícia era corrupta e estava nos bolsos dos magnatas. Problema que os donos dos outros jornais também subornavam a polícia, que era uma inutilidade só (qualquer dia eu conto toda a origem da eficiência da polícia de Nova York, quando tiveram que chamar irlandeses para botar moral lá, já que os policiais eram um bando de bundões).

À medida que a greve se prolongava, tornava-se evidente o custo financeiro para os jornais afetados. Estima-se que o New York World e o New York Journal perderam dezenas de milhares de dólares em receitas durante as duas semanas de paralisação (US$ 10 mil equivale hoje a US$ 382.736,14). Igualmente significativo foi o dano à imagem pública de Hearst e Pulitzer, conhecidos por suas campanhas editoriais em favor dos menos privilegiados, mas agora expostos como exploradores do trabalho infantil.

Um aspecto notável da greve foi a solidariedade demonstrada entre os jornaleiros, muitos dos quais pertenciam a grupos étnicos e religiosos historicamente rivais. Irlandeses católicos, judeus do Leste Europeu, italianos, alemães protestantes e jovens afro-americanos, que normalmente disputavam territórios e frequentemente entravam em conflito nas ruas, uniram-se em uma causa comum. Esta unidade transcendeu temporariamente as tensões étnicas que caracterizavam Nova York naquele período, demonstrando a capacidade do movimento trabalhista de forjar alianças improváveis.

Após duas semanas de impasse, com prejuízos crescentes e pressão pública, os magnatas da imprensa finalmente cederam, ainda que parcialmente. Em vez de retornar ao preço anterior de 50 centavos por cem exemplares, Hearst e Pulitzer propuseram um compromisso: manteriam o preço de 60 centavos, mas concordariam em recomprar os jornais não vendidos ao final do dia, eliminando assim o risco de prejuízo total para os jornaleiros. Esta proposta, embora não atendesse integralmente às demandas iniciais, representava uma concessão significativa que melhorava substancialmente as condições econômicas dos jovens vendedores.

A proposta foi levada à assembleia geral de jornaleiros, realizada novamente no City Hall Park em 1º de agosto de 1899. Após acalorados debates, a maioria votou por aceitar o acordo e encerrar a greve. Kid Blink, que inicialmente se opôs a qualquer compromisso menor que a redução total do preço, acabou endossando o acordo como uma vitória parcial mas significativa. No dia seguinte, os jornaleiros voltaram às ruas, anunciando manchetes que, ironicamente, não mencionavam sua própria luta vitoriosa.

O impacto da greve dos jornaleiros de 1899 transcendeu seu resultado imediato. Foi um dos primeiros exemplos bem-sucedidos de organização trabalhista protagonizada por crianças e adolescentes na história americana, demonstrando que mesmo os trabalhadores mais vulneráveis e aparentemente impotentes podiam se unir e desafiar o poder econômico. A greve também contribuiu para a crescente conscientização pública sobre o problema do trabalho infantil, que nas décadas seguintes se tornaria objeto de reformas legislativas importantes.

A história da revolta dos jornaleiros de 1899 permaneceu relativamente obscura durante boa parte do século XX, ofuscada por conflitos trabalhistas maiores e mais violentos. Foi apenas nas últimas décadas que historiadores sociais e do trabalho resgataram este episódio como um exemplo significativo de resistência juvenil e auto-organização dos trabalhadores mais marginalizados da sociedade industrial.

Eu gostaria de terminar este artigo dizendo que tudo acabou primorosamente bem, todos tiveram finais felizes. Não foi bem o caso.

Rumores insidiosos começaram a circular entre os jornaleiros de que os principais líderes da insurgência, Kid Blink e David Simmons, haviam secretamente capitulado às pressões dos magnatas da imprensa. As acusações sugeriam que ambos haviam aceitado suborno dos executivos dos jornais boicotados, em que um dos argumentos foi a observação que Kid Blink e Simmons passaram a se vestir melhor, embora ambos tenham negado. Como as acusações pcontinuavam, Kid Blink e Simmons se afastaram como líderes da revolta.

Simmons, que ocupava a presidência do sindicato improvisado dos jornaleiros, aceitou uma posição menos proeminente como tesoureiro da organização, enquanto Kid Blink assumiu a função significativamente rebaixada de delegado itinerante. Os eventos subsequentes demonstrariam que tais concessões seriam insuficientes, pois, naquela mesma noite, Kid Blink foi abruptamente cercado por um contingente de jornaleiros enfurecidos e perseguido pelas vielas estreitas do Lower East Side, densamente povoado por imigrantes.

O tumulto resultante atraiu a atenção das autoridades policiais que patrulhavam o distrito, e um agente, interpretando erroneamente a situação, presumiu que Kid Blink liderava o grupo de arruaceiros, prontamente detendo-o sob acusação de conduta desordeira.

O desfecho judicial do episódio revelou-se sumário e humilhante: apresentado perante a corte local na manhã seguinte, foi-lhe imposta uma multa pecuniária, representando um fardo financeiro adicional para um jovem cujos rendimentos haviam sido drasticamente reduzidos pela própria greve que ajudara a deflagrar. A indignidade de sua situação foi acentuada quando, ao deixar o edifício do tribunal após sua liberação, deparou-se com um grupo de jornaleiros que o submeteram a uma sessão de escárnio público. Por fim, nenhum teve final feliz, infelizmente.

Em 1910, o censo dos EUA coloca Kid Blink (então com 27 anos) morando com seu irmão e seu primo e empregado como barman em um saloon. Em junho de 1912, Kid Blink é preso e mantido sob fiança de US$1.000 por posse de dinamite, e em julho de 1913, aos 32 anos, Kid Blink morre devido à tuberculose, sendo enterrado no Cemitério Calvary em Queens.

O que aconteceu com David Simmons, não se sabe ao certo. Alguns colocam que ele se envolveu com o crime organizado, mas não se tem certeza disso. O que parece, entretanto, e isso não é fato, mas uma opinião minha, é que os grandes magnatas, com raiva da atuação dos dois, começaram a espalhar mentiras sobre os dois, já que as acusações nunca foram minimamente provadas.

Uma pena, mas nem sempre há uma moral última ou um final feliz no mundo real.


Fontes:

3 comentários em “A Revolta dos Jornaleiros de 1899

  1. Acho que a situação destes jornaleiros não deveria ser muito diferente dos entregadores dos entregadores de aplicativos de hoje.

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    1. Quanto mais entregas os entregadores de aplicativos fazem, mais eles ganham, mas efetivamente eles não compram a comida que entregam. O restaurante que paga ao iFood pelo serviço e prepara a comida. Os jornaleiros compravam os jornais para entregar.

      Ou seja, sua comparação não faz o menor sentido.

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