Carl Sagan estava errado e você também

O maior problema das pessoas é viverem num cantinho afastado da realidade do país e do mundo. Eu tenho certa antipatia quando ficam citando livros a esmo, seja capítulos da Bíblia ou dos livros de Carl Sagan. ALIÁS, vou dizer uma coisinha que vai emputecer muita gente. Carl Sagan acabou sendo um desserviço para toda divulgação científica, ainda que involuntariamente. Não que ele não tenha uma parcela de culpa por causa de uma visão míope que data do século XIX.

Na Inglaterra, em plena a Revolução Industrial, alguns gênios acharam que a população tinha que saber mais sobre os avanços da Ciência. Era como encontro de divulgação científica hoje no Brasil, um encontro para de divulgadores de Ciência para divulgadores de Ciência. Na época, era a mesma coisa. Um monte de cientista mostrando para outros cientistas quem era mais fodão, e a população mesmo não ia, já que tinha que levantar cedo para pegar no (muito) pesado.

Ah, sim, você vai citar Faraday. Bem, ele era auxiliar de encadernador, o que não é lá um trabalho pesado. Ademais ele foi para pedir um emprego a Humphry Davy. Ele conseguiu uma vaga de auxiliar com um salário bosta, mas era melhor que o salário bosta que ele ganhava.

Hoje ainda acham que tem que dar cursos e fazer as pessoas (aquilo que chamam de “afegão médio”, sem a menor ideia do que isso significa) estudarem mais alterará alguma coisa em suas vidas.

Deixe-me explicar o problema com o conceito de “afegão médio”. Quando falam que, no Brasil, quem ganha 2 mil reais é rico, É EXATAMENTE ISSO! Entenda, você mora num país extremamente pobre, mas você não vê esta pobreza, já que fica no seu quadradinho, na sua bolhinha de existência. São 27 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da miséria. Quem ganha cerca de 6 mil reais está entre os 10% mais ricos do país. Então, querido, se você está neste patamar, não queira que a população (aquele afegão médio que você finge que conhece, mas não conhece) tenha os mesmos gostos que você.

“Ah, mas vivemos em uma sociedade absolutamente dependente do conhecimento, na qual quase ninguém entende o que é ciência e tecnologia”

Vivem repetindo este mantra, como algum versículo da Bíblia. É ruim, muito ruim, mas eu vou dar um crédito.

Vamos supor que o cara seja servente de pedreiro. Ele depende da indústria de cimento. Ele realmente precisa saber que cimento é feito de carbonato de cálcio, argila e aditivos? Se você for fazer faxina, precisa saber a estrutura do dodecilbenzeno-sulfonato de sódio? Você aí que usa celular e arroga para si o quanto as pessoas precisam estudar, é capaz de me dizer em nível subatômico o que acontece no chip de silício? É capaz de me dizer para que tem ouro no celular? Você realmente precisa saber disso para abrir o WhatsApp e ver vídeo de seu neto? Não, você é apenas mais um que vive numa bolha querendo mandar na vida de alguém que levantou 4 da manhã, pegou um trem lotadérrimo, para pegar num serviço muito pesado depois de 3 horas de viagem em pé para chegar em casa tarde da noite e ter um pouco de paz e sossego, mas um dos 4 filhos está berrando com dor de ouvido. Se você faz isso e ainda tem disposição para fazer curso, ÓTIMO! O afegão médio não é assim. O afegão médio está contando as moedas para ver se compra feijão no dia seguinte. O afegão médio não tem privada em casa. O afegão médio não sabe o que é saneamento básico e tem uma vala negra na porta de casa. E isso em CAPITAIS, não em Sururu Mirim no interior de Deus me Livre.

Sagan errou e errou muito. Assim como Dawkins, achou que era melhor tirar a crença religiosa das pessoas, mas ele nunca foi num lugar hiperpobre, cuja única esperança das pessoas é morrer e ir pro céu. Você tira isso dessas pessoas e dará o que, em troca? Um apartamento mobiliado num subúrbio (não vou nem falar zona nobre), com um salário de 2 mil reais por mês? Você é capaz de fazer isso para todas as pessoas? Não, você apenas posta em rede social que distribuiria livros de divulgação científica, indo pra casa com sua Moral Superior™ em dia consigo mesmo, não tapinhas nas próprias costas, dormindo numa cama macia e quentinha, com uma geladeira abarrotada, computadores, TV de LED, acesso à internet e pedindo seu jantar no iFood. O pastor ladrão que explora estas pessoas é um crápula, mas você não é muito melhor. Sim, isso mesmo. Não gostou, leia de novo. É pra não gostar mesmo e ver se tomar vergonha nessa puta dessa cara.

Você só terá uma pessoa mais interessada em leitura quando esta pessoa puder viver decentemente, morar decentemente e poder alimentar sua família decentemente. Não estou falando em riqueza, estou falando de não existir mais coisas como a Favela da Maré, mas os políticos não querem isso. Precisam ter a favela e vocês precisam que estas pessoas sejam fodidas para se sentirem melhores, mesmo achando que são pobrinhos e sofredores porque o IPVA do carro importado de vocês está alto.

Sim, Carl Sagan, você errou e seus cursos de pensamento crítico eram ótimos, mas não colocaram comida na mesa do pessoal dos guetos de Nova York. Tinha boa intenção, mas sabemos muito bem um lugar que está cheio delas.

8 comentários em “Carl Sagan estava errado e você também

  1. De certa forma a divulgação científica para adultos sempre será um entretenimento de nicho. Não digo o mesmo para as crianças, porém quando essas crescem em um ambiente sem incentivo familiar, tendo que trabalhar desde a adolescência e indo para o escola apenas para bater ponto e merendar fica difícil acreditar que com essas barreiras qualquer trabalho de divulgação científica será efetivo.

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  2. Creio que o mínimo de ciência seja necessário na vida de todos, principalmente na vida de um afegão médio. Ciência não se resume somente a “química-biologia-física”. Quando me refiro à Ciência pretendo dar espaço às sociais, linguísticas e matemáticas também. Saber o básico faz com que o indivíduo fuja de ser enganado, mal interpretado, não conhecer o seu passado ou da sociedade que o cerca… e também porque não deve misturar água sanitária e vinagre. Ou a importância de aterrar seu chuveiro elétrico. Ou que manga com leite não mata. Ou porque deve tomar as vacinas previstas no calendário do Ministério da Saúde.
    Então sim, a divulgação científica é necessária, mas não do jeito que vem sendo feita hoje. Os maiores culpados provavelmente são os próprios divulgadores (que não levam em conta o nível basal de envolvimento com o conhecimento formal do indivíduo), que em sua formação acabam se distanciando da realidade.
    Um dos meios para alcançarmos esse objetivo talvez seja a Divulgação Científica no âmbito escolar (mas de forma séria… esquece as feiras de ciências anuais!) acompanhando a formação da criança de forma mais contundente. Uma revisão (visando melhor absorção do conteúdo) dos currículos escolares deve ser uma prioridade.

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  3. O sistema de ensino também é bastante equivocado.
    É realmente necessário que TODOS os alunos saibam calcular o vetor do campo magnético dentro de uma espira? Para o aluno que vai seguir carreira na área de exatas é, mas para o aluno que vai fazer dança, qual a necessidade? Ele precisa ter uma noção de Magnetismo (com demonstrações práticas) e pronto.
    O Novo ensino médio tem uma proposta para melhor isso, mas todos sabemos o que vai acontecer.

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  4. Uma coisa que dói na maioria dos divulgadores científicos é aceitarem que divulgação científica é só mais um nicho como qualquer outro. Assim como canais de esquerda, canais de direita, canais de centro, canais da games, canais de beleza, canais de curiosidades, canais de sobrenatural etc.

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