Sempronius Densus, o soldado com bolas de aço

O soldado armado está em posição desafiadora. Mão na espada, o peito inflado retesando-se contra a armadura. As pernas em posição esperando para o combate. Aquele homem tem uma missão e quando todos os covardes, traidores e conspiradores o abandonaram, ele está lá, altivo, poderoso, o queixo trazia a decisão, a vontade, a coragem e a determinação dos mais valorosos guerreiros que alçaram ao cargo de centurião, pois, aquele homem em pé, esperando o derradeiro fim, é um centurião romano; mais do que isso, é um pretoriano, e está ali, para defender o seu protegido até o último suspiro, o nome causa medo, pois seus algozes sabem que não terão uma vitória fácil.

Aquele homem é Sempronius Densus, herdeiro de Hércules, mais corajoso entre mil soldados

Roma sempre teve um talento especial para devorar seus próprios líderes, mas raramente o fez com tanta pressa quanto em 69 E.C. Naquele inverno, o Império parecia um velho anfiteatro em ruínas, ainda imponente, mas cheio de rachaduras, onde qualquer empurrão mal calculado podia fazer tudo desabar. Foi nesse cenário que Servius Sulpicius Galba, um senador de pedigree republicano e temperamento de vinagre envelhecido, descobriu que subir ao poder era apenas metade do problema. A outra metade era continuar vivo.

Galba não nasceu para ser imperador. Nasceu em 3 A.E.C., numa Roma que ainda lembrava vagamente da República e fingia acreditar que o Principado era apenas uma solução provisória. Era membro de uma família patrícia respeitável, mas não brilhante, e construiu sua carreira como tantos outros aristocratas romanos: disciplina rígida, respeito às tradições e uma devoção quase religiosa à ideia de austeridade. Para Galba, desperdiçar dinheiro público era uma forma elegante de corrupção. Para seus contemporâneos, isso o tornava insuportável.

Ainda assim, foi exatamente esse perfil que o tornou útil quando Nero começou a implodir o próprio reinado. Nero, o último dos Júlio-Claudianos, havia transformado o cargo de imperador numa mistura de reality show artístico com governo por improviso. Eliminou o irmão, matou a própria mãe, perseguiu senadores, esvaziou o Tesouro numa magnífica casa e acreditava sinceramente que seu talento musical compensava tudo isso. Quando revoltas começaram a pipocar nas províncias, o verniz de legitimidade simplesmente escorreu pelo ralo.

A rebelião de Caio Júlio Víndex, na Gália, foi menos um levante revolucionário e mais um pedido de socorro institucional. Víndex não queria o trono. Queria alguém que não fosse Nero. Galba, então governador da Hispânia Tarraconense, apareceu como solução razoável: velho demais para fundar uma nova dinastia, rígido o suficiente para agradar ao Senado e distante o bastante do círculo neroniano para parecer uma ruptura moral.

Quando Nero declarou Galba inimigo público e colocou preço em sua cabeça, selou o próprio destino. O Senado, a Guarda Pretoriana e boa parte da elite romana perceberam que o imperador já não mandava nem na própria sobrevivência. Em junho de 68, Nero se matou, lamentando a perda do mundo como plateia (ok, ele foi convidado a se mata, mas com a gentileza do pessoal daquela época).

A bem da verdade, Galba foi catapultado para o púrpura imperial contra a vontade. Ele não se levantou imediatamente como candidato ao trono. As fontes deixam claro que ele hesitou. Tácito afirma que Galba “oscilava entre o medo e a ambição”, o que, traduzido do latim para o comportamento humano, significa que ele sabia muito bem no que estava se metendo, e não podia fazer nada contra forças maiores que ele. Aos 73 anos, doente e sem herdeiros diretos, Galba não tinha ilusões românticas sobre o cargo. Galba assumiu o império e, por um breve momento, pareceu que Roma havia escolhido a sobriedade depois de anos de excessos.

Foi aí que tudo deu errado.

Já que estava no trono imperial, Galba achou que devia se comportar como imperador, confundindo restauração moral com castigo coletivo. Chegou a Roma em outubro decidido a corrigir décadas de corrupção em poucos meses, como se o Império fosse um orçamento doméstico malfeito. Cancelou donativos, puniu soldados, executou oficiais suspeitos de deslealdade e tratou a Guarda Pretoriana como um mal necessário que precisava ser lembrado de seu lugar. Quando disse que preferia recrutar soldados a comprá-los, pode ter soado como Catão reencarnado. Para homens armados, soou como provocação suicida.

Ao seu redor, figuras ambiciosas começavam a fazer contas. O mais atento deles era Marco Sálvio Otão. Antigo amigo de Nero, ex-governador da Lusitânia e oportunista de alto nível, Otão havia apostado tudo em Galba esperando ser recompensado com a sucessão. Era jovem, popular entre os pretorianos e profundamente endividado, combinação perfeita para alguém disposto a transformar o caos em carreira política.

Galba, fiel à sua incapacidade de ler o ambiente, ignorou Otão e adotou Lúcio Calpúrnio Pisão Liciniano como herdeiro. Pisão era um senador respeitável, jovem demais para assustar e austero o suficiente para agradar os moralistas. Também não tinha apoio militar algum, o que tornava sua nomeação uma piada cruel para quem entendia minimamente como Roma funcionava naquele momento.

A adoção foi anunciada no acampamento pretoriano, sem donativo, sem promessas e com um discurso sobre virtude. Foi o equivalente político de fazer um sermão sobre estoicismo em uma taverna cheia de mercenários mal pagos. Otão entendeu o recado: se quisesse o poder, teria que comprá-lo.

Ou tomá-lo!

No dia 15 de janeiro de 69, a farsa estava montada. Rumores cuidadosamente espalhados informaram Galba de que Otão havia sido morto. Convencido de que precisava demonstrar controle, o imperador decidiu ir ao Fórum. Velho, doente e alheio ao fato de que Roma já havia decidido seu destino, foi carregado em liteira pelas ruas frias da cidade. A Guarda Pretoriana não apareceu. O povo observou em silêncio, como sempre fazia quando não sabia quem venceria, e como um tirano a mais ou a menos não faz diferença, estavam só esperando o que aconteceria a seguir.

Enquanto isso, Otão era aclamado imperador no acampamento pretoriano por pouco mais de vinte soldados. Vinte e três homens, segundo as fontes. Foi tudo o que bastou.

Quando os assassinos atacaram, ninguém se mexeu. Exceto um.

Sempronius Densus era um centurião, nada além disso. Não um general célebre, não um senador, não um herói esculpido para estátuas. Era um oficial intermediário, desses que mantinham o exército funcionando à base de disciplina rígida, ordens secas, gritos ocasionais e a inevitável vara de vinha. Sua missão, naquele momento, era simples e ingrata: proteger Pisão, e as fontes antigas, coerentes com a indiferença habitual de Roma por homens como ele, mostram-se estranhamente econômicas a seu respeito. Não dizem onde nasceu, de que cidade veio ou quem foi seu pai. Tudo o que sabemos vem do cargo que ocupava. Densus era um centurião da Guarda Pretoriana, cidadão romano, veterano experiente, alguém que havia atravessado campanhas, imperadores e punições suficientes para aprender que, em Roma, a sobrevivência dependia menos de glória e mais de obediência, rotina e resistência silenciosa. Antes daquele instante, era apenas mais uma peça anônima do maquinário imperial, essencial para que tudo funcionasse e descartável o bastante para jamais ser lembrado.

Ainda assim, o próprio nome oferece uma pista, ainda que vaga. “Sempronius” indica sua ligação à gens Sempronia, uma das mais antigas de Roma, tradicionalmente associada à Itália central. Isso, porém, não o transforma automaticamente em patrício nem em romano de sangue puro, uma obsessão que já soava antiquada no século I. Naquele tempo, muitos soldados carregavam nomina veneráveis como herança distante, resultado de cidadania concedida ou fruto de manumissões antigas, sobretudo nas províncias onde Roma havia ensinado latim, disciplina e lealdade com eficiência implacável. Densus, portanto, era menos um símbolo da velha aristocracia e mais um produto acabado do próprio Império, romanizado o suficiente para portar um nome antigo e disciplinado o bastante para ainda levá-lo a sério.

Aquele homem tinha uma missão e não ia trair o seu comandante supremo. Ele tinha as suas ordens e não abandonaria o posto, a despeito do que covardes e traidores fizessem. Quando o caos explodiu, Densus fez algo que ninguém mais fez naquele dia: levou o juramento a sério!

O Centurião com C Maiúsculo provou ter bolas de aço com o do seu gládio; ergueu a sua vara, gritou ordens, desembainhou a espada e avançou sozinho contra homens armados. Não porque acreditasse que venceria, mas porque entendeu que aquela era a linha final entre a ordem e o colapso. Plutarco diz que lutou por longo tempo. Tácito afirma que chamou deliberadamente a atenção dos assassinos para dar a Pisão uma chance. As versões divergem nos detalhes, mas concordam no essencial: Densus sabia que morreria e avançou mesmo assim.

Galba foi arrancado da liteira e morto perto do Lacus Curtius. Pisão foi caçado e executado pouco depois. Densus caiu lutando até o fim, golpeado até não conseguir mais se manter de pé. Em meio a milhares de pessoas, soldados e senadores, apenas um homem agiu como se o Império ainda fosse algo a ser defendido.

Otão venceu, mas venceu vazio. Governou por três meses, perdeu para Vitélio e se matou para evitar (mais) uma guerra civil. Vitélio cairia meses depois. Só Vespasiano conseguiria, enfim, estabilizar Roma. O ano de 69 entraria para a história como o momento em que todos aprenderam a lição mais perigosa de todas: o trono podia ser tomado à força.

Galba virou nota de rodapé, Otão um conspirador fracassado, Vitélio uma caricatura de excessos. Mas Sempronius Densus ficou. Não porque venceu, mas porque fez o que ninguém mais fez quando fazer a coisa certa era completamente inútil. O Centurião com maior coragem que uma coorte inteira enfrentou outros soldados como ele, soldados que por um tempo temeram a sua fúria, vacilaram contra o Centurião Imortal, pois Letum, a Morte Personificada erguem uma das sobrancelhas ao ver o que um homem com determinação é capaz de fazer.

O guerreiro que valia 500 centuriões, mil senadores, dez mil conspiracionistas caiu, ferido mortalmente, esvaindo em sangue até que seu bravo coração parasse de bater. E para o Elisium aquele homem foi levado e lá foi saudado entre guerreiros antigos que haviam caído em batalha enfrentando terríveis provações.

Roma caiu muitas vezes, mas raramente de forma tão reveladora. Naquele dia, não foi a espada que matou o Império, e sim a covardia coletiva. Densus apenas se recusou a participar dela; e, às vezes, como lembram Plutarco e Tácito, isso basta para atravessar dois milênios com o nome intacto.

Às vezes, um homem basta.

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