A Batalha das Batatas

Se a guerra é o lugar da tragédia, às vezes ela também é o palco de comédia involuntária. Ou melhor: improvisada, desesperada e, por que não, nutritiva. O episódio que vamos narrar aqui tem tudo o que um bom roteiro de Hollywood evitaria por parecer inverossímil demais; mas aconteceu. Na madrugada de 5 de abril de 1943, nas águas inquietas das Ilhas Salomão, um contratorpedeiro americano encontrou um submarino japonês e, sem saber o que fazer, fez o impensável: atacou com o que tinha à mão, e este foi o dia em que o USS O’Bannon derrotou um submarino japonês com… tubérculos.

Antes de mais nada, um pouco de contexto, porque nem só de pão vive o homem e não é só batata que alimenta uma história de guerra; e antes de chegarmos ao momento agronômico do combate, vale entender em que ponto da guerra estávamos.

A Campanha das Ilhas Salomão (1942–1945) foi um dos grandes tabuleiros da Guerra do Pacífico. Depois de Pearl Harbor, os japoneses se achavam por cima da carne assada (carne seca com batata não fica legal e farei todo tipo de referência, piadinhas e metáforas culinárias ao meu alcance. Não gostou, vá ler um livro sério de História. Aqui a gente ensina se divertindo); dessa forma, nossos amigos nipônicos saíram tocando o terror, ocupando tudo que pudessem no Pacífico Sul, e os americanos, ainda se refazendo do golpe, mandaram um “Não no meu relógio!”.

A ilha de Guadalcanal se tornou o nome-código para “Inferno na Terra” entre 1942 e 1943, e isso já dá um vislumbre de como as coisas estavam tranquilas por aqueles recantos. Ali, os combates navais eram diários, noturnos, e cheios de surpresas desagradáveis, como torpedos inesperados, bombardeios aéreos e minas oportunamente colocadas. Uma espécie de Kinder Ovo From Hell.

E foi nesse cenário que surgiu a necessidade dos famosos contratorpedeiros da Classe Fletcher — verdadeiros canivetes suíços flutuantes: rápidos, bem armados, versáteis, e prontos para tudo. O USS O’Bannon (DD-450) era um desses. 376 pés (114,6 metros em unidade de gente) de casco, 3.000 toneladas de diplomacia naval, capaz de navegar a uma velocidade máxima de 35 nós (ou 65 km/h em unidade de gente). Era uma preciosidade mortal trazendo cinco canhões de 5 polegadas (12,7cm em unidade de gente),  10 tubos de torpedo de 21 polegadas (53,34 cm em unidade de gente) para torpedos Mark 15, cargas de profundidade e um time a bordo que sabia improvisar.

 

O O’Bannon teve dois comandantes em momentos cruciais:

  • O primeiro foi Edwin Richard Wilkinson, formado em Anápolis em 1924 e mais tarde contra-almirante. Foi ele quem comandou o navio no seu batismo de fogo contra ninguém menos que o couraçado japonês Hiei, na Batalha Naval de Guadalcanal, em novembro de 1942. Ganhou a Navy Cross, a mais alta honraria que se pode dar a quem não saiu voando em chamas.
  • Depois veio Donald J. MacDonald, que havia sido o imediato de Wilkinson e conhecia o navio melhor que os bolsos da própria farda. Assumiu o comando em plena campanha das Salomão e estaria à frente no dia fatídico em que o cardápio da guerra naval ganharia uma guarnição inusitada.

A madrugada em que tudo deu (quase) errado.

Era noite em 5 de abril de 1943. Uma noite sem lua. Chovia de vez em quando. Ninguém enxergava um palmo à frente do radar. O O’Bannon voltava de mais uma patrulha no temido “Slot”, um corredor aquático tão estreito e letal quanto o nome sugere em companhia de outro contratorpedeiro: o USS Strong. Foi aí que o contratorpedeiro USS Strong detectou algo a pouco mais de 6 km: um eco estranho, que não combinava com navios de superfície. Os sistemas não mentiam: era um submarino. com um submarino japonês na superfície a uma distância de 8.400 metros.

A bordo do O’Bannon, o oficial Carl Keifer começou a rastrear o contato. O comandante MacDonald ordenou aproximação. O contato era o submarino japonês RO-34, comandado pelo Tenente Rikichi Tomita. Um bicho-papão de quase 100 metros, armado com torpedos, canhão de 3 polegadas, e provavelmente em missão de colocar minas, espiar comboios ou  mandar os malditos gaijins para as profundezas, e se dependesse do comandante Tomita, eles fariam tudo de uma só vez. O RO-34 estava operando ali fazia meses e conhecia bem a vizinhança.

O RO-34 estava na superfície a 40 milhas náuticas (74 km em unidade de gente) das Ilhas Russel. Era um submarino da classe Kaichū com 955 toneladas de deslocamento e cerca de 239 pés de comprimento (72,85 metros em unidade de gente) e velocidade enquanto submerso de 3,5 nós (6,5 km/h em unidade de gente). Estava armado com 4 tubos de torpedos de proa de 21 polegadas (53,3 cm em unidade de gente), canhão antiaéreo de 3 polegadas (7,62 cm em unidade de gente).

O O’Bannon avançou para fechar o contato e teve o RO-34 à vista às 2h30min. A aproximação foi rápida. E quando o O’Bannon viu o submarino, a menos de 100 metros de distância, surgiu a primeira ideia insana: atropelar o inimigo. Mas um detalhe surgiu: e se o submarino fosse também um lançador de minas (as que estragam a sua vida fazendo kabum, não outros tipos de minas que destroem a sua vida financeira)? Alguém mencionou essa possibilidade e, de repente, a manobra parecia um pouco suicida.

O momento “ficamos lado a lado e agora?”

Ao desviar, o O’Bannon acabou emparelhado com o RO-34. Perto. Muito perto. Perto o suficiente para trocar olhares, gestos e talvez até receitas. O problema é que a artilharia principal do O’Bannon – seus potentes canhões de 5 polegadas – não podia baixar o suficiente para atirar tão próximo. Os torpedos? Precisavam de distância para armar. As cargas de profundidade? Úteis só para alvos submersos. O navio de guerra mais moderno da frota estava, temporariamente, com as garras amarradas.

E foi nesse momento que a criatividade marinheira americana floresceu da forma mais inesperada: com batatas.

A carga mais explosiva do Maine

Com a proximidade do inimigo, marinheiros em pânico começaram a jogar o que tinham à mão no convés, e o que tinham eram sacos de batatas do Maine, fresquinhas, prontas para virar purê ou lenda.

As batatas começaram a chover sobre o RO-34. O impacto fez um barulho oco contra o casco metálico. Os japoneses, sem entender o que estava acontecendo, entraram em pânico. Supuseram que estivessem sendo bombardeados com granadas de mão – o som era semelhante – e começaram a correr, abandonar postos e se proteger.

Isso deu ao O’Bannon os segundos preciosos para manobrar e se afastar, voltando à distância de tiro segura. Quando os canhões puderam finalmente ser usados, não houve economia de pólvora, e toneladas de democracia caíram sobre os japas.

Agora, aqui entra o dilema histórico: o próprio comandante MacDonald disse, mais tarde, que nenhuma batata foi realmente lançada. Mas aí já era tarde. A história já havia circulado pela imprensa americana e virado anedota oficial. Uma lenda naval nasceu, e com ela, um mito: o contratorpedeiro que enfrentou um submarino japonês com vegetais.

E o RO-34? Bem, o submarino conseguiu escapar… por um momento. Dois dias depois, em 7 de abril, foi finalmente destruído pelo USS Strong. Mas o impacto do episódio se deu na forma como mostrou ao comando naval americano que a improvisação e a iniciativa no calor do momento valiam tanto quanto qualquer manual tático.

Uma batata bronzeada

A história não acabou no mar. A Associação de Produtores de Batata do Maine – sempre atenta à publicidade gratuita – presenteou o O’Bannon com uma placa de bronze comemorativa. E lá ficou, no navio, como lembrança da criatividade sob pressão e do poder simbólico de um tubérculo em guerra.

O navio também colecionou condecorações mais sérias: 17 estrelas de batalha na Segunda Guerra, mais três na Guerra da Coreia, uma Presidential Unit Citation e, talvez o mais incrível: nenhum tripulante do O’Bannon recebeu um Purple Heart (uma condecoração concedida a feridos ou mortos em combate) durante toda a guerra. Sorte? Disciplina? Batata sagrada? Talvez tudo junto. Foi por isso que ele ganhou o apelido de “Lucky O”.

Uma lição em forma de batata

O episódio das batatas não foi apenas uma nota de rodapé bizarra; foi um estudo de caso sobre liderança, coragem, improviso e o elemento humano em guerra. Num conflito cheio de radares, códigos, máquinas e protocolos, o que fez a diferença naquele instante foi um marinheiro olhando ao redor e pensando: “Bom… temos batatas…”

A Guerra do Pacífico teve batalhas colossais, mas poucas tão deliciosamente absurdas quanto essa. E é por isso que a Batalha das Batatas continua viva, não só nos anais (Êpa!) da história naval, mas no imaginário daqueles que sabem que, na hora do aperto, criatividade pode ser mais letal do que qualquer torpedo.

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