O que é língua?

Nos textos anteriores da nossa pequena série introdutória aos estudos da linguagem, eu saí pela tangente no que diz respeito à definição de língua. Eu disse que língua é o "objeto" de estudo da linguística (aspas porque a coisa é mais complicada que isso; como eu disse na Introdução, a gente recorta várias coisas diferentes dentro do supra-fenômeno língua e cada um desses pedacinhos é o objeto de estudo de uma corrente de estudo diferente) e eu também disse que língua deveria ser mais associado à fala e não à escrita.

Pois, agora, eu vou me embrenhar no espinheiro e falar sobre como é difícil pra caramba definir o que raios é língua.

Segundo o dicionário Aulete digital, a definição de língua é a que segue (só as definições que importam):

3. Ling. Sistema de comunicação e expressão verbal de um povo, nação, país etc., que permite aos usuários expressar pensamentos, desejos e emoções; IDIOMA 4. O idioma vernáculo.

Num trabalho de faculdade, em que eu tinha que produzir um glossário de termos da sintaxe gerativa (fica pra uma próxima), eu defini língua assim:

Língua: não há uma definição precisa, já que essa definição depende de outros aspectos políticos, geográficos, culturais. Mas uma língua pode ser definida, grosso modo, como um código produzido a partir de uma configuração específica da gramática universal (ver abaixo) que é utilizado na comunicação entre um grupo de falantes.

Max Weinreich, um sociolinguista famoso, definiu língua como "um dialeto com exército e marinha." E tem outras mil possibilidades.

Língua é um negócio MUITO difícil de definir porque é uma coisa complexa e dependente de várias coisas. A gente sabe o principal: língua é um sistema simbólico (sons ou símbolos gráficos, no caso da escrita, que representam alguma coisa) que a gente usa para expressão e comunicação. Mas como definir até onde termina um sistema e começa outro? Que tipos de diferenças são suficientes para separar os sistemas?

Existe um critério interessante na linguística chamado critério de inteligibilidade. Basicamente, segundo esse critério, línguas que são inteligíveis entre si são classificadas como dialetos (= variante regional) da mesma língua; e se não forem inteligíveis são línguas diferentes.

Na prática isso não funciona tão bem assim…

As línguas da Europa setentrional, ou seja, Noruega, Suécia, Dinamarca, são todas relativamente inteligíveis entre si. Um sueco consegue conversar com um dinamarquês de boa, mais ou menos como nós conseguimos conversar com alguém de Angola ou Moçambique ou Portugal (se for falante de português, claro). Entretanto,  por motivos políticos (e é por isso que pus a definição do Weinreich ali em cima) são consideradas línguas diferentes, com sistemas de escrita diferentes.

Por outro lado, na China você tem "dialetos" (no sentido de variante regional) que são bem diferentes entre si. Alguém que fala mandarim dificilmente entende alguém que fala cantonês, e vice-versa. A estrutura linguística das línguas é bem diferente (por exemplo, a quantidade de tons do mandarim é menor que do cantonês). Entretanto, também por motivos políticos, são consideradas variantes da mesma língua – chinês – e compartilham o mesmo sistema de escrita.

Os dois casos são diametralmente opostos: na Europa setentrional os países querem assumir independência, inclusive de identidade (e isso tem raízes históricas) e usam a questão linguística como um jeito de fazer isso. Já na China, um país enorme que quer homogeneizar a cultura dentro do território, assumir que é tudo dialeto, só questão de variação regional, e uniformizar a língua (todo mundo agora aprende mandarim na escola) é uma maneira de uniformizar o povo e sua identidade.

Uma coisa parecida com a China ocorre na Europa também, sobretudo França e Itália: línguas bem diferentes são identificadas como apenas "variantes regionais" da língua "padrão" (respectivamente, o francês da região de Paris e o italiano florentino, da região da Toscana).

Além dessa influência toda de política e identidade cultural, também temos problemas na hora de definir critérios linguísticos. Esse critério de inteligibilidade tem outros pontos furados: como a gente define o que é inteligibilidade? Que "porcentagem" da língua você precisa entender para definir que é inteligível?

Por exemplo, na questão das línguas da Europa setentrional, fizeram testes de inteligibilidade (sorry, sem fonte, não consegui achar) com falantes suecos, noruegueses e dinamarqueses. O resultado foi que a questão cultural interferia nos testes. As pessoas achavam que não eram capazes de entender a língua do país pelo qual nutriam antipatia, e por aí vai.

Se você for analisar a estrutura das línguas, vai ter problemas também. Por exemplo, o nosso português e o português europeu são a mesma língua, só variantes regionais, certo? Mas se você for analisar a fundo, são línguas muito diferentes. Em termos técnicos: a gente não pode colocar o sujeito depois do verbo, do lado de lá eles fazem isso o tempo todo.

(1) Maria comeu o quê? (Boa no português brasileiro, PB)

(2) O que comeu Maria? (Boa no português europeu, PE)

Reza a lenda que, numa palestra pra linguísticos, uma professora portuguesa soltou essa frase (2) e todos os brasileiros (sempre nós) soltaram risadinhas. Isso porque a nossa primeira impressão ao ver a frase (2) é interpretar esse "o que" como o sujeito da frase, não o objeto. As mentes mais impuras já estão devaneando sobre como "o que" comeu a Maria e por aí vai… Mas pros portugueses (e alguns africanos falantes de português) a frase (2) é exatamente igual à frase (1).

Ainda tem outras diferenças, como a colocação de pronomes. A chata da gramática tradicional, que parou no tempo, insiste que devemos sempre colocar os pronomes fracos (-o, -a, -lhe, etc) depois do verbo:

(3) Dê-me isso. (Boa no PE)

(4) Me dá isso. (Boa no PB)

Só que a gente sempre coloca antes. Em Portugal eles ainda colocam depois, igual tá na GT, mas a gente já parou de fazer isso há uns 200 anos (e a GT ainda insiste, esses dinossauros chatos). Tem até um poeminha do Oswald de Andrade. Voltando ao texto passado, não é errado falar me dá um cigarro. A gente fala todos os dias. Só é diferente.

Dependendo de como você tá analisando a coisa, esses critérios de diferenças entre colocação de palavras e pronomes, diferenças de sons usados na língua (sistema fonológico), diferenças de criação de palavras, você pode classificar as línguas como sendo dialetos da mesma língua ou línguas diferentes. Na minha área de pesquisa, a sintaxe formal, a gente considera que PB e PE são línguas diferentes. A gente faz isso porque consideramos que as diferenças sintáticas (ou seja, de estrutura de sentença) são diferentes o suficiente para a gente separar uma da outra. Se não me engano, na área de fonologia também há diferenças suficientes para se classificar como línguas diferentes também. Mas o pessoal que trabalha com discurso não costuma fazer diferença entre uma e outra, e a maioria das coisas que você vai achar por aí vai dizer que são a mesma língua, principalmente com o Acordo Ortográfico recente que uniformizou a escrita de todos os países de língua portuguesa e tal.

Então, ainda acho que a minha definição é razoável: sistema simbólico dependente de aspectos culturais e políticos e geográficos, que a usa para se comunicar e se expressar (a questão da gramática universal fica pro artigo em que eu falar da sintaxe gerativa e do FoxP2).

Se você quiser saber mais sobre isso, o Curso de Linguística Geral do Saussure foi um dos primeiros a lidar com a questão do que é a língua, principalmente o caráter simbólico, e como se estudar a língua – aliás, é o livro fundador da linguística moderna. Não é um livro difícil de ler nem exige muito background. Recomendo a todos que se interessarem pelo assunto. Esse link aqui tem o livro completo em português. De nada.

3 comentários em “O que é língua?

  1. Os criadores de software não querem nem saber se é a mesma língua. Basta mexer num desses celulares chineses com tradução automática pro português europeu, que parece se mais ininteligível do que o inglês.

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