Hoje de manhã eu estava tomando um café e vi um dos meus alunos comprando o todo amado e delicioso salgado nosso de cada dia, cheio de gordura trans e totalmente avesso ao que seria considerado um lanche saudável. Bem, o café não estava com aparência muito saudável também. Vi o referido aluno abrir um daqueles envelopinhos de catchup, deitando o molho no salgado que ia ser devidamente saboreado.
– Muito melhor que as garrafas, não é? – eu disse.
– Pois é – ele respondeu. – Com o da garrafa, a gente tem que ficar sacudindo um bocado para que ele possa sair.
– É verdade – respondi. Então, perguntei: – Qual é a semelhança entre uma garrafa de catchup, um pouco de Maizena em água e um colete à prova de balas?
Como podem imaginar, ele me olhou como se eu estivesse completamente louco, mas não era sua culpa. Está na hora de abrirem o Livro dos por quês.
Estamos acostumados com o mais simples dos líquidos: a água. Podemos colocá-la num copo e movê-la para outro copo sem problemas. Podemos fazer isso milhares e milhares de vezes e a água sempre se comportará da mesma forma. Se eu levá-la a um congelador, a água se solidificará a 0 ºC (zero grau celsius). Se eu colocá-la numa panela e levar o conjunto ao fogo, a água entrará em ebulição a 100 ºC (desde que esteja ao nível do mar). Podemos dar socos na água e o máximo que acontecerá é espirrar água para tudo que é lado.
Dessa forma, chamamos a água de fluido newtoniano, isto é, um fluido em que cada componente da tensão cisalhante é proporcional ao gradiente de velocidade na direção normal a essa componente. Simples, não é? Este seria o ponto em que eu simplesmente poderia parar aqui e recomendar pesquisar mais no Google; mas o Livro dos por quês se propõe a explicar as mais toscas explicações que, em última análise, não explicam nada.
Deixem a água escorrer por uma canaleta. Ela escoa bem, não é? Se eu usar óleo de soja, verei que ele escorre mais devagar e se eu usar mel, a velocidade com que ele escorregará pela mesma canaleta será muito menor, demorando muito mais tempo que a água; é o que caracteriza a viscosidade de um líquido. Assim, quando as moléculas de uma determinada substância são transportadas de um lugar para o outro, entram em contato com a superfície. A força de atrito entre o s dois líquidos fará com que este ou aquele líquido demore mais ou menos para escoar. Quanto mais atrito, mais devagar será o escoamento. Podemos ilustrar isso com uma pessoa de sapato novinho correndo por uma sala com o chão encerado. se a pessoa parar de repente, o sapato vai deslizar (e isso será divertido). Com sapatos de solado de borracha (como tênis, por exemplo), este “escorregão” será menor. Se a pessoa estiver apenas de meia, conseguirá escorregar bem mais (e provavelmente vai cair, quebrando um braço).
É o atrito que faz com que os carros consigam fazer curvas, enquanto que aqueles que estiverem com pneus carecas tenderão a deslizar pro lado, dado o atrito muito menor.
Em nível microscópico, o que acontece é a mesma coisa. As moléculas do líquido usarão a canaleta como “pista de corrida”, onde cada uma das moléculas será um carro de fórmula 1. Os líquidos que apresentarem maior viscosidade serão aqueles que sofrerão maior força de atrito, o que fará com que suas moléculas deslizem com mais dificuldade. A viscosidade é, portanto, uma característica de muitos líquidos, pondendo até servir como constante física. Só que é regra que todas as regras possuem exceções. Com os fluidos não-newtonianos, as coisas não são tão simples assim.
Com os fluidos não-newtonianos algumas coisas bizarras acontecem. Se dermos um soco na superfície da água, como dito, o máximo que conseguiremos é espargir água (e molhar o otário que estiver ao nosso lado observando). Já no caso de um fluido não-newtoniano, coisas bem diferentes acontecem: sua viscosidade pode ser ampliada ou reduzida. Isso significa dizer que tal fluido poderá se tornar tão viscoso que se comportará como sólido, ou menos viscoso que parecerá água pura. Um exemplo de fluido cuja viscosidade aumenta ao se exercer força mecânica sobre ele? Bem, façamos o que eu chamo de The Jesus Experiment:
Como puderam ver, basta que se cesse a aplicação da força mecânica (o mané que ficou correndo pra lá e pra cá, que o fluido começa a se comportar como esperávamos que se comportasse e o distinto rapaz de óculos afunda tranquilamente que nem o Titanic. Se você quiser fazer esta experiência em casa, junte duas partes de amido de milho (Maizena) e uma parte de água, podendo até “esculpir” formas na mistura (que se desfará assim que cessar a força aplicada). Vídeo no YouTube sobre isso é o que não falta.
Com o catchup acontece justamente o contrário. Ele fica lá na dele, paradão e sua viscosidade tende a aumentar. Quando você vira a garrafa, o preguiçoso se recusa a sair, mas quando você sacode a garrafa, você está aplicando força mecânica sobre o fluido, fazendo com que sua viscosidade comece a diminuir, podendo escoar até o nosso fantástico e delicioso hambúrguer.
O estudo sobre este tipo de fluido é importante, pois durante a perfuração de poços de petróleo frequentemente encontram-se lamas cuja viscosidade diminui mediante a ação da perfuratriz. Estes são os chamados Fluidos (ou Plásticos) de Bingham. Além disso, pesquisadores estudam alternativas ao atual sistema de coletes à prova de balas. Usando uma camada de um fluido não-newtoniano, ao receber o impacto de um projétil, o fluido não-newtoniano irá aumentar a viscosidade imediatamente, protegendo o a pessoa. A vantagem principal deste tipo de colete é que seria mais leve e confortável que os atuais modelos de kevlar, mas dificilmente seriam feitos de Maizena.
Não tive tempo de explicar tudo isso ao distinto aluno. De repente (e eu sei que estarei sendo muito otimista), ele pesquisará na internet sobre isso, podendo inclusive chegar ao Livro dos por quês.
Salvo engano, os Mythbusters já tentaram construir um colete à prova de balas usando fluidos não-newtonianos; pelo que me lembro, Adam tentou fazer um usando justamente a famosa mistura de amido de milho com água, o que resultou num retumbante fracasso.
Fora isso, a maior aplicação que vemos no dia-a-dia para os fluidos não-newtonianos é justamente a mostrada no vídeo: atração de programas de auditório.
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Na prospecção de petróleo, eles são muito importantes.
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@André, @André, Sabe onde eu arranjo um Sarc Mark? Comentar num site sobre ciência e ceticismo sem isso fica meio complicado. Além do mais, você se refere a isso no finalzinho do texto, eu não ia deixar isso escapar tão fácil assim.
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As garrafas de catchup:
Com o aumento da viscosidade, aumenta a tensão superficial e também há maior adsorção entre as moléculas do fluido e o recipiente e aumenta a densidade, oferecendo maior resistência a pressão.
André faça a necessária correção se for preciso, estou aproveitando o espaço para apreender um pouco mais.
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Troque “adsorção” por “interação mecânica” ou “atrito” e pronto. Qdo vc fala “adsorção”, vc infere que o catchup absorve (em termos genéricos) o plastico do recipiente. Exemplo: carbono finamente dividido na geladeira adsorve partículas suspensas no ar lá dentro, fazendo com que a geladeira não fique com mau cheiro (sim, aquele papo de nossas avós de colocar um carvão na geladeira pra ela não ficar com cheiro é verdade, apesar delas não saberem porque).
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@André,
Valeu. Muito obrigado.
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Nossa! Estudei sobre esses tais fluidos numas três disciplinas… mas essa explicação foi bem melhor que muitas que ouvi! :mrgreen:
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