Eu sinto o peso…

Estou aqui sentado, à minha janela. Faz tempo, muito tempo, que não falo da minha janela. Não a abri pois a massa de ar infernal que tá lá fora deixa impraticável, mas olho pela janela. Estou inquieto e não sei por quê. Não sei se pela falta de decorações ou a falta do chamado “espírito natalino”. Não sei. Algo de errado não está certo.

Minha vasta idade trás fantasmas, mas não os de Scrooge, mas algo que eu considero mais assustador: bons fantasmas trazendo boas lembranças. Mas assim como as más lembranças, boas lembranças machucam. Lembranças machucam.

Em 2021 eu escrevi que o ato de comemorar é um hábito de pessoas antigas e elas… bem, as pessoas morrem. Morrem e quem ficou não mais se interessa pelos hábitos de outrora. Estamos ficando sem tradições, sem costumes, sem cultura. Estamos caindo na irrelevância, na desmemoriada existência, e nem os vídeos no YouTube e tik toks da vida irão suprir isso. Aos poucos, as luzes de Natal estão se apagando, no sentido real e metafórico.

Minha mulher vem até mim e pergunta o que eu tenho. Respondo um lacônico “nada”, com um meio sorriso. Ela sabe que não é nada. Passa a mão pelo meu ombro e me dá um singelo beijo. Ela sai, não há muito o que ser dito, mas ela sabe das coisas. Esposas sempre sabem.

O mal das lembranças é que são flashes de momentos e esses momentos são únicos. Você nunca segurará seu filho recém-nascido pela primeira vez de novo. Você nunca terá os momentos de outrora com seus amigos, pois aqueles momentos são aqueles momentos. Mesmo que tiver outros, serão outros. E quando você vê seus amigos envelhecendo com você, você se apercebe disso. Os amigos que envelhecem mas não perto de você e os que não envelhecerão mais dão uma tônica triste.

Olhei pra minha árvore decorada e suspiro. Há quantos anos, décadas eu tenho esta árvore? Não me lembro mais. A idade cobra certos preços. Alegam que traz a experiência, mas o que se faz com ela? Olho de novo pra rua. Ela está vazia. Ouço alguém trazendo um delivery seja de comida, farmácia ou algum outro treco que não sei o que é. A pessoa sai, fica por uns momentos (dando o código, provavelmente) e entra de novo com sua entrega.

Silêncio.

Não sou pessoa afeita ao barulho, mas silêncio é diferente de não ter sons.

Um par de mãos me entregam algo de comer e beber. Eu como, eu bebo. Não sinto o gosto; não por não estar saboroso, eu sei que está. Mas os pensamentos distraem as sensações. Isso é ruim. Eu gostaria de não estar desse jeito.

O silêncio.

As casas que nessa época eram risos e sons agora amargam no fel do silêncio. Familiares e amigos que se foram. Para sempre. Alguns se foram, mas estão vivos e bem, o que me alegra, mas é só isso. Uma certeza não compravada, porque o mundo dá votas e mesmo que as pessoas fiquem paradas, elas se movem.

Meu coração está fraco, não é como antes. Antes era forte e aguentava decepções, desfaçatez ou apenas… o silêncio. Hoje ele não aguenta muito. A nuvem escura passa por nossas cabeças, apesar do imenso calor, e não é uma nuvem de chuva, é outro tipo de escuridão. Eu fecho os olhos e penso no que eu não gostaria de pensar, mas ele está ali, o silêncio quebrado pelo sussurro, o hálito frígido que diz que todas as coisas morrem, mas a morte em vida vem antes para pessoas de minha idade.

Os músculos não são mais os mesmos, a pele não é mais a mesma. Aracne teceu fios brancos entre meus cabelos e bolsas se formaram sob meus olhos. As boas lembranças se tornam sarcásticas açoitando minha mente o que eu era, o que fui, o que eu fiz um dia. Dias que não voltarão. O prato e copo que estavam nas minhas mãos foi delicadamente removidos; eu não vi. Muitas coisas esta mente cansada não vê mais, vivendo num limbo de sonho prestes à não existência. Sim, nós morremos em vida antes da passagem definitiva.

O silêncio. Ele é quebrado. O telefone?

– Alô, pai? Desce aqui rapidão para dar uma ajuda. Exagerei em trazer umas coisas pra casa.

Não há nuvens escuras e o mundo se acende como uma imensa Árvore de Natal gigantesca. A música aparece e notas musicais brilhantes volitam pelo ar, e ao carregar o monte de coisas eu o sinto de novo: o peso. A mesma sensação de peso ao segurar meu bebê pela primeira vez. O mundo faz mais sentido. Eu sou capaz de sentir de novo, o cheiro daquela criança que não é mais criança mas sempre será uma criança. O toque daquele cabelo cacheado cuja mecha sempre cai desajeitadamente sobre o rosto.

Eu fecho os olhos e agradeço a boa vida e penso naqueles que passaram por mim e deixaram as boas lembranças. Elas entristecem, claro, mas é uma marca dos bons momentos que tivemos e que marcaram a ponto de virarem memórias. Que todos os meus amigos que ainda estejam vivos se sintam bem e com saúde, apesar que provavelmente alguns não estarão, mas meus bons pensamentos vão até eles e, quem sabe, isso os ajude, quando eles também se lembrarem de mim e olharem ao redor e verem que nada acabou ainda, que só se morre em vida se você se deixar levar.

A casa está com sons de novo, vozes animadas conversando, as lágrimas escorrendo se converteram em sorriso e estou aqui e bem, o mundo está muito mais colorido, meus braços fazem a pose de quando segurei meu bebê pela primeira vez; sempre será a primeira vez, nunca a segunda, porque eu nunca deixe de segurar aquele bebê ao longo de todos estes anos. As tradições morrem se você as deixar morrerem, e eu não permitirei, não importando se eu serei o único. É meu trabalho e ele será cumprido.

Pratos são trocados e eu sinto o sabor de tudo, o sabor do alimento, da bebida, da vida e, óbvio, do Natal.

Feliz Natal a todos.

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