Os alcalóides
O termo “alcalóide” designa substâncias de origem vegetal, nitrogenadas, que normalmente apresentam atividade biológica. Extratos de plantas contendo alcalóides são empregados como medicamentos, venenos e poções “mágicas” desde os primórdios da civilização. Assim, é difícil estabelecer a origem correta da descoberta desse tipo de substância. Registros indicam que o ópio, por exemplo, era usado pelos sumérios desde 4 mil anos antes da era cristã, por suas propriedades soporíficas e analgésicas. Os extratos vegetais, no entanto, contêm muitas substâncias. O isolamento de compostos orgânicos (principalmente ácidos e bases) a partir desses extratos só foi iniciado no século 19. É dessa época, por exemplo, o isolamento da morfina (em 1806), da quinina (em 1820) e da estricnina (também em 1820). Mais tarde, as bases orgânicas encontradas nos vegetais ganharam o nome de alcalóides.
A quinina, por exemplo, é extraída da casca de diferentes espécies de árvores da família das rubiáceas (a mesma do cafeeiro) e do gênero Cinchona, nativas nas regiões tropicais da América do Sul. Foi isolada pelos químicos franceses Pierre J. Pelletier (1788-1842) e Joseph B. Caventou (1795-1877), em Paris. Sua eficácia no tratamento da malária foi demonstrada, ainda no século 19, pelo médico militar francês François Maillot (1804-1894).
Com o pau-pereira, a história não foi diferente. Como a casca da quina, a casca do pau-pereira era empregada pelos indígenas no tratamento de febres, por ter gosto amargo – tal gosto era associado por eles ao poder de cura das plantas. Essa é a origem da crendice popular de que, quanto mais amargo o remédio, mais rápida e eficiente é a cura. O uso por indígenas despertou o interesse dos médicos e farmacêuticos. No século 19, médicos brasileiros prescreviam banhos com água obtida a partir do cozimento da casca do pau-pereira e xaropespreparados com seu extrato. Na mesma época, os farmacêuticos do país iniciaram pesquisas visando isolar a substância que, nesse vegetal, tinha propriedades medicinais, para comercializá-la em suas boticas.
Glória brasileira
Entre esses farmacêuticos estava o brasileiro Ezequiel Corrêa dos Santos (1801-1864), segundo presidente(em 1837) da Seção de Farmácia da Academia Imperial de Medicina, criada no período da Regência, em 1835, e depois fundador e primeiro presidente da Sociedade Farmacêutica Brasileira, fundada em 1851 pelos profissionais do setor. Corrêa dos Santos isolou o princípio ativo do extrato da casca do pau-pereira em 1838, identificou a substância como um alcalóide e deu-lhe o nome de pereirina. Mais tarde, seu filho, também chamado Ezequiel Corrêa dos Santos (1825-1899), continuou os estudos do pai – a monografia que apresentou, em 1848, à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tinha como tema o pau-pereira.
A primazia do isolamento desse alcalóide, no entanto, foi discutida desde o início, tanto no Brasil quanto no exterior. Aqui, Jean Louis Alexandre Blanc (?-1869) e Jean Marie Soullié, dois farmacêuticos franceses radicados no Rio de Janeiro e que também estudaram a ação da pereirina, reivindicaram a autoria da descoberta. Na Europa, o isolamento é atribuído a diferentes cientistas, como os alemães Christoph H. Pfaff (1773-1852) e Berend Goos (1815-1885), o francês Pelletier e o italiano Pietro Peretti (1781-1864).
Documentos históricos, entretanto, reforçam a hipótese de que a pereirina foi de fato isolada pela primeira vez por Corrêa dos Santos. Em artigo na Revista Médica Fluminense, em fevereiro de 1838, o médico Luiz Francisco Ferreira (?-1857), também professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, já relatava os efeitos da prescrição da pereirina. Em abril do mesmo ano, na mesma publicação, o cirurgião Peregrino José Freire descrevia a dosagem que devia ser receitada: 12 gramas de pereirina dissolvidas em ácido sulfúrico diluído e misturadas a um xarope. Luiz Francisco Ferreira teria recebido a substância do próprio Ezequiel Corrêa dos Santos, conforme relato publicado na mesma revista em março de 1838. Esses textos indicam que Corrêa dos Santos a isolou antes das datas citadas.
A maior contestação dessa descoberta, no Brasil, partiu de Blanc, que estudou e isolou o princípio ativo do pau-pereira na mesma época. O fato de o farmacêutico brasileiro ter fornecido a pereirina a Ferreira para que este a testasse clinicamente, enquanto Blanc ainda trabalhava no processo de extra-ção desse princípio – segundo artigo do médico italiano, radicado no Brasil, Luís Vicente de Simoni (1792-1881) também publicado na Revista Médica Fluminense em abril de 1838 –, reforça a proposta de que Corrêa dos Santos foi o primeiro. Além disso, a pereirina obtida por Blanc apresentava características químicas distintas da obtida por Ezequiel.
Já os estudos europeus que também teriam resultado no isolamento da pereirina foram, segun-do registros históricos, realizados após 1838. Os estudos de Pietro Peretti, professor da Universidade La Sapienza, de Roma (Itália), e também apontado como descobridor da pereirina, ocorreram em 1839 e só foram publicados em 1845, no Journal de Chimie Médicale de Pharmacie et de Toxicologie. Já Pelletier, o famoso químico francês, primeiro a isolar a quinina, obteve os mesmos resultados de Corrêa dos Santos, mas ele próprio registrou ter recebido cascas de pau-pereira apenas em 1840.
Os pesquisadores brasileiros divulgavam a denominação pereirina com a intenção de resgatar sua origem e divulgar os estudos sobre a flora brasileira e os possíveis remédios que poderiam ser produzidos a partir das riquezas naturais do país. A disputa pela primazia da descoberta da pereirina mostra a importância das pesquisas sobre produtos naturais feitas no século 19, no Brasil.
Mistura complexa
No século 19, a procura pela pereirina era intensa em muitas boticas brasileiras, devido à sua eficácia contra diversas doenças. Entretanto, o interesse popular diminuiu após a observação de que não se tratava de uma substância quimicamente pura. Como esse composto já tinha grande importância econômica, muitos pesquisadores retomaram seu estudo, tentando purificá-lo. Em 1880, Domingos Freire Júnior (1843-1899), após análises, propôs C7H21AzO10 (“Az”, ou azoto, é o antigo nome do nitrogênio) como a fórmula molecular da pereirina, e depois disso seu uso foi retomado por farmacêuticos e médicos. Em estudos na mesma época, o químico alemão Oswald Hesse (1835-1917) propôs outra (C19H24N2O) para a pereirina e descobriu, em 1877, outro alcalóide na casca do pau-pereira, com a fórmula C19H24N2O2, que denominou geissospermina.
A possibilidade de isolar substâncias naturais e o surgimento de novas técnicas que permitiam a identificação dessas substâncias, como a espectrometria de infravermelho e a ressonância magnética nuclear de hidrogênio, estimulou pesquisadores do século 20 a continuar os estudos com o pau-pereira. O principal foi o norte-americano Henry Rapoport (1918-2002), que isolou, com colaboradores, outros alcalóides do extrato da casca dessa árvore: flavopereirina (1958), geissosquizina, apogeissosquizina e geissosquizolina (1960), velosimina, velosiminol e geissolosimina (1962), e geissovelina (1973). Ainda hoje o pau-pereira é vendido pela internet, por alto preço, e indicado (embora sem confirmação científica) para a prevenção e o tratamento de cânceres e de doenças virais como Aids, herpes e hepatite C, e cientistas continuam a realizar pesquisas com o extrato de suas cascas, inclusive no Brasil.
Isso indica que a substância isolada por Ezequiel Corrêa dos Santos, considerada por ele apenas um alcalóide, era na verdade uma mistura complexa de bases. Alguns pesquisadores acreditam que a geissosquizolina e a pereirina são a mesma substância, devido à semelhança com a fórmula proposta por Hesse para a pereirina. Hoje sabe-se também que a geissospermina é o alcalóide majoritário do extrato da casca do pau-pereira.
A celeuma criada em torno do isolamento da pereirina serve para mostrar que, em ciência, é mais comum do que se imagina o fato de diversos pesquisadores trabalharem ao mesmo tempo e com objetivo idêntico, em países diferentes. No caso desse alcalóide, mais importante do que estabelecer quem foi o primeiro a isolá-lo é a constatação de que, em meados do século 19, as boticas do Rio de Janeiro já realizavam estudos químicos de produtos naturais.
Fonte: Ciência Hoje
