Símbolo da aliança divina para uns, ritual iniciático para outros, essa prática de mais de 5 mil anos tem justificativas religiosas, mitológicas e médicas.
Quando nos referimos aos rituais humanos, não é possível precisar ao certo a data e o local de sua origem. Esse é o caso da circuncisão, intervenção cirúrgica que consiste na remoção do prepúcio, prega cutânea que recobre a glande do pênis. Essa remoção, chamada também exérese do prepúcio ou peritomia (do grego peri, “em torno”, e tomia, “corte”), é realizada atualmente em clínicas com condições de higiene e assepsia.
A circuncisão existe há mais de 5 mil anos. Ela é praticada numa vasta zona que vai da África subsaariana até o Oriente Próximo, incluindo a Pérsia, passando pelo Magreb, a Líbia e o Egito, a Palestina, a Síria, a Arábia e o Iêmen. Os turcos são circuncidados, assim como os muçulmanos da Ásia Menor. Judeus e muçulmanos do mundo inteiro são circuncidados, independentemente de suas convicções religiosas. Hoje em dia, o fator de integração e conformidade com a aparência física supera as crenças religiosas. Contabilizamos mais de 900 milhões de circuncidados no mundo, número que pode passar de um bilhão, se considerarmos a evolução do islamismo nas regiões sub-africanas e no Ocidente. Atualmente, as zonas de extensão da circuncisão são a Europa e os Estados Unidos. Por razões de higiene, a circuncisão ganha terreno, sobretudo, em meio laico.
Embora os historiadores tenham se limitado a conjecturas, sabemos que essa prática – como outras intervenções e marcas corporais – antecede todas as invenções da humanidade e até mesmo o monoteísmo. A Bíblia relata que na época de Abraão a circuncisão já era conhecida e praticada às margens do rio Jordão e na Samaria.
Desde o princípio, essa prática inscreveu-se no registro do simbólico:
“E a aliança que eu faço com vocês e com seus futuros descendentes, e que vocês devem observar, é a seguinte: circuncidem todos os homens. Circuncidem a carne do prepúcio. Este será o sinal da aliança entre mim e vocês. Quando completarem oito dias, todos os meninos de cada geração serão circuncidados; também os escravos nascidos em casa ou comprados de estrangeiros, que não sejam da raça de vocês” (Gênesis 17:10-11).
Com exceção dos hieróglifos, estamos diante do texto mais antigo que trata de uma prática ligada ao órgão genital de mais de um bilhão de homens no mundo. Desde tempos remotos, ela envolveu inúmeros povos da Arábia-Iêmen, Etiópia-Sudão-Egito e Mesopotâmia, que estiveram entre os maiores inovadores de ritos sociais.
Heródoto confirma a antiguidade do costume:
“[…] Os colquidianos, os egípcios e os etíopes são os únicos povos que sempre praticaram a circuncisão. Os fenícios e os sírios da Palestina reconhecem nesse hábito a influência dos egípcios; os sírios que vivem nos vales do Termodon declaram que esse costume foi introduzido em sua comunidade há pouco tempo pelos colquidianos”. E o grande historiador de Halicarnasso conclui: “Egípcios e etíopes, eu não saberia dizer qual dos dois povos foi o primeiro a praticá-lo, pois trata-se de um costume muito antigo” (Histórias, II, 104).
Desde então, a ciência histórica não forneceu muitos dados sobre a prática da circuncisão. Afora o relato da Bíblia citado no início, não dispomos de documentos confiáveis que precisem o local de seu nascimento. “A circuncisão vem dos egípcios, dos árabes ou dos etíopes?”, pergunta-se Voltaire, no século XVIII. E afirma: “Sei apenas que os padres da Antiguidade imprimiam em seus corpos marcas de sua consagração, assim como se marcava com um ferro ardente a mão dos soldados romanos” (Obras completas, tomo VII). Para responder parcialmente ao filósofo, sugerimos algumas pistas. Segundo pesquisas, a circuncisão teria nascido em solo africano e dataria de cinco a sete mil anos. Após sua implantação definitiva no leste do continente africano, ela teria migrado para o norte pelo rio Nilo, graças à dispersão de tribos estabelecidas na região.
Há centenas de anos, a circuncisão teria evoluído no Egito faraônico de forma considerável a ponto de ser “codificada”. Prova disso é a descoberta por arqueólogos de representações de falos circuncidados em uma necrópole de Tebas datando do Novo Império (1500 a.C.). Embora o clero egípcio não seguisse as religiões monoteístas que iriam popularizar a circuncisão, em particular o judaísmo, ele era circuncidado e exigia que os novos adeptos o fossem igualmente. Essa codificação era obra de padres e médicos que seguiam o exemplo dos faraós, os quais conferiam à circuncisão uma indiscutível função iniciática e sacerdotal. Não deveria Pitágoras ser circuncidado antes de ingressar na grande biblioteca de Alexandria para se iniciar nos mistérios órficos? Graças a Titus Flavius Clemens ou Clemente de Alexandria (150-215), sabemos que esses “mistérios” constituíam a base dos ensinamentos de Orfeu, personagem mítico da Trácia antiga, que, além de seu conhecimento científico e mágico, inventou a cítara. Sobre essas diferentes iniciações, Jâmblico (240-325), filósofo neoplatônico, forneceu uma brilhante interpretação em sua obra Os mistérios do Egito. E o historiador fenício Sanconiaton relata, em sua Teogonia fenícia, que Cronos, o primeiro rei desse povo, praticara a circuncisão em seus companheiros e em si mesmo.
Desde então, a circuncisão vem adquirindo importância crucial para aqueles que a praticam. É um ritual que soube agregar em torno de si uma quantidade de significados de alcance universal: religiosos, iniciáticos, profiláticos, estéticos e medicinais.
Entre os hebreus, o mohel ou moël é o responsável pela circuncisão, chamada hatâna. O rabino inicia o ritual com uma bênção para legitimar a exérese do prepúcio, possibilitando a denominação da criança. A circuncisão judaica, além de permitir o acesso à lei divina, representa o sinal da aliança com o povo eleito: “Minha aliança estará marcada na carne de vocês como aliança eterna” (Gênesis 17:10-13).
Durante os dois primeiros séculos da era cristã, uma controvérsia acirrada atravessou a nobreza da Roma antiga. Seria ou não necessário circuncidar os novos cristãos para que fossem totalmente integrados à comunidade cristã? O debate atingia grandes proporções, à medida que os judeus e uma parte dos primeiros cristãos eram habitualmente circuncidados. A questão era ao mesmo tempo dogmática e doutrinal: se a circuncisão fazia parte da identidade coletiva judaica e de sua aliança com Deus, o cristão deveria aceitá-la como símbolo comum, sem perder sua identidade? E também sua alma.
Os apóstolos Pedro e Paulo levantaram a questão da contradição, mas finalmente a concepção paulina triunfou, levando a uma nova orientação do culto. Não era suficiente estar circuncidado na carne, se a alma permanecesse pecadora. Era necessário que o espírito também o estivesse, de modo que observasse escrupulosamente as leis divinas. E o apóstolo acrescenta: “Os verdadeiros circuncidados somos nós que prestamos culto movidos pelo espírito de Deus. Nós colocamos nossa glória em Jesus Cristo e não confiamos na carne” (Filipenses 3:3). Surge assim o batismo, originário do grego baptisma, “conversão do coração”. Desde então, o significado religioso da circuncisão não mudou, apesar da proliferação da circuncisão laica e da perseguição aos judeus durante o nazismo, quando se verificava se os homens eram ou não circuncidados.
No que se refere à circuncisão entre os árabes, desde tempos imemoriais os habitantes da península Arábica, formada por Iêmen, Omã, Iraque e Palestina, praticam a circuncisão em meninos de 13 anos. Sabemos que esse costume originou-se com a circuncisão de Ismael, o antepassado dos árabes, filho do patriarca Abraão, que foi circuncidado aos 13 anos. A Bíblia, contrariamente ao Alcorão, relata esse episódio.
Há dois outros elementos importantes que contribuíram para a aceitação islâmica da circuncisão. Por um lado, o profeta Maomé (570-632) – nascido circuncidado segundo a lenda – nunca a proibira, e, por outro, a circuncisão tornara-se um privilégio matrimonial. Até o início do século XX, os jovens iemenitas de 16 anos deviam ser circuncidados perante suas prometidas, testemunhas da coragem e do estoicismo de seus futuros esposos.
No entanto, cabe enfatizar o propósito, talvez apócrifo, atribuído ao califa Umar (581-644), que dizia: “Maomé foi enviado ao mundo para islamizá-lo e não para circuncidá-lo”. Seja como for, desde a chegada do islamismo e da sua extraordinária propagação, ela atingiu todos os países seguidores do culto de Alá.
Finalmente, servindo de base a todas as razões mencionadas e parecendo legitimá-las, a questão da higiene é recorrente no campo da peritomia. A própria circuncisão muçulmana a encerra em seu nome: tahara (purificação) no Magreb; sounna (tradição) no Sudão e no Egito, khotên na Turquia e na Pérsia e enfim taziinet (embelezamento) na Mauritânia.
Mas se a circuncisão é uma prática “fortemente recomendada”, não é uma condição religiosa stricto sensu do islamismo nem uma prescrição da doxa. Ela é adotada em terra islâmica, inclusive pelos novos convertidos, mas não faz parte das cinco condições exigidas para ser um bom muçulmano: profissão de fé, prece, doação, jejum e peregrinação à Meca.
Já o continente africano contempla dois tipos de circuncisão: a animista – a mais antiga – e a monoteísta, praticada nas regiões islâmicas. Em vários países africanos, a circuncisão – como o uso da barba e, no caso das mulheres, do véu islâmico – é considerada como um elemento de adesão ao culto maometano. Em outros países, como a Etiópia ou o Egito, os coptas – descendentes do povo do Antigo Egito – a praticam por mimetismo social, em vista de sua integração na comunidade circuncidada do entorno. Vários grupos étnicos importantes seguem essa prática: os dogons, os malinkés, os soninkés, os bambaras, os kabiyés do norte do Togo, os iorubás, os bozos, os pigmeus da África equatorial e os mossis. Os etnólogos que abordaram essa questão, com base nos mitos autóctones, apresentam duas explicações quanto à origem da circuncisão africana.
A primeira, de ordem cosmogônica, afirma que a origem da circuncisão encontra-se na criação do mundo como sinal de separação inicial dos indivíduos (supressão da androgenia) e de fixação no sexo ao qual eles pertencem. A segunda, de ordem sociopolítica, está vinculada à transmissão do poder no seio de uma comunidade africana sob domínio de um chefe tradicional. Essas duas grandes razões estão intrinsecamente ligadas à preocupação constante da fecundidade.
