Ninguém pode acusar os chefes indígenas de Cuba de terem vendido barato sua amizade para Cristóvão Colombo. O descobridor da América ficou com o ouro dos índios tainos, mas em compensação eles ganharam turey, um misterioso material de origem celeste, capaz de dar a eles prestígio e poder incomparáveis. Por algum motivo incompreensível, os europeus usavam essa substância divina no cadarço dos sapatos.
Confuso? Acontece que o turey não passa de latão, usado na ponta do cadarço ou como alfinete pelos europeus do século XVI. Pesquisadores no Reino Unido e em Cuba analisaram os bens colocados nos túmulos de uma comunidade de tainos durante a época do primeiro contato com os espanhóis e descobriram que ele é o material mais usado por esses índios como “bagagem” na sua partida para o outro mundo. Entre os nativos cubanos, ele teria se transformado no símbolo máximo de status religioso e social.
Os achados estão revelando um episódio intrigante das relações entre europeus e indígenas no Novo Mundo. Tudo indica que os chefes tainos aproveitaram o novo metal “precioso” para aumentar seu poder – uma estratégia que pode ter contribuído para modificar substancialmente a sociedade indígena.
“Temos de parar com aquela narrativa simplificada que diz: ‘Ah, os europeus chegaram, deram uns espelhinhos para os índios e logo os aniquilaram”, declarou ao G1 o pesquisador espanhol Marcos Martinón-Torres, professor de arqueologia científica do University College de Londres. “Cada povo teve sua própria forma de interagir com os recém-chegados, criando estratégias de adaptação e de sobrevivência.” Martinón-Torres é o primeiro autor do estudo sobre os tainos, que está na revista científica “Journal of Archaeological Science”.
A pesquisa, que contou com a colaboração do Ministério da Ciência, da Tecnologia e do Meio Ambiente de Cuba, é uma das primeiras a investigar diretamente o papel dos metais no contato inicial entre espanhóis e indígenas. “Inicial” é sem dúvida a palavra apropriada: Colombo e seus marinheiros desembarcaram em Cuba em 28 de outubro de 1492, apenas duas semanas depois do descobrimento da América. Eles logo deram de cara com os tainos, um povo de agricultores que aparentemente já tinha certa complexidade política. Segundo relatos coloniais, alguns de seus caciques estendiam seus domínios por mais de uma comunidade ou aldeia.
Comerciantes
Os tainos também tinham laços comerciais com a América do Sul – pingentes feitos de uma liga de ouro, prata e cobre, oriundos da Colômbia, estão entre os bens deixados nos túmulos do sítio arqueológico de El Chorro de Maíta, onde o estudo foi feito. “O que não sabemos é a escala e a freqüência desse comércio, mas ele certamente ocorria”, diz Martinón-Torres. Algum ouro também era obtido pelos próprios tainos em Cuba, mas eles davam mais valor à liga metálica colombiana, chamada por eles de guanín.
Em El Chorro de Maíta, cuja ocupação corresponde principalmente aos primeiros anos da chegada dos europeus, há tanto ouro puro quanto guanín nos 25 túmulos com bens funerários. (No total, são 120 esqueletos, o que indica que esses 25 representam a elite da sociedade taino). Mas os objetos mais abundantes são pequenos tubos metálicos, muitos dos quais parecem ter sido usados como contas de colar (em alguns há traços do fio de algodão no qual eram pendurados) ou incorporados a “medalhões” de guanín. No total, há 29 desses tubinhos, com comprimento médio de uns 3 cm – outros sítios da ilha também registraram a presença dos objetos.
No laboratório do University College, Martinón-Torres e seus colegas fizeram uma análise detalhada dos “pingentes” com microscopia eletrônica, além de vasculhar a literatura colonial em busca de uma explicação para o enigma. O resultado: tratava-se de latão (que é uma liga de cobre e zinco), produzido com uma tecnologia típica da Europa antes da Revolução Industrial. A presença de pequenas impurezas na liga permitiu até identificar a provável cidade de origem do latão: Nuremberg, na Alemanha. E a comparação com quadros dos séculos XVI e XVII não deixou dúvidas: os objetos eram usados na ponta dos cadarços, para impedir que eles se esgarçassem, ou então para prender as jaquetas e camisas européias às calças.
A multidão de tubinhos de latão nas sepulturas da elite taino comprova de vez seu valor sagrado para os índios, corroborado pelos cronistas coloniais. Eles contam que o metal era chamado de turey, “a mesma palavra usada pelos indígenas para designar a parte mais brilhante do céu”, diz o pesquisador espanhol. Sua coloração e até seu cheiro tinham conotações místicas, mostrando que os tainos passaram a usar seus próprios conceitos do que era sagrado para incorporar esse elemento europeu à sua cultura.
Agora, a grande meta dos pesquisadores é entender o impacto disso para o destino final dos tainos em El Chorro de Maíta. O sítio parece ter sido abandonado por volta da metade do século XVI. “Já no sítio de Los Buchillones, a presença taino continua até o começo do século XVII”, diz Martinón-Torres. “O fato é que cada aldeia ou cacique fazia suas próprias escolhas, tentando comerciar ou não com os europeus. E mesmo os que aceitavam esse comércio parecem ter aceitado apenas latão, e não qualquer outra coisa, como contas de vidro, por exemplo”, afirma o pesquisador.
Seja como for, a população taino logo foi dizimada por doenças de origem européia, pela escravização e pelo conflito armado. Uma das hipóteses da equipe é que a força simbólica do turey tenha intensificado uma tendência que já existia: a concentração de poder nas mãos de alguns caciques, desequilibrando uma sociedade que antes era relativamente igualitária. Para provar a hipótese, no entanto, é preciso explorar mais os sítios cubanos em busca de mais artefatos de latão. É uma análise que ainda não foi feita de maneira sistemática em Cuba, segundo o pesquisador espanhol.
Fonte: G1
