Ganhei a Mega-Sena da Virada. Me dei bem. Meu Deus, finalmente! 350 milhões no bolso. Ó Deus! E começo a chorar. Minha mulher olha de lado e murmura que tem alguma piranha envolvida no meu choro.

Minha filha não sabe do que se trata e comenta com a mãe: Alzheimer? Minha mulher faz muxoxo e vai fazer o almoço reclamando que se tivesse dinheiro pediria no iFood.

Toca o telefone. Era o Gabriel (quem diabos é Gabriel?) me dando os parabéns (como ele soube?) e emendou que o Albert, o porco-espinho dele está dodói com doença de Leprechaun (isso existe?) Ele só queria uma ajudinha de 500 mil para o tratamento.

Desliguei o telefone. Toca a campainha. Era o Dr. Diego, o urologista do andar de baixo dizendo que estava com promoção de próteses penianas, e que na mão dele era mais barato. Mandei ir embora. Antes de fechar a porta, vi o seu Homero, senhor educadíssimo, congregado mariano que nunca falou um palavrão, mostra o dedo médio e me chama de arrombado. Bati a porta.

Olhei pela janela. A vizinha do prédio em frente, que fazia pole dance e sequer me dava ideia quando passava por mim, colocou um cartaz na varanda “Por um milhão, dou até o ouvido esquerdo”. Fecho as cortinas rapidamente. Minha mulher vem e pergunta o que está acontecendo. Eu respondo que era a claridade. Minha mulher volta para cozinha dizendo qualquer coisa que daqui a pouco eu ia me vestir de índio para chamar a atenção.

Aparecia de tudo para mim. Pipocava anúncio de aula de alemão, gente se oferecendo para fazer programa em Java, moto feita com paralamas de fusca, limões de pelúcia, árvore de Natal da década de 60, vídeo exclusivo de médica fazendo performance no onlyfans, carrinho de madeira, fotógrafos querendo fazer ensaio sensual, feiticeira morando em vulcão vendendo patoá… Tinha de um tudo!

Olhei pela fresta da cortina. A rua parecia uma praça de guerra. Tinha traficantes querendo me sequestrar, milícia querendo me defender; ambos pelo mesmo motivo. Me escondi embaixo da cama. Minha filha veio me avisar que o Gabriel ligou de novo dizendo que os remédios do Albert aumentaram de preço.

Na cozinha, minha mulher cuidadosamente afia o facão de açougueiro e fala de si para si “350 milhões…”

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Há muitos anos o Aldir Blanc escreveu um artigo assim, mas eu não consegui encontrar. Dei uma modernizada. Os acontecimentos e pessoas mencionadas no texto são apenas obras de ficção.

Ou quase.