Racionalismo e ceticismo
O racionalismo não pode senão afastar como estéril e como errôneo o ceticismo acadêmico. A expressão de um saber que se resumiria na proposição “não sei nada”, mesmo que se tratasse do não-saber de Metrodoro, da verdade inapreensível de Demócrito ou do nihil scire de Arcesilau, é tradicionalmente denunciada como se destruindo a si mesma. Já Sócrates, no Eutidemo de Platão (286c), denuncia este tipo de tese que, querendo derrubar as outras, destrói-se ao mesmo tempo. Assim, Hume sublinha os danos daquilo que ele chama (erroneamente!) o pirronismo: a dúvida cética é uma “doença”. (Tratado da natureza humana). O ceticismo é considerado “extravagante” (ibid.). A ação, o trabalho e as ocupações da vida ordinária destroem o pirronismo (Investigação). Igualmente, Kant observa que o ceticismo em geral se destrói a si mesmo, e considera os céticos como nômades, “sem domicílio fixo”. (Crítica da razão pura). É evidente que os sucessos da ciência moderna parecem descartar o ceticismo entendido como o niilismo acadêmico.
Entretanto, um certo pirronismo, ora reconhecido como tal, ora praticado como uma filosofia original reconstruída independentemente de sua fonte grega, continuará a existir em função do próprio racionalismo. No século XVII, a análise cartesiana do sensível faz surgir um empirismo cujos traços encontramos em Malebranche, Gassendi, Bayle ou Locke. Pois, se as matemáticas escapam à toda incerteza, não se pode dizer o mesmo das realidades empíricas e sensíveis. Para os cartesianos, as qualidades sensíveis dos objetos, como o calor, o odor e as cores não estão, assim como o nota Bayle, nos objetos de nossos sentidos: “Estas são modificações da alma; eu sei que os corpos não são tais como me aparecem” (Dicionário). “Bem que desejaríamos excetuar a extensão e o movimento, mas não podemos; porque se os objetos dos sentidos nos parecem coloridos, quentes, frios, com cheiro, ainda que eles não o sejam, por que eles não poderiam parecer extensos e figurados, em repouso e em movimento, ainda que eles não fossem nada disso?”(ibid.)
Em um certo sentido, portanto, o autêntico pirronismo, o que significa dizer, o relativismo fenomênico, encontra nas análises dos cartesianos um terreno propício para sua renovação. O ponto fraco do cartesianismo não consiste, precisamente, na dificuldade encontrada para demonstrar a existência das coisas exteriores? Ora, é evidente que, se Deus garante sua existência, ele não poderia fazer que as qualidades sensíveis não fossem relativas aos sentidos que as apreendem. Quando Descartes analisa o pedaço de cera (Meditação segunda), é difícil não se perguntar qual teria sido sua atitude frente à objeção de Sexto Empírico ao analisar a maçã “lisa, de aroma agradável, de sabor doce e amarela” (Hypotyposes pirrônicas, 1, 94) e se interrogar sobre como seria nossa percepção se fôssemos surdos e cegos, ou seja, se somente dispuséssemos do tato, do paladar e do olfato, ou se possuíssemos um sentido suplementar. (I, 96 )
A especulação filosófica do século XVIII é inteiramente dominada pelo problema da percepção. Num sentido, Hume é o herdeiro, ao mesmo tempo, do pirronismo e do cartesianismo. “Se nós levarmos nossa investigação para além das aparências sensíveis dos objetos, escreve ele à propósito de Newton, a maior parte de nossas conclusões serão, eu o receio, cheias de ceticismo e de incerteza (…). A natureza real da posição dos corpos permanece ignorada. Nós conhecemos somente seus efeitos sensíveis e seu poder de receber um corpo. Nada mais está de acordo com esta filosofia do que um ceticismo limitado a um certo grau e uma bela confissão de ignorância nos assuntos que ultrapassam toda capacidade humana” (Tratado da natureza humana). Reconhecemos nisso, neste limite atribuído ao empirismo, os traços do positivismo moderno. Hume será probabilista. Ele considerará que o que nós afirmamos ser leis da natureza não são, na realidade, senão leis do espírito humano que imagina uma conexão constante entre os fenômenos, dos quais a percepção sensível somente oferece a imagem de uma conjunção. É porque a imaginação faz associações e tem uma função reprodutora, isto é, espera ver se repetir o que ela já constatou (tal será em Kant o sentido da síntese da repetição na imaginação), que ela introduz em sua visão da natureza uma conexão e uma ordem somente prováveis e não necessárias. Todo empreendimento Kantiano consiste, ao nível da primeira Crítica, em tentar fundamentar o caráter universal e necessário dessa conexão. Mas o importante é que o quadro dessa especulação seja ainda o fenomenismo.
Um outro aspecto importante do uso racionalista do ceticismo é a exaltação do espírito de tolerância. Foi para dar término às querelas religiosas e mostrar a vaidade das oposições entre os dogmatismos fanáticos que Huart vulgarizou em francês, em 1715, as Hypotyposes de Sexto Empírico. Nós nos limitaremos aqui a destacar este ponto.
Nós já indicamos mais acima, falando de Hegel, como o ceticismo pode ser o momento da negatividade no desenvolvimento de seu conceito. A reintegração, na história do conceito ou no campo da filosofia, do pensamento cético têm por efeito falsificar a apreciação oferecida do fenomenismo. A imagem do ceticismo que Hegel preferiu dar é a da negatividade radical professada por Arcesilau. Na medida em que Hegel considera a filosofia como una, em detrimento das oposições entre as escolas, é-lhe impossível considerar que as filosofias se excluam mutuamente. Essas exclusões são apenas aparentes: é a filosofia que está em luta contra si mesma, tanto na afirmação do ceticismo radical, como no instante de sua superação.
Atualmente o pirronismo tornou-se uma filosofia quase universalmente praticada sob o nome de positivismo. É claro que todo nosso conhecimento, por muito aperfeiçoados que sejam os instrumentos, é um conhecimento da natureza que opera pela mediação dos sentidos. Conseqüentemente, todo nosso saber é relativo aos sentidos. A idéia de uma relatividade, a crítica eisteiniana da noção de simultaneidade, que não existe senão relativamente à um dado observador, os limites engendrados pelas relações de incerteza de Heisenberg a respeito de nossa apreensão dos fenômenos se produzindo pela cadeia molecular revigoraram o antigo relativismo de Protágoras, de Pirro e de Sexto Empírico. Nenhuma época sente tão vivamente quanto a nossa o caráter historicamente relativo dos costumes, das instituições, das linguagens e das civilizações. Isso não significa que nós estejamos desesperados, convictos do não-saber do saber, mas que sabemos que não há saber sem o homem, nem conhecimento empírico fora dos homens que os constróem.
O ceticismo é, portanto, uma noção de duplo sentido. Historicamente, para os Gregos que o fundaram, é um fenomenismo. Mas ao lado deste relativismo expressou-se com mais ou menos força, conforme diversos contextos, uma tendência do espírito humano em reivindicar o poder infinito da negatividade. Os problemas filosóficos que dela resultam são de vários tipos. Primeiramente: é verdade que nós estamos totalmente condenados ao relativismo? é legítimo formular, fora da prática das ciências positivas, a exigência de um conhecimento racional absoluto apoiado na fé da razão ou na crença num Deus “medida de todas as coisas” como o de Platão, ou garantidor das “verdades eternas” como o de Descartes? Em segundo lugar: de onde vem esta vertigem, esta aspiração ao nada, este apetite pela negação, esta tendência a radicalizar a dúvida que leva o homem, contra toda evidência, a proclamar o nada de seus conhecimentos e a vaidade da ciência? Por que Pascal assusta-se com o “pirrônico Arcesilau”, como com o silêncio dos espaços infinitos?, por que o pensamento dialético quer que a filosofia trabalhe para se negar a si mesma? Em terceiro lugar: podemos esperar atualmente do ceticismo que ele cumpra sua dupla função grega, ou seja, reduzir o entendimento ao silencio, mostrando as contradições dos dogmáticos e a vaidade das explicações metafísicas e religiosas que pretendem dar ao homem uma explicação total e definitiva; dar ao homem a tranqüilidade e a felicidade, fazendo com que ele não confie senão na vida, e remetendo ao domínio das ilusões as questões dogmáticas, fontes de sua inquietação, de sua intransigência, de sua fantasia, numa palavra, de sua infelicidade?
Jean-Paul Dumont
Scepticism: Artigo da Encyclopædia Universalis, Paris, s.d.,vol:14, pp. 719-723.
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