2. AS TRANSFORMAÇÕES
DO CETICISMO
História da história do ceticismo
A história do ceticismo moderno é inseparável da interpretação que os Modernos propõem do ceticismo antigo. Todos os que se declaram céticos em um certo sentido, como Montaigne ou Hume, fazem-no referindo-se a uma certa idéia do ceticismo. Mas, por outro lado, os partidários de um certo ceticismo não são os únicos a falar e a se posicionar em relação a idéia que eles fazem do mesmo. Assim, é necessário definir a imagem que os grandes filósofos deram do ceticismo antigo.
Esta é, entretanto, uma tarefa difícil. É preciso, com efeito, lançar-se também a uma elucidação histórica das razões pelas quais sucessivamente o ceticismo antigo foi apresentado. Uma tal história em segundo grau cujo projeto é o de dar conta do estado do conhecimento das fontes em épocas diversas e da motivação das preferências interpretativas, exigiria, para ser completa, que se possa dar conta das metamorfoses do ceticismo antigo exigiria, para ser completa, que pudessem ao mesmo tempo dar conta do estado do conhecimento das fontes em épocas diferentes e das motivações das preferências interpretativas pelas quais os interpretes se tornaram responsáveis. É claro que nas épocas em que os textos pirrônicos são bem conhecidos o ceticismo é de preferência encarado como um empirismo e como um fenomenismo, em compensação, quando a influência de Cícero é predominante, é a interpretação acadêmica de um ceticismo negador que tende a se impor. Mas, por outro lado, as famílias espirituais às quais se ligam os intérpretes, orientam tão profundamente sua ligação seja à corrente do pensamento cristão, seja à corrente do pensamento racionalista, que convém dar conta esquematicamente agora.
Cristianismo e ceticismo
O primeiro filósofo a ter retomado os gregos e a ter, de algum modo, vivido de novo a experiência da dúvida foi Santo Agostinho. Uma grande parte de sua obra é dedicada a um esclarecimento das razões que a gente poderia ter para pôr em dúvida os conhecimentos humanos. O diálogo Contra os Acadêmicos apresenta na sua terceira parte toda a matéria das razões para duvidar que constituíram “alimento tão comum remastigado pela Meditação primeira de Descartes. Entretanto, o modelo ao qual Santo Agostinho se refere não é o pirronismo mas a dúvida acadêmica, que oferece o exemplo de uma verdade impossível de descobrir e de uma busca destinada a não terminar. Por outro lado, Santo Agostinho não se sente à vontade na dúvida. Enquanto que a suspensão do juízo aparecia voluptuosa a Enesidemo, ela o mergulha num verdadeiro desespero diante da certeza inencontrável, a desesperatio veri.
O ceticismo ganha com Santo Agostinho três características novas: primeiramente, a dúvida é vivida. Se pensarmos no caráter existencial que toma a dúvida cartesiana e que revestirá a consciência infeliz de Hegel, devemos reconhecer em Santo Agostinho o mérito surpreendente de inaugurar para o ceticismo uma função totalmente nova. A razão disso é a impossibilidade augustiniana de separar as funções da alma, assim como o faziam os discípulos de Enesidemo. A unidade de espírito humano confere a dúvida a dimensão total de um completo desespero. Em segundo lugar, ao ser ao mesmo tempo desesperadora e existencial, a dúvida é uma experiência. Enquanto experiência – o que lhe confere uma intensidade particular –, a dúvida é passageira e dura um momento. Deste modo, a busca cética deixa de ser a busca zetética dos meios da suspensão, para tornar-se o momento da procura de uma verdade que ainda não se possui porque não está no poder da ciência possuí-la. É preciso notar este desvio do sentido grego da investigação cética para o sentido cristão de uma investigação da verdade. Em terceiro lugar, ao mesmo tempo em que a dúvida constitui uma experiência, ela é, não obstante, também um momento no sentido dialético do itinerário filosófico. O desespero é a expressão do momento da negatividade. A dúvida marca na literatura cristã o ponto da passagem obrigatório que constitui a permanência no purgatório, a prova necessária do pecado, o encontro das trevas do erro, cuja função revela as insuficiências de uma ciência atéia ou de uma certeza não fundada num Deus garantidor das verdades eternas. A dúvida é, pois, o momento da negação que transforma o saber humano numa certeza fundada na segurança de uma fé divina. Por isso mesmo, a experiência cética ocupa na vida do crente um lugar privilegiado, já que ela é a expressão da insuficiência do paganismo e a afirmação já presente de uma certeza de uma ordem inteiramente nova.. É porque Descartes e Hegel são, no fundo, tão cristãos quanto Santo Agostinho, que um propõe dar a dúvida unicamente metódica do Discurso do método a dimensão espiritual do desespero existencial das Meditações, e que o outro concebe o desenvolvimento da consciência como passando para um instante necessário do erro com o objetivo de chegar a uma certeza fundamentada. O ceticismo é um instante do purgatório em que a fé desolada e perdida se despoja das ilusões sensíveis, antes de ultrapassar o instante da crítica e da busca, para a apreensão de uma certeza tornada sólida, porque endurecida por ocasião desta própria prova.
Daí decorre que o ceticismo, que a gente poderia acreditar espontaneamente que ele é rejeitado como um pecado e como uma abominação pelos teólogos, seja, na realidade, considerado pelos pensadores cristãos como um precioso auxiliar da fé em oposição a ciência. O exemplo mais claro é o uso pascaliano do pirronismo destinado a revelar a “fraqueza do homem através de seus “discursos de humildade”. “Zombar da filosofia é, em verdade, filosofar”(…) nós não acreditamos que toda a filosofia valha uma hora de aflição (…) o pirronismo é a verdade”. O ceticismo cumpre nos Pensamentos, uma função apologética: humilhar a inteligência, rebaixar o saber humano e manifestar a miséria de um entendimento abandonado por Deus.Porém, é preciso sublinhar o caráter, no fundo, banal e extremamente clássico desta concepção do ceticismo. A voz pascaliana é somente uma dentre outras no meio de um concerto de personagens menos ilustres que, todavia, tiveram em seu tempo uma influência considerável. Nicolau de Cusa tinha na metade do século XV, dado um esclarecimento particular, sob o nome de docta ignorantia, à ignorância reconhecida pelos neoplatônicos como a condição do homem diante da infinita grandeza de um Deus situado para além de todo o conhecimento humano. Erasmo, no Elogio da loucura, retoma a expressão de São Paulo: “Eu não falo segundo Deus mas como se fosse louco”. Agrippa de Nettesheym, em De incertitudine e vanitate omnium scientiarum e artium liber que conheceu um sucesso duradouro, denuncia a nociva presunção da ciência de se igualar a palavra de Deus. Henri Estienne em seu prefácio às Hypotyposes pirrônicas de Sexto Empírico apresenta o pirronismo como o melhor remédio contra a impiedade dos filósofos dogmáticos. Para Gentien Hervet, editor de Adversus mathematicos, a obra de Sexto Empírico exalta as fraquezas da razão humana e reconduz naturalmente o espírito para o caminho da religião católica. No século XVII, La Mothe le Vayer ( Da virtude dos pagãos, 1641, Solilóquios céticos, 1670) e Huet, bispo de Avranches (Tratado da fraqueza do espírito humano, obra póstuma, 1722), retoma ainda o mesmo tema: “Minha razão não podia me fazer conhecer com uma inteira evidência e uma perfeita certeza se há corpos, qual é a origem do mundo e várias outras coisas semelhantes, mas depois que eu aceitei a fé todas estas dúvidas se esvaneceram como espectros ao levantar do sol”.
O principal responsável pelo sucesso do ceticismo foi, bem entendido, Montaigne. Montaigne exerceu uma influência determinante sobre Descartes, Pascal… No entanto, seu caso merece ser considerado inteiramente à parte. Com efeito, seu conhecimento do ceticismo antigo é singularmente rico e exato. Por um lado, ele é um dos raros autores da Renascença e o primeiro historiador da filosofia moderna a estabelecer uma distinção entre o niilismo dos acadêmicos e o pirronismo. Por outro lado, mesmo que a única obra que ele tenha lido seja as Hypotyposes pirrônicas, ele conhece muito bem Sexto e o utiliza abundantemente. Além disso, se Montaigne atribui ao ceticismo, na Apologia de Raymond Sebond, o mesmo papel que Pascal lhe concederá em relação à fé, ele não é, por um lado, como Pascal, um homem de fé, por outro, o modelo do ceticismo ao qual se refere é estritamente pirrônico. Enfim, por esta razão, Montaigne reata com a tradição grega: sua convicção é a de um relativismo universal. Ele está intimamente persuadido que o sujeito singular é incapaz de ultrapassar a singularidade de suas impressões e de sua imaginação para alcançar um conhecimento válido universalmente. Houve um tempo em que comprazia-se em separar, em Montaigne, os momentos estóico, cético e epicurista de seu pensamento. Isto decorria de uma ilusão grave, e também de um desconhecimento da natureza do pirronismo. Montaigne jamais praticou o desespero acadêmico, mas ele foi de início ao fim pirrônico, tendo considerado que a honestidade o forçava a falar da maneira singular com a qual ele via o mundo através dele mesmo, ao invés de adotar sobre o mundo um ponto de vista universal, decidido e dogmático. É por isso que este autor, que cita tão abundantemente os antigos, declara preliminarmente ser ele mesmo “a matéria de seu livro”; entendamos que, para ele, todo dado é relativo à um sujeito, isto é, aos sentidos e à imaginação particular.
2 comentários em “O Ceticismo”