Antigo experimento levanta dúvidas sobre senso ético

Alguns dos experimentos mais famosos em psicologia são aqueles que expõem o esqueleto sob a pele, a aparente covardia ou perversão que existe em praticamente todo ser humano. Essas descobertas obrigatoriamente trazem uma questão. “Eu realmente faria aquilo? Eu poderia trair meus próprios olhos, meu julgamento, até minha humanidade, só para concluir algum experimento?”.

A resposta, se for honesta, geralmente leva a comentários sobre as crueldades, seja bombas suicidas, tortura ou brutalidades de gangues. Então um experimento de psicologia – um exercício simulado, testando comportamento individual – pode se tornar outra coisa, um prisma através do qual as pessoas vêem a cultura de forma mais ampla, para o bem ou para o mal.

Considere os estudos sobre obediência do psicólogo Stanley Milgram no começo dos anos 1960, que juntos formam um dos reflexos mais sombrios que a área já elaborou sobre o homem. Em uma séria de cerca de 20 experimentos, centenas de pessoas respeitáveis e bem-intencionadas concordaram em provocar o que pareciam ser choques elétricos cada vez mais dolorosos em outra pessoa, como parte do que eles acreditavam ser um experimento sobre aprendizagem. O “aprendiz” na verdade era um ator, geralmente sentado longe da vista, em um recinto ao lado, fingindo ser eletrocutado.

Pesquisadores, especialistas sociais e psicólogos se aprofundam nos dados de Milgram desde então, alegando lampejos psicológicos e culturais. Hoje, décadas depois do trabalho original (Milgram morreu em 1984, aos 51 anos), dois novos artigos científicos ilustram a força dos experimentos com choques elétricos – e as diferentes interpretações que eles até hoje inspiram.

Em uma delas, uma análise estatística que aparece na edição de julho do periódico Perspectives on Psychological Science, um pós-doutorando da Universidade de Ohio examina um ponto decisivo nos experimentos de Milgram: o nível de voltagem no qual os participantes tinham maior tendência a desobedecer ao pesquisador e parar de provocar choques elétricos.

Os participantes geralmente começavam com o que eles acreditavam ser um choque de 15 volts, e aumentavam de 15 em 15 volts, conforme orientados pelo pesquisador. Nos 75 volts, o “aprendiz” no recinto ao lado começava a gemer, aparentemente de dor. Nos 150 volts, ele gritava: “Pare, deixe-me ir! Não quero mais fazer isso.”

Nesse momento, cerca de um terço dos participantes se recusaram a continuar, descobriu Dominic Packer, autor do artigo. “As manifestações de dor anteriores não eram suficientes”, disse Packer. Mas a 150 volts, continuou, aqueles que desobedeceram decidiram que o direito do aprendiz de parar prevalecia sobre o direito do pesquisador de continuar. Antes do fim dos experimentos, a 450 volts, mais 10 ou 15% das pessoas desistiram.

Essa apreciação pelo direito alheio é crucial nas investigações, sugere Packer. Quando os direitos de prisioneiros são ambíguos, pode acontecer tratamento desumano. O trabalho de Milgram, em resumo, faz uma afirmação sobre a importância dos direitos humanos, assim como a obediência.

Em outro artigo científico, a ser publicado no periódico American Psychologist, uma professora da Universidade de Santa Clara reproduz parte dos estudos de Milgram – parando em 150 volts, o momento crítico no qual o aprendiz grita para parar – para ver se as pessoas de hoje ainda obedeceriam. Comitês de ética impedem que pesquisas forcem pessoas aos 450 volts imaginários, como fez Milgram.

Novamente, mais da metade dos participantes concordaram em continuar com o experimento acima da marca de 150 volts. O autor Jerry M. Burger entrevistou os participantes depois e descobriu que aqueles que interromperam o experimento geralmente acreditavam serem eles os responsáveis pelos choques, enquanto aqueles que continuaram tendiam a ver o pesquisador como responsável. Isso quer dizer que o trabalho de Milgram também demonstrou diferenças individuais quanto à percepção da responsabilidade – quem está no controle de quê.

Thomas Blass, psicólogo da Universidade de Maryland, Condado de Baltimore, e autor da uma biografia de Milgram, The Man Who Shocked the World (Basic Books, 2004), disse que o fato de definir como ponto crítico o pedido do aprendiz de parar foi uma conquista significativa. “É uma descoberta simples, porém importante”, disse Blass. “Estive trabalhando nesses dados por anos e de alguma forma deixei escapar.”

Ele disse que extrapolar as descobertas de Milgram para eventos maiores, como Abu Ghraib ou o Holocausto, como o próprio Milgram fez, era um salto enorme. “O poder do trabalho de Milgram é que ele mostrou como as pessoas podem agir destrutivamente sem coerção”, ele disse. “Em investigações, por exemplo, não sabemos as complexidades envolvidas. As pessoas estão sob grande pressão para produzir resultados.”

Os dados de Milgram têm suas próprias complexidades pouco exploradas. Em seu novo relatório, Burger argumenta que pelo menos dois outros fatores estavam em jogo quando os participantes entraram no laboratório de psicologia de Yale há algumas décadas. Incerteza, já que era uma situação não-familiar. E a pressão do tempo, já que tinham que tomar decisões rapidamente. Apressados e desorientados, eles tinham maior tendência a obedecer do que em outras circunstâncias.

Em resumo, os experimentos de Milgram podem ter mostrado diferenças físicas e biológicas em tomadas de decisões morais e obediência, assim como diferenças psicológicas. Algumas pessoas podem ser muito rápidas em tirar o time de campo quando sentem que algo não está certo. Outras precisam de um pouco de tempo para fazer a coisa certa, ainda bem, e ainda não devem ser consideradas carrascos sádicos.

“O mais incrível”, disse Burger, “é que ainda estamos falando sobre o trabalho, quase 50 anos depois de ele ter sido feito. Isso não acontece em qualquer experimento.”

Abaixo vemos uma série de fotos do experimento de Milgram. Clique nas miniaturas para ampliar.

O experimentador, a “figura de autoridade” instrui os participantes no modo de usar a máquina de choques, e permaneceu na sala durante a duração do estudo, incentivando a pessoa a ser avaliada a continuar.
A falsa máquina de choque de Milgram permitia aos participantes aumentar os choques de 15 em 15 volts. Os botões à extrema direita da máquina, próximos aos 450 volts, foram com freqüência rotuladas como “Altamente Perigoso”. Muitos participantes ativaram os botões assim mesmo.
No início da maioria os experimentos, o cientista fingiu escolher aleatoriamente uma pessoa como “aprendiz” e outra para aplicar os choques. Em fato o “aprendiz” era um ator, sempre “aleatoriamente escolhido”, e o real participante do estudo auxiliou a amarrar o homem na cadeira com os eletrodos antes de iniciar os procedimentos.
Na maioria dos experimentos, os participantes não podiam ver o “aprendiz”, o qual estava numa sala adjacente e fora de sua vista. Gemidos de dor podiam ser escutados, usualmente começando quano os choques atingiam 75 volts, e aos 150 volts o “aprendiz” estava implorando para ele parar.
Em alguns experimentos, o “aprendiz” (ou vítima” estava bem ali na mesma sala. Isso fez com que menos participantes quisessem proceder ao fim, para aplicar os choques máximos.
Milgram procedeu com muitas permutações do experimento, incluindo um no qual um outro suposto participante – também um ator trabalhando para os psicólogos – fez sua opinião ser conhecida sobre quando parar o experimento ou ir em frente.

Fonte: G1, sobre matéria publicada no New York Times, escrita por Benedict Carey

7 comentários em “Antigo experimento levanta dúvidas sobre senso ético

  1. Ótima matéria! Sempre me questionei sobre a ética e a necessidade de se fazer alguns testes psicossociais anti-éticos mas essenciais para se entender o comportamento humano.

    Um desses testes é o do bebê sem contato com outros humanos e informações. Como uma criança humana cresce, aprende e se adapta ao mundo sem que alguém lhe ensine tudo o que deve fazer.
    Talvez nunca saberemos quais são nossas habilidades cognitivas e em que estágios nós as desenvolvemos, sem que outros nos forcem sua cultura e preceitos.

    Outro que foi realizado é a eugenia, seleção artificial de parceiros geneticamente compatíveis. Esse foi parcialmente ético numa experiência no EUA, e totalmente anti-ético na Alemanha por Mengele.
    Não é bem psicológico, mas se encaixa nos termos de ética em pesquisas com humanos.

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    1. Cientistas são seres humanos, Sorete. Como qualquer ser humano são tentados pela vaidade e egocentrismo.

      Sorte que outros cientistas sempre estão dispostos a brecar atitudes erradas, como foi o caso do infeliz comentário racista de James Watson, um dos descobridores da hélice dupla do DNA.

      E até aqui mesmo no Brasil havia um projeto de eugenia, e entre eles estavam o fundador da Faculdade de Medicina de São Paulo, Arnaldo Vieira de Carvalho, o sanitarista Arthur Neiva, o psiquiatra Franco da Rocha e o educador Fernando de Azevedo. Todos eles seguindo idéias imbecis de Renato Kehl.

      Sugiro a leitura deste artigo. Abraços.

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  2. Então, se eu demoro a reconhecer o perigo da situação, (no experimento) estaria sendo sádica? A propósito, o artigo em .pdf sugerido, não mais existe :sad:

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